Love – 3ª temporada: estamos sendo levadas a empatizar com homens horríveis

Love – 3ª temporada: estamos sendo levadas a empatizar com homens horríveis

À quem pertence a voz que dita o que é o amor?

A cultura, sem dúvida, é fonte onipresente das narrativas românticas e influencia na nossa forma de ver o mundo e aprender com ele. Mas dentro da nossa cultura capitalista e contemporânea, existem remetentes comuns nessas mensagens que nos ensinam como definir sentimentos, como identificar a paixão, o amor e como se comportar em relacionamentos. O que podemos descobrir quando identificamos que os detentores dessas vozes são, em sua imensa maioria, homens brancos americanos?

A série Love terminou em sua terceira temporada, contando a trajetória do casal Gus (Paul Rust) e Mickey (Gillian Jacobs) —  que começou há menos de 6 meses na cronologia da série, diga-se de passagem  —  e apostou na identificação de um público sedento por histórias que explorem as novas facetas dos relacionamentos modernos.

As dificuldades de se relacionar atualmente podem parecer distintas das questões das décadas passadas. Mas o que a história de Gus e Mickey nos conta sobre essa versão de amor moderno é que talvez a forma tenha se atualizado, mas o conteúdo, parece continuar basicamente o mesmo.

O romance improvável entre o nerd aspirante a roteirista e a produtora de rádio alcoólatra e viciada em sexo começou e terminou algumas vezes durante as últimas duas temporadas, vagando por diversos lugares comuns — a atriz bonitona que se interessa por Gus e atrapalha o início do romance, a recaída de Mickey na bebida que acarreta uma outra recaída emocional com ex-namorado, diversos maus entendidos que poderiam ser evitados com comunicação, entre outros motes constantes nessas narrativas — e nessa terceira e última temporada, não conseguiu criar um seguimento interessante para esse romance improvável.

O que queremos dizer com isso é que a série não oferece novas abordagens sobre amor que a diferencie da comédia romântica tradicional e reforça estereótipos sobre o amor romântico há muito reproduzidos pelas indústrias culturais e por Hollywood, mesmo que atualize em seu formato alguns aspectos de estilo que tornam Love compatível com as narrativas seriadas da Netflix, como a trilha sonora moderna, a montagem ritmada e as redondezas gentrificadas de Los Angeles.

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Paul Rust parece um Woody Allen jovem

Gus, o pior de todos

Comédias românticas costumam ter uma população de homens horríveis acima da média. Quem não se lembra de como Ross e Ted eram os piores personagens de Friends e How I Met Your Mother, respectivamente?

A chantagem emocional, a perseguição com a pessoa amada, o senso de direito do tempo e atenção dos outros, além de traições e mentiras – são aspectos comuns entre Ross e Ted que são novamente explorados na personalidade de Gus.

São pouquíssimos os requisitos necessários para a história de um mocinho sem graça merecer visibilidade e por conta disso, a televisão é lotada de homens imaturos que são tratados com empatia, apesar das constantes demonstrações de desumanidade por parte deles.

Dessa forma, o olhar masculino e branco do criador Judd Apatow atravessa personagens e situações e faz tanto do enredo, quanto de Gus e Mickey, uma extensão de sua visão de mundo. Nesse cenário, em que o personagem de Gus representa ao mesmo tempo o protagonista e um alter-ego do próprio autor, não é a toa que toda a narrativa seja guiada pelo seu olhar, e mesmo as péssimas atitudes, a misoginia que Gus demonstra, seja tratada pela série com condescendência. O próprio Judd se perdoa, e por isso mesmo, perdoa seu personagem. Gus tem passe livre para errar o quanto puder com Mickey e os outros, porque a história está do lado dele.

Gus é professor particular da atriz mirim Arya (Iris Apatow), e sonha em se destacar como roteirista ou diretor na indústria do entretenimento de Hollywood. Seu trabalho como professor é basicamente um pretexto para que ele consiga se envolver no meio do show business, uma vez que Gus não tem nenhuma intimidade visível com pedagogia ou licenciatura, muito menos interesse em repassar conhecimento de qualidade à Arya. São várias as cenas que Gus trata com desprezo seu ofício e ignora as reclamações de Arya por não frequentar uma escola regular.

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A relação de Gus e Arya é marcada pelos interesses pessoais de Gus, que tenta tirar algum proveito da relação com a jovem celebridade para se destacar na sua área, passando por cima de vários momentos de desiquilíbrio, estresse e problemas mentais da garota, que são explorados na série sem que uma crítica ou um debate profundo seja mantido. Arya representa todas as atrizes mirins que por conta do sucesso e da fama, nunca puderam ter uma vida saudável e condizente com sua idade.

Obrigada pelos pais a permanecer no mundo do entretenimento, ela expressa seu descontentamento com a própria vida para um Gus surdo aos problemas alheios. Na cena que ela é obrigada a dar seu primeiro beijo em um outro ator mirim por quem ela era interessada, e logo em seguida a rejeita por outra atriz do elenco, Gus faz o papel do advogado do diabo: ele deve convencer Arya a fazer a cena contra a própria vontade.

A “volta por cima” de Arya na série é dar seu primeiro beijo em cena para “provar” seu profissionalismo. Essa é a grande lição de Gus à menina: engula seus sentimentos e seu desconforto e mostre pra eles que você sabe fazer o que te mandam. Se essa é uma boa mensagem a ser passada para as meninas jovens da atualidade, aí já discordamos.

Assim como no trabalho, Gus também trata suas relações com o mesmo interesse que ele aplica à seu ofício: enquanto estiver bom pra ele, ok.

O problema com Mickey

Mickey é um outro problema a parte: construída a partir de quase todos os estereótipos comuns da “garota legal” atual, a personagem parece ter sido criada sob encomenda para apaixonar um garoto hipster, conhecida pelo termo Manic Pixie Dream Girl. Descolada e desbocada, ela é (para felicidade masculina geral) viciada em sexo, o que a faz entrar em relações sem compromisso por puro vício físico.

Feminista auto-declarada, ela para pouquíssimas vezes para refletir sobre a situações das mulheres fora a própria situação, e não demonstra o menor conhecimento ou interesse na luta das mulheres. O feminismo de Mickey funciona mais como uma marca de estilo, uma questão de personalidade que abre precedente para os comportamentos atrapalhados da jovem.

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Desde a primeira temporada, Mickey tem uma relação estranha com um chefe abusador e claramente violento, que ela protege e perdoa. Locutor de um programa de rádio sobre “relacionamentos”, o Dr. Greg Colter (Brett Gelman) jura que oferece conselhos matrimoniais e sexuais em seu programa, enquanto apenas destila misoginia e visões patriarcais sobre relacionamentos.

Apesar de reconhecer a completa falta de realidade do chefe, Mickey trabalha incessantemente para resolver os problemas causados por ele. O fato do Dr. Greg já ter ameaçado o emprego de Mickey a ponto de fazê-la transar com ele para não ser demitida, parece um fator pequeno perto da energia que ela gasta para proteger os sentimentos desse homem alucinado.

No fim das contas, o óbvio

A convencionalidade de Love tem muito mais a ver com seu conteúdo, apesar do formato também não apresentar grandes novidades. O desenvolvimento das personagens a e a criação do enredo nos leva para lugares incansavelmente explorados por outros produtos anteriores.

Mas é curioso que, apesar da semelhança com a comédia romântica tradicional, Love nem ao menos tenta criar um protagonista que inspire empatia. Não impressiona que o único final possível para esse romance seja exatamente o mais comum e mais conservador: o casamento.

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Feminista Raíz
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