A Diferença Invisível: precisamos conversar sobre a Síndrome de Asperger

A Diferença Invisível: precisamos conversar sobre a Síndrome de Asperger

Sentir-se deslocada é uma característica presente na vida de muitas pessoas, sendo elas crianças, adolescentes ou adultos. Um esforço enorme é feito para ser aceito em relacionamentos (dos mais variados tipos), na escola, no trabalho e até mesmo dentro da própria mente.  Algo nos impulsiona a querer mudar e ser totalmente diferentes do que já somos, mas alguma coisa dentro de nós diz que essa vontade por mudança, que clama por aceitação a qualquer custo está de alguma forma errada – e machuca de inúmeros jeitos. O quadrinho A Diferença Invisível, ilustrado por Mademoiselle Caroline e escrito por Julie Dachez, é uma obra necessária para que passemos a prestar mais atenção em quem, possivelmente, pode ter a síndrome de Asperger.

Na trama, Marguerite é uma mulher francesa de 27 anos que, aparentemente, não difere em nada das mulheres de sua idade: ela mora com o namorado, trabalha em um escritório, ama seus animais de estimação e adora pesquisar sobre vegetarianismo, ao qual é adepta. Porém, algumas características de sua personalidade destoam dos demais, e causam incômodo não só a ela, como também nas pessoas com as quais se relaciona; ela segue todos os dias a mesma rotina, que vai de acordar cedo, andar pela mesma rua até a padaria e pedir o mesmo pãozinho, chegar primeiro no trabalho e começar a trabalhar antes de todos, em completo silêncio, até voltar para casa, vestir uma roupa confortável, brincar com seus dois gatos e o cachorro e esperar o namorado chegar.

Porém, Marguerite se sente mal quando algo diferente quebra estes rituais cotidianos, e também se incomoda com os barulhos vindos de saltos altos, telefones tocando, pessoas digitando, conversando e rindo no trabalho.

A Diferença Invisível

Quando raramente decide ir a uma festa, é sempre a primeira a voltar para casa: o ato de conversar com estranhos é muito doloroso para ela, assim como no trabalho, no qual prefere almoçar todos os dias sozinha. Ela se sente invisível, deslocada e incomodada com essa condição. Em seu quarto, ela e o namorado dormem em camas separadas, pois Marguerite não consegue se concentrar no sono ao ter outra pessoa se mexendo e fazendo barulhos ao seu lado.

A Diferença Invisível

Marguerite vive um dia após o outro, mas em seu íntimo sabe que precisa de ajuda, uma vez que percebe que tais características demandam um gasto de energia muito grande de sua parte e, no fim do dia, ela sempre está emocional e fisicamente esgotada. Ela, então, procura todos os seus sintomas na internet e descobre que possivelmente pode ser portadora da Síndrome de Asperger, uma síndrome do espectro autista, chamada por muitos de “autismo leve”. 

A Síndrome de Asperger é uma perturbação neurocomportamental de base genética. Pode ser definida como uma perturbação do desenvolvimento que se manifesta por alterações sobretudo na interacção social, na comunicação e no comportamento. Embora seja uma disfunção com origem num funcionamento cerebral particular, não existe marcador biológico, pelo que o diagnóstico se baseia num conjunto de critérios comportamentais.“*

A Diferença Invisível

Quem tem Asperger não possui dificuldades de ordem intelectual (como a maioria dos casos do denominado “autismo clássico”), sendo que alguns sintomas do Asperger são dificuldades quanto ao relacionamento com outras pessoas, hipersensibilidade a sons, imagens, texturas ou aromas, fala muito rebuscada, comportamentos repetitivos, interpretação literal de discursos e dificuldade de expressar sentimentos e/ou lidar com a intensidade deles (quando um aspie – nome dado a quem possui a síndrome – está triste ou feliz, os sentimentos são muito intensos).

A síndrome tem esse nome por conta do pioneiro na investigação dos sintomas, o pediatra austríaco Hans Asperger (1906-1980). Ele próprio, quando criança, possuía os sintomas de Asperger, como a dificuldade de interação com outras pessoas e, ao se especializar em sua área da medicina, estudou quatro crianças que também possuíam esta característica, somada à falta de coordenação física e  falta de empatia. Um aspie pode ou não possuir todos os sintomas característicos.

