A melancolia e crueldade em “O Morro dos Ventos Uivantes”

A melancolia e crueldade em “O Morro dos Ventos Uivantes”

Emily Brontë nasceu em 30 de julho de 1818 e foi a quinta de seis crianças, crescendo em Haworth, no condado de Yorkshire. No entanto, ela vivia isolada na periferia da cidade, confinada à convivência com sua família, a igreja e o cemitério. A tranquilidade e a rotina de sua vida eram algumas das coisas que mais lhe davam prazer, permitindo-lhe viver em seu mundo imaginário, compartilhado às vezes com sua irmã, Anne.

Essa sensação de isolamento é perceptível em seu único livro, O Morro dos Ventos Uivantes. Ao longo da narrativa, podem ser notadas semelhanças com a sua própria realidade. Isso revela suas preocupações e pensamentos, como a tristeza de deixar seu próprio mundo para se aventurar em outros ambientes. Também se observa a reprodução de detalhes de sua vida doméstica na obra, criando uma atmosfera de isolamento e fechamento, na qual os personagens vivem de maneira eremita.

O clima gótico e de escapismo presente na obra traz uma reflexão sobre as relações humanas e psicológicas para o leitor. Ao incorporar elementos narrativos, Emily Brontë desafia a concepção predominante sobre O Morro dos Ventos Uivantes.

Embora muitos leitores tendam a focar em um romance trágico entre Cathy e Heathcliff, até que ponto essa história realmente trata de amor?

Cena da versão cinematográfica de "O Morro dos Ventos Uivantes"
Cena da versão cinematográfica de “O Morro dos Ventos Uivantes” (Foto: Divulgação)

A resistência do amor entre Cathy e Heathcliff

Ao apresentar o casal protagonista como vítimas de uma sucessão de conflitos e acontecimentos, a autora conduz a uma separação que impede que vivam uma vida completa juntos. Essa busca atormentada pelo eterno “e se” promove uma ruptura naquilo que poderia ser uma história de amor impossível, transformando-a em uma trama de vingança e transgressões.

As regras sociais da Inglaterra daquela época marcam o ponto de partida para o desenrolar dos acontecimentos. Brontë aproveita essa realidade para criticar e influenciar as ações de seus personagens, levando o leitor a questionar os dilemas e limites apresentados na narrativa do livro.

Heathcliff, quando ainda criança, é encontrado pelo Sr. Earnshaw, pai de Cathy e Hindley, e é levado para morar com a família em Wuthering Heights. No entanto, desde o primeiro encontro, percebe-se o distanciamento e o preconceito em relação ao menino de pele escura e origem cigana, que não fala inglês. Esses são os primeiros fatores que contribuirão para as tragédias e proibições futuras.

No início da infância, quando o patriarca da família ainda está vivo, observa-se um companheirismo infantil entre Cathy e Heathcliff. Após a morte do pai, esse laço é ainda mais estreitado devido aos abusos de Hindley.

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A redoma inicial na qual o casal se encontra é permeada por sentimentos como compreensão e resistência em relação ao mundo externo. Todavia, essa bolha é rompida quando uma brincadeira de invasão no terreno vizinho, o Thrushcross Grange, altera o curso da história de todos os personagens.

Devido à sua origem como uma inglesa branca de boa família, Cathy é perdoada pela família Linton por ter invadido o território e é convidada a passar um tempo com eles. Através da sedução de uma boa educação e de eventos sociais, os Lintons conseguem fazer com que Cathy perceba que Heathcliff está à margem da sociedade.

O ápice do conflito central de O Morro dos Ventos Uivantes surge quando Cathy retorna a Wuthering Heights com novos pensamentos, amizades e uma postura arrogante. Ela e Heathcliff não conseguem mais manter a relação infantil que possuíam, repleta de brincadeiras e companheirismo. Apesar disso, o idealismo do amor de sua infância persiste.

 

O Morro dos Ventos Uivantes (1992)
O Morro dos Ventos Uivantes (1992)

Minhas maiores tristezas neste mundo foram as tristezas de Heathcliff, e eu vi e senti cada uma delas desde o começo.

Meu maior pensamento na vida é ele. Se tudo morresse e ele permanecesse, eu continuaria a existir; e se todo o resto permanecesse e ele fosse aniquilado, o universo se tornaria um poderoso estranho. (p. 146)

O abandono do ser amado em “O Morro dos Ventos Uivantes”

Ao se casar com Edgar, filho dos Lintons e um aristocrata bem-sucedido, Cathy trai a si mesma e comete o trágico erro de afastar-se de Heathcliff. Ela não compreende as razões por trás da sua partida, mas tenta esconder sua tristeza por não estar com seu primeiro e verdadeiro amor.

Quando Heathcliff retorna à sua vida adulta, ela não o reconhece mais e declara: “Esse não é o meu Heathcliff. Eu continuarei amando o meu e o levarei comigo – ele está em minha alma.” (p. 243)

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Desde a infância de Heathcliff, é possível perceber um temperamento colérico e melancólico. O primeiro abismo em sua vida surge com o abandono por sua família de sangue, deixando-o sem pistas sobre sua origem e identidade.

Posteriormente, ao perder Cathy para Edgar, enfrenta uma segunda lacuna, uma perda irreparável, pois ele não consegue conceber uma existência sem Cathy. Ao retornar transformado e mais rico para Wuthering Heights, aparenta ser alguém mais controlado, capaz de perdoar aqueles que o prejudicaram.

