“Flowers”, de Miley Cyrus, e o poder da arte para as mulheres

“Flowers”, de Miley Cyrus, e o poder da arte para as mulheres

Quase cem anos após Virginia Woolf ter escrito que “Mrs. Dalloway decidiu que iria ela mesma comprar as flores”, Miley Cyrus lançou uma música dizendo que “eu posso comprar flores para mim mesma”. Cem anos separam o romance Mrs. Dalloway da música Flowers, mas não parece nem um pouco menos apropriado falar sobre mulheres que decidiram comprar flores por si mesmas, para si mesmas. Na verdade, há algo de necessário em afirmar, por meio da arte, a autossuficiência e o amor-próprio feminino. E Miley Cyrus não está sozinha nisso.

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Quem é Miley Cyrus?

Ainda no começo de 2023, o nome de Miley Cyrus ficou em alta com o lançamento de um nove single: Flowers está em alta em diversas plataformas musicais e gerou polêmica devido à interpretação de que seria uma indireta para seu ex-cônjuge, o ator Liam Hemsworth. Por um lado, a música foi recebida muito bem como uma mensagem singela de amor-próprio e tendo Miley Cyrus em seu melhor. Por outro lado, o que não faltou foram reportagens machistas, se interessando muito mais com a vida íntima de Miley, do que sobre seu trabalho em si.

É muito comum que a mídia e uma parte do público se mostrem ressentidos quando uma artista age com independência perante seus problemas pessoais. Principalmente quando isso se reflete em seu trabalho. Falar sobre relacionamentos reais e atitudes de mulheres reais, sempre vai gerar desconfiança e desgosto em sociedades patriarcais. Ainda que, no fim, o resultado disso sejam obras maravilhosas, como é o caso de Flowers.

Miley Cyrus no clipe "Flowers": “eu posso comprar flores para mim mesma”
Miley Cyrus no clipe “Flowers” | Imagem: Reprodução

Mas, segundo a lógica misógina, mulheres não podem desenvolver seus sentimentos além daqueles para os quais elas foram designadas. Sabe-se, por exemplo, que a submissão e o amor incondicional são sentimentos vistos como tipicamente femininos. Desse modo, Miley Cyrus teve que falar em diversas entrevistas sobre questões envolvendo seu antigo casamento, dentre elas, o público estaria incomodado com o fato de que ela “seguiu em frente”. Além disso, após o término, ela se relacionou com uma mulher, o que reforçou os preconceitos contra ela, pois além de mulher, Miley se identifica como LGBTQIAP+.

Outro caso: Shakira

Além da música Flowers, Shakira — cantora, produtora e compositora colombiana — lançou a música Bzrp Music Sessions #53 em parceria com o produtor argentino Bizarrap, na qual faz clara referência a seu ex-cônjuge e ao fim de seu casamento com ele. Ambas cantoras sofreram escândalos na mídia por traições e comportamentos tóxicos por parte deles. E ainda que sejam cantoras de estilos diferentes, as duas decidiram expor um ótimo trabalho, que reflete experiências pessoais e ainda comove o público de modo universal. Sobretudo o público feminino.

No caso de Shakira, há o destaque da música ser cantada em espanhol, sua língua materna Isso gera a sensação da cantora estar confortável enquanto canta. Ao mesmo tempo, é também a língua materna de Piqué. A começar por isso, a cantora retoma, por meio da sua música, características dolorosas de seu relacionamento, como que encerrando o que eles tinham em comum, narrando-lhe tudo que se desfez entre eles. Afinal, as duas músicas são direcionadas à segunda pessoa do singular, o “você”.

