Sylvia Plath e a linha entre a realidade e a ficção

Sylvia Plath e a linha entre a realidade e a ficção

Sylvia Plath foi uma escritora promissora e uma universitária brilhante que, após anos lutando contra a depressão, interrompeu a própria vida quando tinha apenas 30 anos. Através de seus diários, cartas, poesias e biografias, é possível encontrar muitas semelhanças entre a vida da escritora e o seu único romance A redoma de vidro e entre ela e a personagem principal do romance, Esther.

Em A redoma de vidro, uma jovem universitária tem a oportunidade de estagiar por um mês em uma revista em Nova York. Esse parece o cenário perfeito para alguém que está iniciando uma carreira, mas Esther Greenwood se sente vazia e desmotivada; algo dentro dela está paralisado e assim ela inicia uma jornada dolorosa com a depressão.

Uma jovem ambiciosa presa em um sistema patriarcal

A Redoma de Vidro

Esther Greenwood é uma universitária brilhante que está, teoricamente, na melhor fase da sua vida. Durante todo o livro nos é apresentado os seus sonhos e ambições. Ela quer ser uma grande escritora e poeta, ou uma brilhante professora universitária, ou até mesmo uma bem sucedida e respeitada editora. Esther tem potencial para alcançar tudo isso, já que é uma leitora assídua e uma estudante dedicada e até mesmo apaixonada.

Em contra partida, Esther conhece homens com quem ela se vê entrando em um relacionamento ou até mesmo homens com quem ela quer apenas se divertir. Mas durante os anos cinquenta, tudo que é esperado dela é que seja inteligente apenas até o ponto de ser interessante. Que ela tenha conhecimentos, mas não muito, porque uma mulher não deve adquirir conhecimento em demasia. Assim como é aceito que ela faça faculdade apenas para ser considerada um bom partido, mas não deve fazer nada com essa graduação. A única coisa que Esther deve saber é como cozinhar e cuidar do marido e dos filhos.

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Eu vi minha vida ramificando-se diante de mim como a figueira verde da história. Na ponta de cada galho, como um figo gordo e roxo, um futuro maravilhoso acenava e piscava. Um figo era um marido, um lar feliz e filhos, outro era uma poetisa famosa e consagrada, outro era uma professora brilhante, outro era a Europa, a África e a América do Sul, outro era Constantino e Sócrates e Átila e outros vários amantes com nomes exóticos e profissões excêntricas, outro ainda era uma campeã olímpica. E, acima de tais figos, havia muitos outros. Eu não conseguia prosseguir.

Encontrei-me sentada na forquilha da figueira, morrendo de fome, só porque não conseguia optar entre um dos figos. Eu gostaria de devorar a todos, mas escolher um significava perder todos os outros. Talvez querer tudo signifique não querer nada. Então, enquanto eu permanecia sentada, incapaz de optar, os figos começaram a murchar e escurecer e, um por um, despencar aos meus pés.

PLATH, Sylvia. A redoma de vidro, pág. 88. Ed. Biblioteca azul; 2 ed; Rio de Janeiro, 2019.

Sylvia Plath | reprodução

Portanto, Esther quer se apaixonar e ter uma família, um lar. Ou até mesmo conhecer vários homens interessantes com quem ela terá relacionamentos rápidos. Mas ela também quer ser uma profissional brilhante e ter uma carreira promissora. Ela quer viajar e falar várias línguas e conhecer pessoas interessantes. Como ter tudo o que se deseja sendo uma mulher em um sistema patriarcal?

É perceptível durante a narrativa o quanto a condição de mulher sufoca Esther. Ela está limitada, ela não pode ser quem quer e fazer o que quiser. Ela tem um manual a seguir e se sair da linha será condenada. Esther é uma mulher que estuda, tem conhecimento e é determinada o suficiente para alcançar tudo o que ambiciona, mas ela está acorrentada às limitações impostas ao seu gênero e às regras da década em que vive.

