Uma Verdade Mais Inconveniente: o desastre ecológico já começou

Uma Verdade Mais Inconveniente: o desastre ecológico já começou

Muito se fala do aquecimento global como uma coisa que nos afetará apenas no futuro. O primeiro documentário do ex vice-presidente americano Al Gore, Uma Verdade Inconveniente, lançado em 2006, trazia estatísticas assustadoras sobre a aceleração do aquecimento global causada por humanos e alertava sobre os desastres ecológicos que enfrentaríamos ao longo do século XXI.

Entretanto, esta sequência, Uma Verdade Mais Inconveniente, mostra que já estamos sofrendo várias das consequências climáticas esperadas, ainda mais cedo do que os cientistas previam.

O primeiro filme, que se trata basicamente de uma palestra expositiva num palco, teve bela repercussão internacional, ganhando vários prêmios, inclusive o Oscar de melhor documentário em 2007. Com ele, Gore, que já trabalhava no combate ao aquecimento global desde 1992, ganhou ainda mais visibilidade e continuou a ampliar sua rede de influência, passando a realizar conferências e palestras no mundo inteiro para treinar novos líderes no combate às mudanças climáticas.

Uma Verdade Mais Inconveniente

Uma Verdade Mais Inconveniente segue Gore em suas viagens, desde expedições às geleiras da Groelândia, mostrando seu derretimento e a formação de rios escavando o gelo, até o acordo de Paris em 2015, a mais recente conferência internacional sobre políticas para contenção do aquecimento global. Gore também mostra a concretização de várias previsões feitas em seu primeiro filme, como a inundação do memorial do 11 de Setembro, que foi alagado na passagem do furação Sandy pela cidade de Nova York; e tempestades terríveis nas Filipinas, que deixaram milhares de desabrigados e mortos.

Pior ainda, Uma Verdade Mais Inconveniente mostra que pouco mudou no mundo em relação aos avanços necessários para conter as mudanças climáticas desde 2006, e o nível de poluição continua subindo a cada ano. Gore tenta, porém, mostrar um pouco das alternativas existentes, visitando cidades que estão no caminho da energia 100% sustentável nos Estados Unidos. Embora não entre em muitos detalhes técnicos, ele mostra que energia solar e eólica evoluíram e se tornaram alternativas eficientes aos combustíveis fósseis, e que muitas vezes o que as impede de ser implementadas é falta de vontade política. Uma cidade que ele visita no interior do Texas possui um prefeito do partido Republicano, mas que ainda assim está liderando a cidade rumo à energia 100% sustentável.

Uma Verdade Mais Inconveniente
Destruição causada pelo furacão Haiyan nas Filipinas, em 2013.

Talvez uma das limitações de Gore seja se ater muito à esfera política. O benefício disso é que Uma Verdade Mais Inconveniente nos mostra os privilégios e influência que ele consegue obter à frente da causa por justamente ser um desses políticos. Sua posição no meio permite que ele tenha contato direto com líderes mundiais e possa ser uma peça importante nas negociações, como quando consegue mediar uma proposta para que a Índia assine o acordo de Paris.

O lado ruim de manter o foco nessa esfera política é que Gore passa incólume na responsabilização de empresas e de outros agentes mais específicos. Ele evita apontar dedos e sempre se refere aos “causadores” de forma genérica. Muito das falhas do movimento ecológico em geral se dá ao responsabilizar indivíduos pelo compromisso ambiental, quando na verdade a indústria e agricultura são as atividades mais consumidoras e poluidoras dos recursos naturais do planeta.

Gore não se refere uma única vez sequer à agricultura como grande responsável por boa parte dos gases do efeito-estufa e da poluição, e também pelos enormes desmatamentos de florestas tropicais para cultivo agropecuarista. A Amazônia, como bem sabe qualquer brasileiro informado, segue sendo desmatada por madeireiros e pecuaristas a níveis alarmantes, o que tem impacto direto sobre o clima do mundo inteiro, já que florestas são as grandes responsáveis por absorver o CO2 atmosférico, além de regular umidade e nível de precipitação, influenciando na disponibilidade hídrica das regiões tropicais. Brasil e Indonésia são os dois campeões em desmatamento de florestas tropicais, algo de que ninguém deveria se orgulhar.

Uma Verdade Mais Inconveniente
Desmatamento na floresta amazônica.

Um outro defeito, que pode ser interpretado até como uma distração ao tema, é o foco cair sobre Gore como figura central do documentário, desta vez ainda mais do que no filme anterior. Seguimos de perto sua rotina de palestras ao redor do mundo, e como todo típico político, o vemos apertando várias mãos, tirando selfies com fãs, fazendo discurso sobre os atentatos de 2015 em Paris, sendo elogiado pelos passantes, “queria que você tivesse ganhado a eleição, e não George Bush!“. E sim, mais uma vez vemos a tal derrota na eleição de 2000, com Gore dizendo na TVnão concordo com a decisão da suprema corte, mas a aceito“. Isso é Gore dizendo novamente para a audiência “imagina o que poderíamos ter feito pelo progresso ambiental, mas não fizemos porque George Bush foi eleito no meu lugar“.

Com a nova onda de políticos nacionalistas e conservadores sendo empossados nos últimos anos, como o malfadado Trump, Gore reforça que temos que estar alertas agora mais do que nunca para os novos desafios do presente e das próximas décadas. Nacionalistas tipicamente negam o aquecimento global, dada sua visão estreita e limitada aos interesses particulares de sua nação. O problema climático e ambiental, entretanto, é global e não haverá para onde correr quando o mundo realmente estiver à beira do colapso.

A cada ano novas temperaturas recordes são registradas, incêndios devastam a Califórnia, Portugal e o Cerrado brasileiro, tempestades tropicais e furações se tornam cada vez mais fortes e destruidores (como os vários que já tivemos este ano no Caribe), o aumento do nível do mar está ameaçando varrer países inteiros do mapa, como Kiribati e Bangladesh, e o número de refugiados climáticos aumenta de acordo.

Uma Verdade Mais Inconveniente
Furação Irma no Caribe, setembro de 2017.

Pode haver um momento, muito em breve, por sinal, em que essas pressões migratórias e ecológicas realmente causem a destruição da ordem social e econômica do mundo. Se depender de alguns líderes mundiais, este momento chegará mais rápido do que desejamos. Mas temos que lembrar também que corporações estão por trás de todo o processo político, e nestes tempos de controle e vigilância ininterruptos a que estamos submetidos, onde grupos de notícias falsas conseguem obter substancial impacto sobre eleições presidenciais, as discussões sobre democracia e tecnologia tem de estar presentes em absolutamente todas as conversas públicas. A habilidade de nos comunicar e nos organizar depende integralmente desses dois fatores, portanto seria bom que alguém tão influente como Al Gore abrisse mais o leque para incluí-las em seu escopo.

Uma Verdade Mais Inconveniente estreia hoje (09) nos cinemas.

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Cineasta, musicista e apaixonada por astronomia. Formada em Audiovisual, faz de tudo um pouco no cinema, mas sua paixão é direção de atores.
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