[ANIMES] Sakura Card Captors – Clear Card-hen: O amadurecimento e o multiverso da CLAMP

[ANIMES] Sakura Card Captors – Clear Card-hen: O amadurecimento e o multiverso da CLAMP

Este texto poderia ser só mais um review desse novo arco, mas que tal olharmos por outro prisma? Sakura Card Captors: Clear Card-hen já aporta em nossas vidas com respostas há muito esperadas para perguntas sobre o multiverso criado pela CLAMP, que interliga seus trabalhos. Mais do que simples empolgação (e uma quantidade enorme de novos colecionáveis que vão acabar com as economias de muita gente), a CLAMP trouxe para nós respostas muito maduras sobre sua obra.

O mangá já está aí há algum tempo e rendeu bons burburinhos à época, tanto que nós reapresentamos a personagem Sakura em outro post, com um bom apanhado sobre os erros e acertos da obra de 1998 (data de lançamento do anime).

Mas foi no lançamento do primeiro episódio do novo anime que a fanbase começou a explodir de alegria. A sensação foi tanta que o site Crunchyroll caiu no dia de lançamento. E como todo bom revival, a gente pira é com o lançamento do anime, já que o acesso aos mangás era escasso.

Sakura Card Captors: Clear Card-hen

Anos 90 e as práticas problemáticas da CLAMP

Lá nos anos 1990, nós tínhamos contato com animes pela extinta TV Manchete, e foi lá que a gente se criou antes de Band Kids, TV Globinho e SBT (e sim, assistimos a isso tudo também e ainda teve gente com acesso a canais pagos que via Cartoon Network, Locomotion, dentre outros).

E por mais que nós desejemos que as novas gerações se encantem por Sakura, como nós fizemos, a gente ainda tem no coração que o desenho foi feito para sanar as vontades dos adultos, que agora têm sua própria grana e podem enriquecer a CLAMP (assim como fizemos com a Naoko, de Sailor Moon, e o Kurumada, de Cavaleiros do Zodíaco) comprando seus produtos colecionáveis, coisa que a nossa mesada e o parco acesso a itens internacionais nos anos 1990 não permitiam. Estamos falando aqui de adultos que, tendo assistido a obra original na infância/adolescência e amadurecido com o tempo, provavelmente se identificarão com as questões levantadas.

Sakura Card Captors: Clear Card-hen
SHUT UP AND TAKE MY MONEY!

Vamos começar lembrando que a CLAMP sempre teve uma preocupação em tratar de assuntos delicados com o máximo de naturalidade possível dentro de suas obras. O caso mais recente foi o belíssimo tratamento dado à personagem Hana em Gate7, a não discussão sobre seu gênero e a forma como todos os seus companheiros lidam com o assunto de forma tranquila. Lógico que nem tudo são flores.

A CLAMP naturalizou não apenas questões sensíveis de cunho empoderador, mas também práticas visivelmente problemáticas. Vale ressaltar o seguinte: essas “práticas visivelmente problemáticas” são consideradas assim, por uma visão ocidental que se expandiu ao Oriente por meio da globalização. Situações como pedofilia não eram vistas como erradas na sociedade japonesa até pouco tempo. Sendo assim, é possível ver vários produtores de mídias (não só animes) se utilizando desse artifício. E Cardcaptor  Sakura não foi exceção.

Sakura Card Captors: Clear Card-hen

Por mais que no anime a situação fosse mais sutil do que no mangá, o choque do relacionamento entre a personagem Rika e o professor Terada, na série original, gerou uma constante discussão sobre o assunto. Enquanto no anime dá-se a entender que Rika tem um amor platônico pelo professor, que é gentil e cortês com a menina, sem dar-lhe limites ou recusar seus presentes — o que já é um problema, pois estamos falando de um adulto alimentando os desejos amorosos de uma criança de dez anos —, no mangá fica explícito que os dois tem um relacionamento escondido com direito, inclusive, a anel de compromisso.

E a obra continha outros casais na mesma situação, como os pais de Sakura – lembrando que sua mãe casou aos 16 anos com o então professor dela do Ensino Médio – e o caso de Eriol e Mizuki. Mas as discussões ferrenhas sobre casais dentro de Cardcaptor Sakura geralmente se centraram em outros personagens: Touya e Yukito.