Enquanto está no estágio, Esther observa aquelas mulheres que apenas planejam se casar e seguir o que é esperado delas; ela enxerga o que está no seu futuro e não gosta. Se ela se conformar com que é esperado dela, a personagem sabe que terá de abdicar de todo o resto: as viagens, a literatura, a escrita, o conhecimento e sua carreira. Mas ao mesmo tempo, ela tem consciência de que ao priorizar a sua carreira, ela estará abrindo mão do seu desejo de se apaixonar e ter uma família.

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Parece injusto porque é. A ideia de que uma mulher talentosa e com tanto potencial não pode ter uma carreira e uma família é limitante e absurda. Para a época, e infelizmente ainda hoje, a mulher deveria se dedicar integralmente a família, pois essa é a sua missão na terra. Qualquer desejo fora disso deve ser eliminado e esquecido.

Os Diários de Sylvia Plath
Sylvia Plath começou a escrever diários aos onze anos e escreveu até a sua morte. Neles, ela colocou toda a sua angústia, reflexões melancólicas e sonhos, assim como suas experiências. Através de seus diários, é possível perceber que ela também tinha os mesmos desejos de Esther Greenwood, e que se sentia tão sufocada quanto.

Assim como a sua personagem, Plath também queria ser escritora, editora e professora. Ela gostaria de viajar pelo mundo afora e falar várias línguas. Mas também tinha o desejo de se apaixonar, de ter um lar e uma família. E assim como Esther, Sylvia não conseguia enxergar uma maneira de ter tudo isso. Ela também não queria ter que escolher um lado e abrir mão de todos os outros.

Para que serve minha vida e o que vou fazer com ela? Não sei e sinto medo. Não posso ler todos os livros que quero; não posso ser todas as pessoas que quero e viver todas as vidas que quero. Não posso desenvolver em mim todas as aptidões que quero. E por que eu quero? Quero viver e sentir as nuances, os tons e as variações das experiências físicas e mentais possíveis de minha existência. E sou terrivelmente limitada.

Os diários de Sylvia Plath, Pág 59; Editora Biblioteca Azul. 2 ED. São Paulo, 2017

Sylvia Plath durante os anos 50.
Sylvia Plath durante os anos 50 | reprodução
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Porém, como humanos somos limitados. Não é possível ter tudo e viver cada experiência presente no mundo. Não é possível estar em todos os lugares e sentir tudo de diversas formas. Cada um tem as suas experiências e segue uma trilha que leva à um destino particular. Assim como cada escolha é uma renúncia, também existe um limite do que se pode fazer e viver. Mas é justamente a consciência dessa limitação que deixava Sylvia à beira do desespero. E o fato de ter sido uma mulher em plenos anos 50, tornava tudo ainda mais difícil.

Gostaria de ser qualquer um, aleijado, moribundo, puta, e depois retornar para escrever sobre meus pensamentos, minhas emoções enquanto fui aquela pessoa. Mas não sou onisciente. Tenho de viver a minha vida, ela é a única que terei. E você não pode considerar a própria vida com curiosidade objetiva o tempo todo…

Os diários de Sylvia Plath, Pág 21; Editora Biblioteca Azul. 2 ED. São Paulo, 2017*

Sylvia Plath não só era alguém que queria sentir cada nuance da existência humana, mas também era uma escritora comprometida e rigorosa. Ela colocava muitas expectativas em sua escrita e queria ser o melhor que pudesse; o que para ela era muito, já que era extremamente exigente com si. Sylvia não queria apenas escrever, ela queria sentir tudo sobre o que escrevia, queria viver cada gota da vida, em todas as suas variedades, e colocar toda essa experiência e agonia em palavras em um papel.

De certa forma, isso é um dos motivos que a faz a depressão dar os primeiros sinais em Esther. É essa impotência, essa sensação de que não importa o quanto você deseja, você não consegue mudar o mundo e nem sempre é possível se dar bem na contra mão.