Shakira em BZRP Music Sessions #53
Shakira em BZRP Music Sessions #53 | Imagem: Reprodução

É perceptível que há mais sentimentos do que somente o amor-próprio. Há raiva também. Há alívio. E por que essas manifestações emocionais e artísticas são tão criticadas? Espera-se tanto a tal da superação, mas por que e o que seria “superar”? Tanto Shakira quanto Miley Cyrus falam sobre amor em seus refrões. Shakira refere-se a si mesma como “loba” e Cyrus diz que “eu posso me amar melhor do que você pode”. No fim, a raiva e a tristeza não são o fim, mas meios do amor se manifestar. E o amor não como uma forma deturpada de exploração, mas como a arte de criar e acima de tudo, se inventar.

A solitude feminina através dos tempos

Mrs. Dalloway é um dos incontáveis exemplos da literatura sobre mulheres que refletem sobre suas próprias solidões. Se sentir só, no mundo, nunca foi, para essas autoras, cineastas, compositoras, uma lamentação. Ser mulher é estar só. Mas ao mesmo tempo, nunca estar. É sobre isso que, por exemplo, Clarice Lispector representa em grande parte de sua obra, especialmente quando diz que “não era mais uma menina com seu livro, mas uma mulher com seu amante”.

A solitude possui muitas facetas, uma delas é, sem dúvida, o sentimento de independência e liberdade. Solidão e mudança muitas vezes andam juntas, e pode-se constatar isso com a quantidade de obras feitas por mulheres, em todas as fases da vida, sobre amadurecer e estar sozinha.

Virginia Woolf: “Mrs. Dalloway decidiu que iria ela mesma comprar as flores”
Virginia Woolf | Imagem: Reprodução

Especialmente a arte, é uma forma de falar sobre a autossuficiência, a qual não anula a solitude. Estar só não significa ser suficiente ou insuficiente. A sociedade patriarcal faz as mulheres serem vistas como objetos que precisam ter utilidades, ou seja, podem ser completas ou incompletas. Mas isto está errado. E amadurecer significa encontrar seus próprios propósitos. Por isso, ainda que as mulheres sejam muito jovens, já conseguem escrever coisas tão belas e profundas sobre suas próprias vidas.

A autossuficiência feminina é um pesadelo para o poder dos homens

Um bom exemplo é a música hit de Miley Cyrus, Wrecking Ball, lançada quando ela tinha 20 anos, na qual ela diz:

I came in like a wrecking ball
I never hit so hard in love

(“Eu cheguei como uma bola de demolição

Eu nunca amei tão forte assim”)¹

A rapidez com que precisam amadurecer, a sinceridade com a qual olham para seus sentimentos, a honestidade com a qual se relacionam e se deixam sentir. Tudo isso torna as mulheres e consequentemente a arte por elas produzidas, uma ameaça constante para a estrutura violenta do patriarcado.

Para a continuação dessa estrutura, as mulheres precisam ser submissas, histéricas, sentimentais. Além de tudo, a análise feita da arte produzida por elas é superficial ao extremo, pois quase nunca considera todo esse contexto de constante abuso e supressão nas quais as mulheres crescem. 

Miley Cyrus - Grammy 2013
Miley Cyrus – Grammy 2013 | Imagem: Reprodução

A liberdade de ser alguém só, alguém apaixonado, alguém arrependido, não existe para mulheres. Por que, afinal, incomoda tanto que Emily Brontë tenha feito um livro que não é simplesmente sobre o amor romântico de uma mulher por um homem? Ou que cantoras da atualidade falem, honesta e poeticamente sobre sua raiva e sua paixão?

É tão necessário, até hoje, falar sobre autossuficiência, porque ainda há quem imponha uma regulamentação moral, baseada em uma lógica misógina, sobre a arte criada por mulheres. O protagonismo feminino deve sempre seguir uma ideia de feminilidade que não existe de fato.

Há uma insurgência do assunto da autossuficiência, acompanhado do amor-próprio. Com avanços das conquistas feministas, cada vez mais as mulheres conseguem se politizar a respeito do sexismo e assim, lidarem melhor com as consequências dessa estrutura em suas vidas. Contudo, não é possível simplesmente escapar da masculinidade tóxica ou da agressividade masculina. Não é o bastante que mulheres façam terapia, porque não está sob o controle delas as traições conjugais como as que ocorreram às cantoras. Então, o que fazer?

