Com sequência confirmada para agosto deste ano, o premiado mangá infantojuvenil Shugo Chara! retorna com amadurecimento dos personagens e mais reflexões sobre as transições de etapas da vida. Seguindo uma estrutura tradicional de outras narrativas mahou shoujo, o mangá utiliza a fantasia para refletir sobre tempo, sonhos, relacionamentos e, acima de tudo, o valor de se perceber.
Lançado em 2007, o primeiro volume do mangá, quinto título publicado pela dupla de mangakás Peach-Pit, teve sua sequência anunciada pelas autoras através de suas redes sociais e pela revista Nakayoshi, na qual o mangá foi publicado desde o início.
Em 2008, Shugo Chara! ganhou o prêmio Kodansha Manga Award na categoria de melhor mangá infantil. A adaptação para anime surgiu em 2009, mesmo ano do lançamento de uma versão musical da obra no teatro. O mangá Shugo Chara! Jewel Joker está previsto para ser lançado no início de agosto e trará mais aventuras dos já conhecidos personagens da série.
A trama de Shugo Chara e a jornada de autoconhecimento de Amu Hinamori
A trama segue a vida de Amu Hinamori, uma estudante do sexto ano do ensino fundamental. Admirada por seus colegas pela postura fria e descolada, Amu esconde por trás dessa imagem uma garota bastante tímida, romântica e feminina.
A angústia da dualidade entre manter a aparência que acredita ser esperada dela e revelar seu verdadeiro eu é o que faz sua vida tomar um rumo mágico: em um dia como qualquer outro, ela acorda com três ovos misteriosos em sua cama.
Desses ovos nascem Ran, Miki e Su, pequenas criaturas mágicas chamadas guardian characters (“personalidades guardiãs”, em tradução livre), com o poder de dar a Amu os traços de personalidade que ela deseja. Na escola, Amu é convidada a integrar um grupo de estudantes chamados Guardiões, todos com seus próprios shugo charas, que juntos buscam o Embrião, um ovo que, segundo a lenda, realiza qualquer desejo.
Guardian characters e seus poderes
Os guardian characters, ou shugo charas, são como fadas nascidas do desejo das crianças de se conectarem com sua verdadeira essência. Kuukai, um dos amigos de Amu, possui Daichi, chara entusiasta por esportes que reflete a vontade do rapaz de ser um atleta.
Yaya, outra personagem proeminente, tem uma chara extremamente infantilizada, Pepe, que guarda o desejo da garota de se manter para sempre na infância. Para Amu, que ainda não sente ter se encontrado completamente, são oferecidas três (e depois quatro) personalidades distintas.
Simbolismo dos ovos em Shugo Chara!
Por mais absurda que a ideia de botar ovos (!) possa parecer, há um quê de simbolismo nada velado na premissa: o ovo funciona como uma representação de renascimento, uma nova realidade. A cada etapa da vida deixada para trás, vivenciamos um luto, mas que é logo encoberto pela descoberta de novas sensações, vivências e liberdades.
Tendo em vista a mecanização e a monotonia por vezes tão presentes na vida adulta, torna-se fácil esquecer os sonhos que por muito tempo caminharam no lugar de nossos pés. É com base nessa premissa que, no universo de Shugo Chara!, a representação de tais ideais é impossível de não ser percebida, já que se transforma em seres conscientes e dotados de personalidade.
Os charas são, no entanto, presentes apenas durante a fase da infância, e retornam para seus ovos quando sentem que a criança da qual nasceram atingiu a maturidade necessária para seguir em frente sozinha.
Garotas — e garotos — mágicas
Como de praxe em qualquer bom mahou shoujo, o mangá apresenta uma variedade de jovens garotas com a habilidade de se transformar: adquirem um uniforme de super-heroína impulsionado por magia, são acompanhadas por uma criatura mágica e, sozinhas ou em grupo, combatem o mal.
No que tange à temática de gênero, há um personagem que merece destaque: Nadeshiko, uma das melhores amigas de Amu. Inicialmente, Nadeshiko se apresenta como uma garota altamente feminina e ligada à dança, possuindo uma chara feminina que representa sua vocação para essa arte.
