“Noiva entre túmulos” e a lenda urbana ressignificada

“Noiva entre túmulos” e a lenda urbana ressignificada

Configurando-se como uma releitura feminista, o livro Noiva entre túmulos, de Paloma Bernardino Braga, aborda temas universais, como morte, vida, luto e vingança, sem se distanciar de seu recorte temporal. Ao mesmo tempo, também retrata as problemáticas cotidianas dos papéis de gênero, feminicídio, violência e o lugar da mulher na sociedade, seja nos anos 40 ou no século XXI.

Mas o que essa obra nacional e independente tem a ver com o resgate de lendas urbanas, o maior cemitério de Belo Horizonte e o protagonismo feminino?

Capa do livro "Noiva entre túmulos" e a autora Paloma Bernardino Braga
Capa do livro Noiva entre túmulos e a autora Paloma Bernardino Braga.

A lenda da mulher de branco

Lendas urbanas são narrativas compartilhadas de geração em geração, consideradas verdadeiras, quase sempre com uma pitada fantástica e sobrenatural, que têm como palco a cidade, mas sem perder aquele gostinho interiorano de “causo de vó”. Além de serem um importante traço de identidade e acervo de memória de um povo, esses mitos contemporâneos também funcionam como uma forma de aviso do que não se deve fazer em sociedade, principalmente se você for uma mulher.

Nesse plano de fundo, temos um fantasma feminino em vestes brancas avistado por um desafortunado que pede carona para voltar ao cemitério, sua eterna morada e local de descanso. Às vezes, a moça é uma noiva que foi abandonada, abusada, assassinada ou levada a tirar sua vida devido à falta de caráter do amado ou por ter sido impedida de viver um amor proibido. No mais, a aparição é sinônimo de tragédia para aqueles que a encontram.

Representação da mulher de branco na série Supernatural
Representação da mulher de branco na série Supernatural | Gif: reprodução

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Em outros relatos, a figura, envolta em branco, choraminga pelas estradas, lamentando a perda de seus filhos, afogados por ela mesma ou mortos por terceiros. Não importa o nome – Dama de branco, Mulher da meia-noite, The weeping woman, La Llorona – ou em qual canto do mundo, a moça-fantasma existe no imaginário popular e possui diversas faces, todas elas sujas de sangue e sede de vingança.

A verdade é que a noiva-fantasma se tornou parte da cultura de tal forma que é possível encontrar um exemplar oral da lenda nas sete regiões do Brasil. Em Minas Gerais, mais precisamente na capital, Belo Horizonte, há uma figura fantasmagórica que funciona como uma memória herdada: a loira do Bonfim.

Lendas urbanas e o imaginário coletivo de Belo Horizonte

Talvez uma das lendas urbanas mais conhecidas do folclore belo-horizontino, a versão mais antiga da “loira do Bonfim” data de 1919. No entanto, a mais conhecida surgiu na década de 1940 e tem como cenário o bairro Bonfim.

Para substituir a até então capital de Minas Gerais, Ouro Preto, inaugurou Belo Horizonte em 1897, e no presente, considera-se a terceira concentração urbana mais populosa do Brasil. Após sua fundação, a cidade necessitava de seu próprio sepulcrário; por isso, no mesmo ano, construiu o Cemitério Municipal na zona suburbana. Antes sem residências ao redor, moradores logo ocuparam o entorno do local e, em 1940, o cemitério passou a chamar-se Bonfim, assim como o bairro.

Necrópole do Bonfim, um museu a céu aberto.
Necrópole do Bonfim, um museu a céu aberto | Imagem: Isabela Lapa

Atualmente, a maior e mais antiga necrópole da cidade é o Cemitério do Bonfim, e o estado tombou-o como patrimônio histórico e artístico. Porém, para construir a suntuosa cidade planejada, precisou destruir o Curral del Rei, o arraial no qual iniciou-se o crescimento de grande parte da população mineira.

A demolição causou revolta, perda e miséria, o que alimenta a ideia de que fantasmas inconformados com a fragmentação de sua memória e identidade assombram o imaginário cultural por baixo da fachada de progresso da capital, contribuindo para a criação de diversas lendas urbanas.

Vale destacar que até mesmo Carlos Drummond de Andrade, grande poeta mineiro, não escapou de tais fabulações, pois escreveu um poema inspirado por uma aparição feminina da cidade. “Canção da moça-fantasma de Belo Horizonte” (1940) representa outra moça-fantasma, mas seus versos encaixam-se perfeitamente na mitologia que envolve a loira do Bonfim, afinal, as violências vividas por essas mulheres incorpóreas se repetem de modo cíclico no cenário urbano.