O relacionamento dos dois era tão explícito quanto o de Haruka e Michiru em Sailor Moon, e teve o mesmo fim: a tentativa das distribuidoras ocidentais de transformar um relacionamento amoroso em uma amizade extremamente próxima. Exemplos que demonstram que nossa sociedade à época ainda tratava homossexualidade (orientação sexual) como homossexualismo (doença),  e que era mais importante censurar isso do que um caso de pedofilia. Isso demonstra o quanto há de hipocrisia na tentativa ocidental de impor seus valores a outras sociedades, por mais que concordemos com esses valores.

O retorno de Sakura Card Captors: Clear Card-hen

Vinte anos se passaram e fomos à loucura com o novo anime, Sakura Card Captors: Clear Card-hen. E com ele, uma bela resposta da CLAMP para seu público e crítica: Touya e Yukito estão mais próximos que nunca, e Rika foi transferida de escola para não mais surgir em situações comprometedoras com o professor Terada. CLAMP amadureceu e respondeu à altura.

Neste novo arco, são visíveis as escolhas feitas: um tratamento naturalizado reafirma o que não deve ser um problema – casais homoafetivos – e uma modificação destaca o que deve ser rejeitado – situações de pedofilia –, dando uma continuidade mais sadia à história.

Rika teve um momento de explicação só para o seu caso, e mesmo que em uma aparição rápida, a posição da CLAMP foi enfática: não mantiveram a relação entre Rika e Terada, nem mesmo os deixaram na mesma escola, recado visível para todos de que não há possibilidade dos personagens terem algo nem mesmo velado.

Sakura Card Captors: Clear Card-hen

Mas Rika não é o único caso onde transparecem as escolhas da CLAMP sobre como lidar com o assunto. Outras formas mais sutis foram utilizadas para tratar os casais com esse problema no enredo. O mais delicado é a não exposição de Nadeshiko, mãe de Sakura, que no anime antigo era citada com certa frequência, às vezes até mesmo de forma desnecessária, com reafirmações constantes sobre seu relacionamento amoroso e o casamento precoce. Não haveria como modificar a questão do passado dos pais de Sakura, mas houve como reduzir as aparições desse tema, assim como as de Eriol e Mizuki.

A equipe CLAMP é conhecida por não dar ponto sem nó, e as escolhas de como lidar com cada um de seus personagens nunca são levianas. Dessa forma, é possível analisar mais a fundo suas escolhas para a transferência de Rika: afinal, por que retirar Rika do enredo ao invés do professor Terada? Se é apenas uma escolha para acabar com um casal, então por que não retirar o adulto e deixar a criança seguir com sua vida escolar junto das amigas?

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Dentre tantas possibilidades de dissolver o casal, CLAMP escolheu a que traria mais repercussão aos atentos a seu multiverso: Rika aparece vestindo o uniforme da escola de uma das personagens de Guerreiras Mágicas de Rayearth. Se esse detalhe não fosse o bastante para iniciar todas as teorias de que a dimensão em que se passam as duas obras é a mesma, ainda há um momento ao final do OVA (original video animation) de Guerreira Mágicas, lançado em 1997, em que se poderia identificar Rika entre as personagens no cenário.

Sakura Card Captors: Clear Card-hen
Na imagem: Rika vestida com o uniforme da escola de uma das personagens de Guerreiras Mágicas de Rayearth, em Sakura Card Captors: Clear Card-hen

Esse fato apresenta aos fãs o surgimento da possibilidade de não apenas estarmos vendo a mesma dimensão, mas a mesma temporalidade: Lucy, Marine e Anne estariam sendo recrutadas pela princesa Esmeralda para salvar Zefir, ao mesmo tempo que Sakura precisa capturar as Clear Cards em Tomoeda. As duas histórias estariam ocorrendo no mesmo cenário ampliado dentro do multiverso da CLAMP.

As possibilidades de discussão abertas pela CLAMP com a produção de Sakura Card Captors: Clear Card-hen são vastas, e possivelmente o anime ainda surpreenderá aos atentos às nuances da animação. Que possamos vibrar com cada escolha feita para unir esse multiverso, e que este fator seja mais um dentre tantos na história que cative também quem está chegando agora para conhecer essa obra tão apaixonante!

Autora convidada: Érica Calil Nogueira é Historiadora e game designer. Quando não está jogando cria teorias estapafúrdias sobre a vida o universo e tudo o mais enquanto faz crochê e assiste algo. Tem uma relação com o cosplay igual a teoria da quinta série: quando você acha que saiu dela acontece alguma coisa e ela brota novamente.

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