Mais adiante na história, é revelado que Nadeshiko na verdade é um rapaz, que também atende pelo nome Nagihiko e flutua entre os dois gêneros. Diferentemente do estereótipo do personagem crossdresser presente em inúmeras histórias, Nadeshiko assume suas duas identidades como parte não só da dança, mas também de seu cotidiano.
Mesmo que Nadeshiko decidisse se apresentar unicamente como um garoto, isso não faria diferença dentro do universo do mangá. O diferencial está na igualmente vasta quantidade de garotos que também passam por tal metamorfose mágica e funcionam como heróis, utilizando fantasias, companheiros mágicos e ataques com nomes em inglês.
A figura masculina na obra se apresenta em pé de igualdade no que diz respeito à luta contra o mal, à troca de vestuário e à coreografia de transformação. O motor das transformações dos heróis, aqui, não é determinado primariamente pelo gênero, mas sim pelo fator comum a todos os protagonistas e que move a história: a ânsia por se descobrir enquanto indivíduos.
O amadurecimento como a interrupção da magia
O intervalo entre a publicação do, por muito tempo, considerado último volume da saga (o décimo primeiro) e o subsequente décimo segundo volume ofereceu dois possíveis finais. No décimo primeiro volume, intitulado “O Caminho para o Futuro”, vemos Amu despedir-se de Ran, Miki e Su quando as guardiãs retornam para dentro de seus ovos. Com um tom melancólico, nos despedimos de personagens que foram a fonte de amadurecimento da protagonista, e consequentemente da história que é contada.
Com a ajuda de Dia, a última chara de Amu a eclodir, a garota passa por uma experiência subjetiva traduzida em uma viagem às estrelas, atravessando o passado e o presente de seus amigos e de si mesma, a fim de confrontar o fim de seu ciclo com as três guardiãs. Por mais “pouco recompensador” que o fim da magia possa soar para a conclusão de um mangá infantil, o final mais esperançoso para a protagonista é seu amadurecimento saudável.
Quebrando com o estabelecido no volume anterior, a edição 12 e final da história, também chamada “Shugo Chara! Encore”, é dividida em quatro capítulos destinados a mostrar um pouco mais do futuro de cada casal formado ao longo da narrativa.
Amu, com seu futuro amoroso deixado em aberto, termina de vez a história sendo recebida novamente por Ran, Miki e Su, que deixam seus ovos e retornam à vida da garota. Essa mudança de decisão narrativa pode ser vista tanto quanto uma recuada por parte das autoras, não conseguindo se desapegar do universo de sua história, mas também como uma mensagem de que vivemos em constante crescimento.
O peso das escolhas ao longo da vida
Shugo Chara! acaba por funcionar como uma versão infantil e infinitamente mais otimista da analogia da figueira de Sylvia Plath: nossa imaginação nos permite, de modo ilimitado, pensar em diferentes cenários que definem quem queremos ser e o que queremos fazer.
O esmagamento dessas opções, por vezes consideradas “irrealistas”, pode drenar não somente a capacidade criativa de alguém, mas também a capacidade de se imaginar em uma vida plena. Para sempre teremos tempo, mas cada vez menos liberdade para aproveitá-lo: quanto mais cedo nos encontramos, melhor.
Quando crianças, as possibilidades são infinitas; quando adultos, mais ainda. Isso porque o tempo avança junto ao peso dos rumos que tomamos para nos aproximarmos do que seria nosso futuro — e nosso “eu” — ideal.
Torna-se mais fácil também o arrependimento pela vida escolhida, algo que dá frutos à medida que escolhas como o que estudar e onde morar se tornam mais difíceis de serem reavaliadas e passam a ser apenas nossas. A realidade é que somos um só, e em algum ponto, a escolha dessa vida, desse “eu”, se fez a única opção possível para nossas versões mais novas. Parte de crescer é também se permitir ter sido jovem algum dia.
Shugo Chara! não almeja, em nenhuma medida, a desconstrução da garota mágica, mas apresenta uma nova faceta do tropo através do fato de que a pouca idade dos personagens, as inseguranças e o desejo de autodescoberta são justamente suas maiores fontes de poder.