“Eu sou a Moça-Fantasma

que espera na Rua do Chumbo
o carro da madrugada.
Eu sou branca e longa e fria,
a minha carne é um suspiro
na madrugada da serra.

As moças que ainda estão vivas
(hão de morrer, ficai certos)
têm medo que eu apareça
e lhes puxe a perna… Engano.

[…]

Não quero saber de moças.
Mas os moços me perturbam.

Quem tem medo da loira do Bonfim? 

Dentre os diversos artistas e políticos que habitam as sepulturas, mausoléus e túmulos, a loira do Bonfim é a presença extracorpórea mais famosa e temida.

Como toda boa e velha lenda, essa também possui múltiplas variantes, sendo a mais recorrente a versão em que, durante as madrugadas boêmias, transeuntes avistavam uma bela e loira mulher trajada de vestido branco frequentando os bares e pontos de bonde dali.

Os moçoilos que superavam o aparvalhamento e decidiam abordar a tal beldade eram convidados a acompanhá-la até sua casa no bairro Bonfim. Chegando ao destino, constatava-se que a morada da loira era nada mais, nada menos que o próprio Cemitério do Bonfim; seu desaparecimento misterioso era a chave de ouro que causava a fuga dos acompanhantes assustados.

Representação da loira do Bonfim
Representação da loira do Bonfim | Imagem: Quinho/Estado de Minas

No decorrer dos tempos e com a modernização, a loira passou a assombrar os taxistas da região: muitos relatam terem transportado a aparição até o cemitério e presenciado seu sumiço. Alguns dizem que se tratava “apenas” de uma prostituta cuja fama foi longe demais, e há aqueles que afirmam que a lenda foi criada por um radialista com o intuito de espalhar certo pânico na população.

Claro, muitos acreditam piamente na existência do espectro e afirmam: a loira do Bonfim realmente foi uma noiva que, desiludida e envergonhada após ser abandonada no altar por seu futuro esposo, decidiu tirar a própria vida. Por ser possessiva e materialista em vida, a fantasma apoderou-se do cemitério, decidida a guardá-lo com unhas, dentes e sustos ao impor respeito e medo nos que ousassem importuná-la.

A história de Noiva entre Túmulos: entre violência e luta pela liberdade

A partir desse contexto e inspirada pelos avós que trabalharam no Cemitério do Bonfim e cresceram no bairro, Paloma Bernardino Braga, professora de língua portuguesa e escrita criativa, doutoranda em Linguística e escritora, passou anos pesquisando e concebendo Noiva entre túmulos, uma narrativa publicada em 2021 que resgata o mito popular tão conhecido na capital mineira e ressignifica a trama de uma mulher, imaginária ou não, que agora se torna protagonista de sua própria história.

No livro, a loira do Bonfim tem nome e sobrenome: Amélia Ferreira do Prado.

Paloma Bernardino Braga, autora de "Noiva entre túmulos"
Paloma Bernardino Braga, autora de Noiva entre túmulos | Imagem: Dri Franca

A narrativa acompanha os personagens da trama contando-a. Vicente é um jornalista conquistador com ambições além de escrever notícias tediosas. Quando ele avista uma loira de branco descendo do bonde no bairro do Bonfim, ele se diz apaixonado e compartilha a notícia com o amigo e chefe, Afonso.

Logo o dono do periódico aproveita a história na forma de um relato sensacionalista. Pensando em alavancar as vendas do jornal, eles encarregam Vicente de reescrever um relato de assombração digno de ser publicado. Isabela, a secretária que se tornará amiga de Amélia, o ajuda a popularizar a lenda urbana pelos ouvidos e bocas de toda a cidade. A partir daí, a vida de Amélia se entrelaça com a de Vicente e criador e criatura viram amantes, enquanto o boato toma proporções até então inimagináveis.

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Confrontando a morte anunciada: a jornada de Amélia Prado

Em seguida, nos apresentam a triste rotina de Amélia, filha de um falecido coveiro e moradora do bairro do Bonfim, que anseia por liberdade em meio a um lar abusivo. Ela sofre recorrentes violências físicas e psicológicas vindas de seus irmãos. Para piorar, a moça precisará se casar contra a própria vontade com o taxista Fernando, um sujeito truculento que a vê somente como posse.

“Não, lápides e figuras de santos com feições sinistras não eram fonte de medo. Não eram os mortos que ela temia. Os mortos não podiam perseguir e tocar carne viva. Os mortos repousavam palidamente em suas camas de flores, enrolados em tecidos de seda que se tornarão puídos, como tudo haverá de se tornar.”

