A felicidade opressiva em “As Duas Faces da Felicidade”

A felicidade opressiva em “As Duas Faces da Felicidade”

A diretora Agnès Varda, uma das maiores expoentes da Nouvelle Vague francesa, é conhecida por sua diversificada filmografia, que abrange desde documentários até curtas e longas-metragens. Suas obras são frequentemente subversivas, abordando questões sociais, especialmente os direitos das mulheres. As Duas Faces da Felicidade, lançado em 1965 e disponível no serviço de streaming MUBI, destaca-se como um filme que aborda de maneira transgressora a questão feminina.

Este filme, o terceiro longa-metragem de Varda, consolida sua posição como uma das diretoras mais importantes do cinema. Ele também reforça a estética feminista que a diretora já havia explorado em trabalhos anteriores, como Cleo de 5 à 7 (1962) e o curta-metragem A Ópera-Mouffe (1958).

Em As Duas Faces da Felicidade, Varda é ainda mais incisiva em suas críticas ao patriarcado. Por meio deste filme, ela questiona o casamento monogâmico heterossexual e a desigualdade nas posições ocupadas pelo homem e pela mulher nessa instituição.

Um casamento não tão perfeito

As Duas Faces da Felicidade (1965) | Imagem: Reprodução

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As primeiras cenas de As Duas Faces da Felicidade mostram uma família aparentemente feliz. François (Jean-Claude Drouot) e Thérèse (Clair Drouot), o casal protagonista, frequentemente demonstram seu amor um pelo outro. Eles desfrutam de atividades em família, como passeios no parque aos domingos com seus filhos Pierrot (Olivier Drouot) e Gisou (Sandrine Drouot). O contato constante com a natureza e a serenidade com que conduzem suas vidas sugerem que vivem uma vida simples, porém gratificante, onde a felicidade reside nas pequenas coisas.

No entanto, François tem uma visão diferente sobre a felicidade. Apesar de admitir que sua esposa e família o fazem profundamente feliz, ele acredita que essa felicidade pode ser ampliada após conhecer Émilie (Marie-France Boyer), uma jovem que trabalha nos correios. Os dois se apaixonam e começam um relacionamento extraconjugal sob o pretexto de François montar móveis para Émilie devido à sua profissão de carpinteiro.

Em nenhum momento François questiona a questão moral de seu relacionamento. Do início ao fim, ele não acredita estar fazendo algo errado, embora omita de Thérèse o que está acontecendo. Em vez disso, François justifica o caso a si mesmo e a outros personagens como uma oportunidade de aumentar sua felicidade. Para ele, Thérèse o faz feliz, mas Émilie também o faz, e, em sua lógica, isso significa que ele pode (e deve) trair sua esposa para maximizar sua felicidade.

A felicidade masculina e feminina 

É importante destacar como o ideal de felicidade ilimitada de François evidencia a desigualdade entre homens e mulheres em um casamento heterossexual. Em uma cena do filme, François e seu colega de trabalho comentam tranquilamente sobre ter amantes, enquanto, em outra cena, Thérèse diz que não poderia amar ninguém além de François.

Isso revela como os homens são permitidos e até incentivados a levar uma vida dupla e explorar sua sexualidade para além dos limites do casamento. No entanto, essa liberdade não é concedida às mulheres, que enfrentam uma pressão maior para serem fiéis em seus casamentos.

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No ápice do filme, durante um passeio no parque, François finalmente confessa a Thérèse sobre seu relacionamento com Émilie. Reafirmando seu amor por sua esposa, ele diz que estaria disposto a encerrar o caso se ela não aceitasse, mas também expressa a crença de que seria “burrice privar-se dessa felicidade e desse amor”. Thérèse, confusa e magoada, aos poucos aceita a situação, priorizando a felicidade do marido acima de tudo.

As cenas seguintes revelam os limites da felicidade experimentada por Thérèse. François acorda de um cochilo no parque sozinho, percebendo que Thérèse desapareceu. Com seus filhos, François a procura incessantemente, até encontrar seu corpo às margens de um lago. François a segura em seus braços enquanto chora copiosamente; ele está, sem dúvida, triste, mas em nenhum momento parece fazer a conexão entre a morte de sua esposa e sua traição.

François no enterro de Thérèse.

O suicídio sugerido de Thérèse acontece porque, para ela, a felicidade estava diretamente ligada ao seu casamento. Como muitas mulheres, ela acreditava que o casamento seria sua maior realização. Quando Thérèse descobre que estava vivendo uma farsa, seu mundo desmorona, levando consigo sua vontade de viver.

Um novo casamento, uma nova prisão

Após a morte de Thérèse, François se casa com Émilie, que se torna a nova figura materna para os filhos do casal. Na sequência final do filme, somos apresentados a cenas que ecoam as do início da história: François e Émilie passeiam com as crianças no parque, desfrutando da natureza e compartilhando a felicidade tranquila de seu casamento.

Surpreendentemente, a rotina do novo casal parece ser idêntica à do casal anterior em todos os aspectos. Enquanto François sai para trabalhar, Émilie cuida da casa e das crianças, da mesma forma que Thérèse fazia anteriormente. Essas cenas são impactantes não apenas porque Thérèse foi facilmente substituída, mas também porque revelam como Émilie perde uma parte de si mesma no processo.

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Emilie e François | Imagem: Reprodução

Se antes Émilie era uma mulher independente, ela agora se submete ao ideal de felicidade de François. O filme enfatiza isso em uma cena em que Émilie diz a François que ele é sua felicidade e sua vida. Isso nos faz perceber como Varda lança um olhar crítico sobre o casamento patriarcal: enquanto a felicidade do homem é ampliada, a da mulher é reduzida.

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Formada em Letras, mestranda em Literatura. Grande apreciadora do surreal, do fantástico e do onírico. Passa boa parte do seu tempo livre pensando e escrevendo sobre mulheres fictícias.
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