A dualidade de Heathcliff: entre loucura e genialidade

No entanto, Emily Brontë sutilmente insere indícios da amargura de Heathcliff. A princípio, há dúvidas sobre se sua mudança é genuína, pois ele visita Cathy sem aparentes segundas intenções. No entanto, gradualmente, ele instaura o caos, manipulando Cathy para ficar a seu lado e levando Isabelle, irmã de Edgar, a se apaixonar por ele. Seus objetivos principais são revelados: ele busca vingança.

A melancolia sentida pelo anti-herói é tão intensa que ele não consegue sustentar o papel de bom moço. Sua ânsia de retirar tudo daqueles que o prejudicaram é dominante, e surge a pergunta: até que ponto a melancolia transformou-se em crueldade.

Essa melancolia de Heathcliff percorre dois extremos, a loucura e a genialidade, e por vezes eles se entrelaçam. Sua capacidade, de alguma forma misteriosa, de reerguer-se, adquirir status e riqueza, foi crucial para concretizar sua vingança, enquanto a crueldade com que trata todos à sua volta flerta com a loucura. Brontë aborda a dualidade e a incompreensão do ser humano, enquanto observamos fragmentos daquilo que querem nos mostrar.

Adaptação de "O Morro dos Ventos Uivantes" (2011)
O Morro dos Ventos Uivantes (2011)

A melancolia e crueldade de Heathcliff 

A princípio, a melancolia do protagonista baseia-se na tristeza de ser ignorado tanto pela sociedade quanto pelas pessoas que deveriam acolhê-lo. No entanto, no momento em que essa melancolia é transformada em amargura e, consequentemente, em maldade, ocorre uma ruptura e uma cegueira em relação à sua própria realidade. A sede por vingança torna-se tão intensa que o anti-herói byroniano vive em inércia, carregando um vazio e uma descrença.

O ambiente quase se torna um personagem na narrativa, uma vez que os conflitos se desenrolam em um único lugar. Além disso, todos que acabam por residir na casa de Wuthering Heights tornam-se tristes, melancólicos e amargos. Do ponto de vista fantasioso de Emily Brontë, a casa parece manipular as pessoas até que elas se envolvam em um espiral de maldade.

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Primeiramente, isso acontece com Hindley e Joseph, e mais tarde com Cathy, Isabelle, Hareton, Linton e Heathcliff. Este último confronta os limites e potenciais da crueldade, tanto física quanto mental. Isso nos leva a um questionamento presente no inconsciente: será que a ideia de Rousseau é válida? O homem nasce mau ou torna-se mau? Heathcliff é cruel devido aos eventos de sua vida, ou ele já nasceu sentindo prazer na dor?

O desfecho trágico: almas gêmeas em agonia

Percebemos certa lucidez nele quando Cathy decide escolher o abandono, incapaz de decidir entre Edgar e Heathcliff. Ao observarmos os encontros proibidos entre os amantes, notamos que o amor nunca deixou de existir, mesmo em uma relação marcada por mágoas, desavenças e tristeza. A codependência os consome.

Nos momentos finais, à beira do colapso e da loucura que leva à morte da protagonista, Heathcliff deixa de lado seus motivos egoístas para ampará-la, mesmo sabendo que isso nunca poderá acontecer. De alguma forma, eles eram almas gêmeas, como Cathy narra: “Não sei do que as almas são feitas, mas a dele e a minha são iguais.” (p.145)

O ponto de equilíbrio de Heathcliff em “O Morro dos Ventos Uivantes”

A morte de Cathy explora em Heathcliff a impossibilidade de concretizar o desejo de amar, marcando-o com uma natureza frustrada e desesperada de nunca mais tê-la.

Ao vê-la no caixão, o protagonista é consumido pela dor, a ponto de desejar que a alma de Cathy nunca o deixasse, que a assombração dela o conduzisse à loucura eterna. Assim, maquinando um processo de autodestruição, o desejo de aniquilação transgride os limites do romance.

James Howson como Heathcliff em "O Morro dos Ventos Uivantes" (2011), filme de Andrea Arnold
James Howson como Heathcliff em “O Morro dos Ventos Uivantes” (2011), filme de Andrea Arnold

Catherine Earnshaw, que você não descanse enquanto eu viver! Você disse que eu a matei. Venha me assombrar, então! Os mortos assombram quem os matou. Eu acredito… sei que há fantasmas nesta terra.

Fique sempre comigo, assuma qualquer forma, me leve à loucura! Mas não me abandone neste abismo, onde eu não consigo encontrar você! Ah, meu Deus! É inexprimível!

Eu não posso viver sem a minha vida! Eu não posso viver sem minha alma! (p. 252) 

Com isso, a melancolia e a crueldade se entrelaçam de acordo com as situações e o contexto em que se inserem. Heathcliff é um personagem ambíguo, pois quando sai e enxerga o mundo externo, parece lutar eternamente por seu lugar no mundo, enfrentando a sociedade inglesa da era vitoriana.

Mesmo que busque vingança contra aqueles que o prejudicaram e demonstre crueldade, há também uma interação de consequências. Cathy, apesar de ser egoísta, serve como ponto de equilíbrio para Heathcliff.

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Sou formada em Letras Português, buscando me especializar em Elena Ferrante. Falo italiano fluentemente. E sou apaixonada por comédias românticas, seja livros ou filmes. Sempre busco procurar o amor romântico nas coisas.
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