As personagens femininas de Shonda Rhimes, autora de Grey’s Anatomy, possuem intrinsecamente um propósito para existir, sendo assim, ao construir a estrutura de cada elemento na vida de Meredith, Shonda apresenta alguns aspectos que colocam seu público em um lugar de desconforto. Talvez a autora não o faça de caso pensado e não espera as incansáveis análises que a dramaturgia cria, mas certamente proporciona um diálogo muito aberto com seu público.
Umas das personagens mais complexas criadas por Rhimes, é Miranda Bailey, que devido a brilhante audição da atriz Chandra Wilson, fez com que a roteirista mudasse a personagem que, a princípio, seria caucasiana, loira, de cabelos cacheados, e teria uma aparência de ternura, mas uma personalidade dura e seca. Chandra Wilson deu vida a uma médica brilhante, que dentro de toda adversidade vivida por ela, ainda consegue ser vulnerável, mas não necessariamente de uma maneira clichê.
AVISO: O texto contém spoilers a seguir
Miranda Bailey inicia sua carreira no Seattle Grace Hospital e é apresentada ao público como “Nazi”, termo de cunho extremamente pesado que, em 2005, talvez tenha sido pouco questionado pelo público. Uma verdadeira ironia uma mulher negra e de estatura baixa ser denominada de forma tão pejorativa, principalmente devido ao antigo estereótipo da mulher negra brava.
A complexidade de Miranda demonstra muito bem as diversidades que uma mulher negra enfrenta em seu cotidiano. Miranda era uma garota que gostava de cultura nerd e que tinha uma mãe muito protetora em sua vida, sempre dedicada e inteligente. Contudo, Bailey casou-se muito cedo e ainda por cima estava em um ambiente de trabalho que para ser levada a sério, teria de se comportar com mais dureza que o necessário.
A necessidade de auto afirmação da mulher em um ambiente de trabalho não é novidade para ninguém, fazendo com que Bailey fosse mais exigente não apenas com ela mesma, mas inclusive com seus alunos e colegas de trabalho. É desconcertante pensar que ao ser uma mulher exigente, brava e “constantemente de mau humor”, ela mereça ser apelidada de nazista, pois ironicamente nenhum homem na mesma posição com os mesmos comportamentos teria esse apelido, principalmente sendo negro.
Características de Miranda Bailey em Grey’s Anatomy
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Miranda Bailey tem a grande dualidade interna. Ao mesmo tempo em que ela respira o estereótipo de mulher negra brava, ela ainda sim tem um coração de mãe, onde possui dificuldades em não se envolver emocionalmente com seus pacientes, alunos e colegas de trabalho. Para a telespectadora a dualidade da personagem é tão dicotômica que ela sintomatiza sua vulnerabilidade, portanto ao invés de lidar com seus sentimentos internos, Miranda adoece, mas sempre somos capazes de vê-la sendo amorosa e gentil com aqueles que realmente importam para ela.
O histórico de Miranda demonstra como ela tem medo da própria vulnerabilidade e a série mostra isso a telespectadora com uma narrativa tocante e emocionante. Bailey viveu alguns traumas em sua carreira médica e desenvolveu certos comportamentos defensivos para manter seu equilíbrio interno. Além de conseguir realizar seus sonhos profissionais, ao tornar-se a melhor de sua turma e alcançar o mais alto cargo que poderia, mantendo seu padrão de exigência, Bailey sacrificou muito para realizar todos esses movimentos.
Relação amorosa vs Vida profissional
Inicialmente, Miranda era casada com Tucker Jones (Cress Williams). A princípio a médica não conta a todos que ela é casada, o que soa para seus colegas como uma surpresa, pois eles foram casados por 10 anos e tiveram um filho. O casal separa-se devido a uma divergência em relação a residência pediátrica que Miranda quase fez. Por mais que a relação dos dois fosse relativamente estável, é notável o conflito interno dela: o de ser mãe e trabalhar, além de como conciliar as duas coisas sem sentir culpa.