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Realidades múltiplas, feminismo múltiplo

A arte é uma ferramenta de reflexão e mudança cultural. Não há um único povo sem manifestações artísticas, desde os primórdios da humanidade. O conceito de arte, música e poesia se modifica com o tempo, a corrente teórica e a sociedade em questão. Isso porque, no mundo inteiro, as diferenças culturais existem e sempre existiram. Mesmo nas comunidades pequenas, como a população de uma cidade, vão se diferenciar umas das outras. O modo de vida de uma mulher na periferia de São Paulo não é o mesmo que uma mulher de classe média alta novaiorquina. As preocupações delas são diferentes, seus sonhos são diferentes. E portanto, suas histórias serão diferentes, e a forma como elas as contam também.

Contudo, ao mesmo tempo que a arte permite-nos entender a multiplicidade das mulheres — fator tão importante para a verdadeira sororidade — ela permite-nos encontrar as semelhanças entre essas mulheres. O abuso por figuras masculinas está presente quase que em unanimidade no mundo feminino. Por todos os cantos do mundo, a misoginia se espalha e prejudica inúmeras meninas e mulheres. Mas a resiliência, a sensibilidade, a autossuficiência e a solidão, também são pontos em comum entre elas.

Liniker - Grammy Latino 2022 
Liniker – Grammy Latino 2022  | Imagem: Reprodução

Voltamos a citar Virginia Woolf, desta vez para falarmos de sua obra Um Teto Todo Seu, na qual discute a importância de boas condições para que a mulher possa escrever. E, consequentemente, a importância da própria escrita para as mulheres. O tempo passou e desde então, a escrita não perdeu a sua potência em resgatar a força e também a sensibilidade feminina daquelas que escrevem.

É fundamental que a arte — como meio de expor seus sentimentos, desde a frustração por um relacionamento tóxico, até a alegria de poder convidar a si mesma para dançar — seja não apenas normalizada, mas incentivada. E que esse espaço seja cada vez mais abrangente, envolvendo artistas trans, negras, amarelas, PCD ‘s. Um exemplo são as cantoras Kim Petras e Liniker – ambas transexuais, sendo Liniker também negra – que venceram um Grammy cada. 

Kim Petras - Grammy Awards 2023
Kim Petras – Grammy Awards 2023 | Imagem: Reprodução

Sobre dançar consigo mesma

Por fim, a música de Miley Cyrus é, do começo ao fim, sobre dançar consigo mesma. Ela, sozinha no clipe, consegue demonstrar sua força. O ritmo é marcante, com versos que se repetem e uma batida suave. Ela fala com leveza sobre um problema difícil que teve que enfrentar. Ela fala sobre superar, mas tudo bem se não dissesse.

Shakira não o disse e sua música ainda cobre muito bem tudo o que aqui foi discutido. Não é apenas sobre ser forte e superar, porque as mulheres sempre têm de ser! É sobre ser real. Aprendemos a amadurecer mais rápido, a reprimir nossos sentimentos, mas não precisa ser assim. E a música, a poesia, a arte no geral, nos permite abrir nosso coração para quem somos de verdade. Mesmo em nossa tristeza. Mesmo quando estamos feridas.

Miley Cyrus no clipe "Flowers"
Miley Cyrus no clipe “Flowers” | Imagem: Reprodução

Mulheres sempre fizeram arte com sua essência. E que bom! Talvez os assuntos sobre a condição feminina jamais se extinguirão. E através dessas obras, tão bem-feitas e reais, é possível entender nossas diferenças e semelhanças e acolher — a nós mesmas e as outras — como quem compra flores.

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Referências e notas

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Estudante de Letras na Universidade de São Paulo, apreciadora de boas histórias e exploradora de muitos mundos. Seus sonhos variam entre viajar na TARDIS e a sociedade utópica onde todos amem Fleabag e Twin Peaks.
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