A luta de Sylvia Plath contra a depressão

A história inicia com Esther já em Nova York para um estágio de mês. Essa poderia ser a oportunidade da vida dela e o início de pelo menos uma das profissões que ela tanto almeja. Porém, ali na cidade dos sonhos de tantos, em um estágio promissor e no meio de outras mulheres, ela, lentamente, começa a se sentir melancólica e, em certa medida, apática.

Acontece que eu não estava conduzindo nada, nem a mim mesma […] (Me sentia muito calma e muito vazia, do jeito que o olho de um tornado deve se sentir, movendo-se pacatamente em meio ao turbilhão que o rodeia).

Página 9, A redoma e vidro, Sylvia Plath

Quando o estágio acaba e Esther volta para casa, ela entra em uma espiral depressiva e não consegue sair do quarto ou fazer qualquer outra coisa. Uma conhecida da família a indica um psiquiatra, o que a leva a ser internada e, consequentemente, a sofrer eletrochoques.

Sabe-se que Plath já havia tentado suicídio antes da sua morte aos 30 anos, e que ela foi internada em um hospital psiquiátrico quando ainda estava na faculdade. Em seus diários, ela não traz muitos detalhes, apenas em algumas passagens específicas dá a entender que esteve longe da faculdade por um tempo, o que hoje sabemos que era durante as suas internações.

Enquanto alguma coisa dobrou-se sobre mim e me dominou e me sacudiu como se o mundo estivesse acabando. Ouvi um gincho, iii-ii-ii-ii-ii, o ar tomado por uma cintilação azulada, e a cada clarão algo me agitava e moía e eu achava que meus ossos se quebrariam e a seiva jorraria de mim como uma planta partida ao meio.

Fiquei me perguntando o que é que eu tinha feito de tão terrível.

PLATH, Sylvia. A redoma de vidro, pág. 88. Ed. Biblioteca azul; 2 ed; Rio de Janeiro, 2019

Em certo ponto de A redoma de vidro, antes de ser internada, Esther toma uma certa quantidade de remédios e se esconde debaixo da casa de sua mãe, que a procura por horas antes de encontrá-la desacordada. Algo semelhante aconteceu com a própria Plath. Quando estava na faculdade, a autora também tomou uma quantidade específica de remédios e se escondeu debaixo da casa, sendo encontrada apenas horas depois.

"Smith Girl Missing in Wellesley." The Boston Post. August 25, 1953: 7.

“Smith Girl Missing in Wellesley.” The Boston Post. August 25, 1953: 7.

Em Esther, Sylvia encontrou uma maneira de ficcionalizar a própria dor, a própria luta contra a depressão e as suas agonias. Através da sua personagem, ela contou, de certa forma, a sua história, os seus anseios, desesperos e ambições. Porém, há muitas discussões no meio literário sobre como não devemos explorar a vida de uma autora ao analisarmos a sua obra, pois acreditam que é necessário haver uma dissociação entre obra e a vida pessoal da escritora.

Porém, quando se trata de Sylvia Plath, é mais complexo. Lendo seus poemas, diários e seu único romance, fica difícil não comparar com a sua própria vida. Há tantos elementos essenciais de suas obras que são (se não idênticos) próximos da vida da autora, sendo impossível não associar a vida real da ficção.

A escrita de Plath como um farol

A escrita de Sylvia Plath é como um farol

Plath tinha a escrita como um farol ou um bote salva-vidas. Para ela, escrever era uma forma de se manter viva, de sentir cada nuance da sua limitada existência. Pensando assim, fica claro que a escrita era uma forma de entender o que se passava dentro dela e deixar registrado o que ela sentiu, o que ela pensou e também de entender o mundo a sua volta.