Após seu divórcio, Bailey se envolve com um anestesista chamado Ben Warren (Jason Winston George), e o drama da relação dos dois é um tanto complicado. Entre idas e vindas, os dois acabam se casando e Ben consegue ter uma boa relação com a esposa e seu enteado, mas uma relação bastante conturbada ao tentar se tornar cirurgião. Ao longo de toda relação do casal, o anestesista volta a fazer residência, muda de estado, regressa a Seattle e consegue ser residente em Seattle Grace Hospital. Infelizmente, Miranda se envolve com alguém muito volátil e indeciso, que está a todo momento em busca de uma dose de adrenalina. E por fim, após uma série de eventos que levariam a suspensão permanente da prática médica, sanção que não é aplicada a Warren, ele resolve se tornar bombeiro.
Enquanto isso, Bailey teve suas próprias desventuras tentando se tornar chefe de cirurgia, tendo a todo momento que provar aos seus superiores e colegas de trabalho que ela era competente, determinada e a melhor opção para a tão almejada vaga. Na décima quinta temporada, entretanto, vemos uma história nova que coloca Bailey como protagonista e que demonstra muito bem o que um corpo em estresse pode viver e aguentar.
TOC, AVC e a vulnerabilidade de Miranda Bailey
Pouco antes de se casar com Ben, Miranda desenvolve transtorno obsessivo compulsivo devido a morte de três pacientes que foram infectados por conta de uma bactéria. Bailey inicia esse processo ao descobrir que foi devido a uma decisão dela que tais infecções ocorreram e levam a cirurgiã a questionar se ela está realmente esterilizada para realização de cirurgias em geral.
Ao longo da última temporada, Miranda sofre um ataque cardíaco, e esse episódio foi inteiramente dedicado a ela e ao próprio diagnóstico. A médica fora em outro hospital e se auto diagnosticou, pois tinha receio de ser vista como fraca no próprio ambiente de trabalho. Toda a história que envolve o AVC vivido por Bailey, coloca na tela os receios que uma mulher que sempre foi dedicada e apaixonada por sua profissão, vive. Medo de parecer fraca diante de seus colegas de trabalho, de ser julgada por ter adoecido, de perder a credibilidade por que seu corpo não “deu conta” do recado.
A audiência conhece Miranda Bailey, sabe de seus esforços e dedicação a sua carreira, mas talvez não entenda que todas as respostas físicas dela são maneiras de demonstrar sua vulnerabilidade. Uma demonstração fantástica de que ela é super poderosa, mas também é humana. Que por mais que ela tente arranjar um sintoma físico para abafar sua vulnerabilidade e alcançar todos os seus objetivos, ela precisa lidar com o ambiente no qual seu emocional está inserido.
Na temporada atual ela está fazendo terapia, pois se deu conta de que todo o estresse vivido não está sendo desencadeado apenas de fora para dentro, mas também de dentro para fora, ou seja, ela está em um ambiente que a estressa, com um relacionamento que a todo momento o seu parceiro está em perigo, e agora ela finalmente consegue admitir que não está no controle o tempo todo. Essa manifestação de fragilidade é fenomenal, porque demonstra a todas as mulheres que são dedicadas a sua carreira e aos seus relacionamentos, que elas não precisam estar em posição de defesa e de ataque a todo instante.
A fragilidade e a capacidade de Bailey ao sair de sua própria zona de conforto e recorrer a tratamento psicológico, é um passo enorme para as mulheres que assistem “Grey’s Anatomy” e se identificam com a personagem. É uma demonstração de que você pode e merece cuidar de você mesma em todos os aspectos, e isso não faz de você menor, fraca ou incapaz.
Autora convidada: Marina Furtado é mineira, estudante Letras, um pouco geek, e precisava escrever para manter a insanidade intacta. Passa a maior parte do tempo criando mundos imaginários, desenvolvendo teorias mirabolantes e sendo terapeuta de personagens fictícios.