Ao descobrir que confundiram-na com um fantasma, Amélia questiona se está tão desgastada a ponto de ser comparada a uma morta-viva. No fundo, o estado depressivo por permanecer em ambientes sociais que só a castram não dá margem para que ela seja mais do que isso: um fantasma em vida.

Amélia, datilógrafa e de espírito livre, sonha em viver uma vida que não seja essa. Mas ela sabe que para isso precisará buscar caminhos que desafiam as convenções sociais e que não vão de encontro ao destino das mulheres bem-quistas da época.

Ilustração de Vicente e Amélia Prado (Noiva entre Túmulos) no bonde.
Ilustração de Vicente e Amélia no bonde | Imagem: Bruno de Souza

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A Loira do Bonfim e a sensacionalização da lenda

A jovem vê seu cotidiano mudar drasticamente quando começam a apontá-la como o espectro descrito no jornal e logo ela conhece Vicente, o propagador da lenda.

E então a lenda se torna uma invenção sensacionalista até se tornar realidade. Desde o prólogo, já sabemos que a personagem irá morrer, porém, ao chegar o momento, nos vemos despreparados para lidar com a perda de uma jovem que apenas queria ter o controle de sua própria vida.

Em seus últimos suspiros, a loira do Bonfim é retalhada na porta de casa, como uma forma de despersonalizá-la e evidenciar que seu lar nunca foi sinônimo de conforto e segurança. Ao sucumbir devido aos horrores de ser mulher, ela se torna estatística do que hoje nomeamos como feminicídio, sendo enterrada em seu indesejado vestido de noiva. Assim, em um estilo Twin Peaks, os leitores fazem a seguinte pergunta: quem matou Amélia Prado?

“Isabela havia se dado conta da finitude da vida e da fugacidade do tempo. Não seria jovem para sempre. Poderia morrer no caminho de casa. […] Poderia ter sido ela. Poderia ter sido qualquer uma. Bastava ser mulher.”

A mistura de gêneros na obra de Paloma Bernardino Braga

Mesclando terror, romance, drama e thriller, a segunda parte da obra apresenta uma mitologia original, na qual os seres chamados de Temporários habitam o cemitério do Bonfim e ensinam a Amélia as leis do pós-morte e a importância da lembrança para a manutenção da vida. Porém, ela não deseja buscar paz, mas vingança. Afinal, um homem interrompeu sua breve vida, e se necessário, Amélia fará o que for preciso para punir seu carrasco e todos aqueles que praticam violências cotidianas às mulheres da região.

“E depois de toda correria e das tristes conclusões sobre a fina mortalha que separava a vida e a morte, seu único e último desejo foi que, um dia, as pessoas pudessem temer, correr e se esconder. Dela.”

De acordo com a professora de história Heloísa Murgel Starling, os fantasmas têm um papel fundamental em contar a história e a memória da cidade, já que deixam rastros do que aconteceu no local. Para ela, uma cidade como Belo Horizonte, que oscila entre construir e destruir, precisa dos fantasmas para preservar sua história.

Edição formato ebook de "Noiva entre Túmulos"
Edição formato ebook de Noiva entre Túmulos | Imagem: acervo pessoal

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O sucesso de Noiva entre Túmulos: da Amazon ao formato físico

Atualmente disponível como ebook na Amazon e no Kindle Unlimited, a obra gerou uma antologia de fanfics criadas pelos próprios leitores, tendo a narrativa como fio condutor. Além disso, o livro está prestes a ser lançado em formato físico. A história de Amélia é uma experiência enriquecedora para aqueles que apreciam narrativas populares em que a arte imita a vida, e vice-versa, em suas facetas mais sombrias, sejam elas reais ou fantasmagóricas.

Sendo assim, Noiva entre túmulos espelha o imaginário coletivo da cidade e o contexto social da época, traduzindo o caráter social e cultural das lendas urbanas. Mais do que isso, a obra retrata o protagonismo feminino em meio a situações tão pertinentes de serem discutidas. Afinal, por trás de cada fantasma há uma história, e quando a loira do Bonfim conta a dela, é nosso dever parar para ouvi-la.

Referências:

  1. Noiva entre túmulos – Paloma Bernadino Braga
  2. Quatro fantasmas que contam a história de Belo Horizonte – Larissa Reis
  3. Lendas Urbanas: narrativas entre o acontecimento e a estrutura – Carlos Renato Lopes
  4. Nós, que aqui estamos, por vós esperamos”
  5.  The weeping woman: the folklore and pop culture influence of La Llorona – Meagan Navarro

Crédito: colagem em destaque feita por Angélica Cigoli para o Delirium Nerd.

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