Como explicar para Bob que minha felicidade depende de arrancar um pedaço da minha vida, um fragmento de aflição e beleza, e transformá-lo em palavras datilografadas numa página? Como ele poderia entender que justifico minha vida, minhas emoções ardentes, meu sentimento, ao passá-los para o papel?

Os diários de Sylvia Plath, Pág 36; Editora Biblioteca Azul. 2 ED. São Paulo, 2017

Sylvia Plath é o exemplo de alguém que respirou arte, que apenas encontrou sentido dentro da escrita; o que faz sentido, considerando o quão sensível ela foi. A autora norte-americana sentia de forma catastrófica, pois cada poro do seu corpo parecia experimentar a vida e seu coração capaz de sentir todas as emoções possíveis. Portanto, não é surpresa que ela utilizava a escrita como forma de colocar para fora seus sentimentos e pensamentos, como forma de absorvê-los e compreendê-los.

A escrita pode ser um encontro da pessoa com ela mesma, pode ser a ponte para o autoconhecimento e, consequentemente, para o conhecimento sobre o mundo. E no caso de Plath, arte não se limitava não somente à escrita: mas também se estendia à pintura e colagens.

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Autorretrato, em estilo semi-abstrato, de Sylvia Plath.
Autorretrato, em estilo semi-abstrato, de Sylvia Plath. Courtesy Estate of Robert Hittel, ©Estate of Sylvia Plath | FONTE: Huckmag

Sylvia Plath teve um fim trágico. Aos 30 anos, poucas semanas antes da publicação de A redoma de vidro, a autora tirou a própria vida. Antes de morrer, Sylvia trabalhava como professora e, além do romance, escreveu diversos poemas, até hoje ainda aclamados e estudados. É quase impossível não imaginar a vida que Plath teria se pudesse viver mais, por quanto mais ela poderia ser devota à arte e o quanto ainda iria presentear o mundo com ela.

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Ao contrário da autora, Esther termina o romance se recuperando. Não há um final surpreendente e uma reviravolta que fez a personagem perceber o quanto viver é incrível e redescobrir o sentido da vida. Plath jamais faria isso. Ela foi alguém que conheceu intimamente a dor e o desespero, a devastação que a depressão deixa. Então, como a excelente escritora e a pessoa sensível  que era, ela terminou o romance da melhor maneira possível: sua personagem retomando a rotina aos poucos, continuando o tratamento com a consciência de que era alguém renascendo das cinzas – uma verdadeira Lady Lazarus –  alguém que precisaria seguir com cautela e, claro, esperança.

Devia haver um ritual para quem nasce pela segunda vez – remendada, recauchutada, pronta para pegar a estrada novamente.

PLATH, Sylvia. A redoma de vidro, pág. 274. Ed. Biblioteca azul; 2 ed; Rio de Janeiro, 2019

Por fim, talvez seja possível, em uma dimensão paralela, imaginar que Sylvia Plath, assim como Esther, pegou a estrada novamente. Que os tratamentos deram certo e que ela manteve a esperança. É também tentador pensar que Esther, assim como Plath, escreveu um romance e publicou suas obras.

Talvez, por um breve momento e em um lugar suspenso, realidade e ficção de fato colidem, onde Esther e Sylvia finalmente conseguem o que seus corações tanto desejavam e as suas vidas e obras são mais importantes do que a morte. Pois é assim que Sylvia Plath merece ser lembrada: vívida, brilhante e, acima de tudo, feliz.

Notas

*A citação foi tirada diretamente dos diários da Sylvia Plath, portanto, está exatamente como ela escreveu. Alguns termos usados por ela podem causar desconforto, mas é importante lembrar que Sylvia Plath era uma mulher dos anos 50, portanto, não tinha a mesma visão que temos hoje.

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Estudante de Letras. Obcecada por livros a ponto de não saber mais como viver no mundo real. Apaixonada por literatura inglesa e filmes de época. Praticamente um Hobbit, seja pelo tamanho, por passar muito tempo lendo ou por nunca dispensar uma xícara de chá.
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