A Diferença Invisível

 

Das pessoas diagnosticadas com Asperger, a maioria se enquadra no sexo masculino e, em alguns casos, recebe o diagnóstico cedo, uma vez que a sociedade espera que meninos sejam mais ativos e interajam mais que meninas, logo algo que destoe deste comportamento é visto como “anormal” e motivo de investigação.

Porém, mulheres também podem ser aspies e os sintomas passam a vida inteira despercebidos, pois, por conta do patriarcado, meninas são constantemente refreadas e um comportamento quieto e contido são esperados e impostos.

Fora isso, também conseguimos nos adaptar melhor ao ambiente, imitando os comportamentos dos outros. Logo, podemos camuflar alguns sintomas (uma menina que possui dificuldade em conversar olhando nos olhos de seu interlocutor, pode “treinar” a característica e, quando adulta, realizar o ato de forma mecânica, mas não menos difícil).

Algumas mulheres presentes na mídia que também são aspies são Temple Grandin (cientista e professora de Ciência Animal da Colorado State University) e Daryl Hannah (atriz norte-americana que interpretou a replicante em Blade Runner e a Angelica de Sense8).

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Temple Grandin.
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Daryl Hannah.

Marguerite é o pseudônimo de Julie Dachez na HQ. A autora só encontrou paz, assim como a personagem autobiográfica, ao procurar especialistas e, de fato, comprovar que tem Asperger, já em uma idade tardia. Ao obter seu diagnóstico, Julie/Marguerite passa a respeitar os próprios limites, renasce para uma vida mais leve e deixa de se culpar por não conseguir concluir certas condutas sociais.

A autora possui um canal no YouTube e um blog, o Super Pépette e o Emoi Emoi et Moi, e tornou-se ativista pela visibilidade autista. Ela tem doutorado em Psicologia Social e desde então procura ajudar pessoas a se reconhecerem autistas como ela.

A Diferença Invisível
Julie Dachez. Imagem: Reprodução.

Mademoiselle Caroline, na história e na vida de Julie, trabalhava em uma livraria e foi uma das pessoas fundamentais na busca por respostas sobre Asperger. Além de livros, Caroline tornou-se grande amiga de Julie, e da amizade surgiu a parceria para a realização do quadrinho (a mãe de duas crianças com Asperger, e amiga de Julie, incentivou-a a contar sua história para o mundo através de uma HQ, e assim ela o fez). O quadrinho também apresenta mais personagens femininas importantíssimas que ajudam Marguerite a sobreviver aos desafios cotidianos, como a atendente da padaria.

Antes da descoberta de sua condição de aspie, a HQ sufoca Marguerite em planos repetitivos, claustrofóbicos e cores monótonas, que não saem do vermelho, preto e branco (a leitora passa o quadrinho inteiro dentro da mente de Marguerite e sofre junto a ela – impossível não possuir empatia por situações tão desgastantes para a protagonista), mas envoltos por sensibilidade e poesia; o traço de Mademoiselle Caroline é belíssimo e comovente.

Em dado momento, Marguerite é vítima de assédio por não entender segundas intenções e levar ao pé da letra um pedido que, para ela, parecia inofensivo (e isso nos faz pensar na quantidade de meninas e mulheres que são como Marguerite, mas que por falta de informações acabam sofrendo o mesmo; o choque é imediato).

A Diferença Invisível

A Diferença Invisível é uma HQ necessária. Não é apenas entretenimento, mas, principalmente, utilidade pública, uma vez que a síndrome vem possuindo destaque aos poucos nos últimos anos e merece muita atenção para que diagnósticos sejam feitos a tempo de pessoas não passarem a vida se esquivando e se escondendo do que realmente são.

Se você leu esta resenha até aqui, conhece alguém parecido ou se identificou com a vida de Marguerite e seus sintomas, procure um especialista o quanto antes. Saber lidar com as diferenças, aparentemente invisíveis ou não, é um passo importantíssimo para o empoderamento de si e do outro.

* (Fonte: Associação Portuguesa de Síndrome de Asperger. )

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A Diferença Invisível

A Diferença Invisível

Julie Danchez e Mademoiselle Caroline

Editora Nemo

192 páginas

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Escrito por:

117 Textos

Formada em Letras, pós-graduada em Produção Editorial, tradutora, revisora textual e fã incondicional de Neil Gaiman – e, parafraseando o que o próprio autor escreveu em O Oceano no Fim do Caminho, “vive nos livros mais do que em qualquer outro lugar”.
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