Mulheres nos Quadrinhos: Gail Simone

Mulheres nos Quadrinhos: Gail Simone

Gail Simone sempre fez a cabeça das pessoas. Primeiro como cabeleireira e depois como a mente por trás dos roteiros de grandes editoras de quadrinhos, como a Marvel e a DC. Desde a infância, Simone se interessava mais pelas HQs do que pela televisão, porém durante a faculdade foi o teatro que a capturou. Em entrevista ao The New York Times, a roteirista aponta como a arte dramática tem certa ligação com as histórias em quadrinhos: “você tem que conhecer sua personagem por dentro e por fora, desde o momento em que ela nasceu, mesmo que você a interprete por cinco minutos da vida dela”.

Gail Simone
Gail em seu universo (Foto: @darkhorsecomics)

Sem saber desenhar ou costurar, Gail Simone recorreu à escrita como forma de trabalho criativo, mas sem abrir mão do emprego como cabeleireira por questões financeiras. A partir dessa escolha, em 1999, a futura roteirista se tornou colaboradora do site Women in Refrigerators (Mulheres na Geladeira, em tradução livre), nome que posteriormente se tornaria amplamente utilizado para referir-se às mortes brutais de personagens femininas, não só nos quadrinhos, simplesmente para dar um novo rumo à narrativa do herói masculino.

women in refrigerators
A origem do termo “Women in Refrigerators” (Imagem: reprodução)

O termo é fruto de uma cena, edição #54 de 1994, do gibi “Lanterna Verde (DC), em que o protagonista Kyle Rayner encontra dentro da geladeira o corpo de sua namorada, Alexandra DeWitt, assassinada e esquartejada pelo vilão Major Força. “Uma vez que isso acontece, a história se torna sobre o herói jurar vingança, e não mais sobre a heroína”, explica Simone em entrevista ao Huffpost Brasil.

Infelizmente, não são poucos os casos de mulheres mortas, estupradas, espancadas, destituídas de poder, entre outros abusos para apenas dar um novo curso ao arco do personagem masculino. O site Women in Refrigerators soma mais de 100 registros – e a lista está desatualizada. Após a viralização do site, Gail Simone tornou-se colunista semanal do Comic Book Resources (CBR) e permaneceu no projeto até 2003.

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A fantástica fábrica de roteiros de Gail Simone

Gail deu o primeiro passo rumo ao mercado editorial de HQs a partir do momento em que se tornou roteirista da adaptação em quadrinhos de “Os Simpsons, pela Bongo Comics. Além dos roteiros baseados em “Os Simpsons”, suas colaborações incluem histórias para o especial “Treehouse of Horror e roteiros regulares para “Bart Simpson Comics”. Gail também escreveu muitas tirinhas de jornais sobre a família amarela.

Os roteiros de Gail Simone para a Bongo Comics atraíram a atenção do mainstream. Durante um painel da Marvel na Wizard World Comic Con de 2001, em Chicago, Gail foi anunciada como a mais nova roteirista deDeadpool“. A escritora ficou responsável pelos números finais do mercenário e fez a transição do personagem para a série “Agente-X”, até o número 15. Simone esteve filiada à “Casa das Ideias” até 2003, onde também escreveu para Marvelous Adventures of Gus Beezer, HQ sobre o primo de ninguém mais ninguém menos que Peter Parker, o Homem-Aranha.

Mas foi na DC que Gail Simone conquistou o posto de uma das roteiristas mais notáveis das histórias em quadrinhos. Entre 2004 e 2014, a escritora produziu roteiros para os mais diversos títulos: “Rose and Thorn — seis números com ilustrações da artista brasileira Adriana Melo —, seis edições de “Villains Unitede sua sequência “Secret Six“, Action Comics — oito edições em parceria com o quadrinista John Byrne (X-Men) —, que rendeu tiragens esgotadas dos três primeiros números tamanho o sucesso da dobradinha Gail/Byrne.

Gail Simone
As edições esgotadas de Action Comics (Imagem: reprodução)

Aves de Rapina

Esgotar tiragens foi apenas o início; Gail Simone promoveu a grande revitalização de uma das equipes femininas mais destruidoras da DC: “Birds of Prey (Aves de Rapina). Antes de se tornar uma série, Aves de Rapina teve sua origem em uma narrativa estilo one-shot, em 1995, roteirizada por Chuck Dixon, sob o título “Canário Negro/Oráculo: Aves de Rapina”. O eixo temático trazia Barbara Gordon (Batgirl) e Dinah Lance (Canário Negro) combatendo criminosos e terroristas.

Ao assumir a série em 2003, em um momento de incerteza e possível cancelamento do título, Gail deu início à revitalização do grupo com a inserção da personagem Helena Bertinelli (Caçadora). Além disso, a roteirista deixou de lado a roupagem de sidekicks (ajudantes) das Aves para colocá-las como heroínas de fato, desenvolvendo melhor as personagens, estreitando laços de amizade e entregando histórias mais sérias ao público. Gail escreveu para a série até 2007.

Birds of Prey, Gail Simone
Birds of Prey (Imagem: reprodução)

Após a era louvável da roteirista em “Aves de Rapina”, o grupo recebe Hera Venenosa como nova integrante na fase Os Novos 52. A equipe segue sendo alterada com a entrada de Katana, Sturnia e Condor. Já na fase Rebirth (Renascimento), a série leva o título “Batgirl e as Aves de Rapina”, abordando as origens da personagem Caçadora e traz em seus primeiros números um vilão que assume a identidade de Oráculo (Barbara Gordon).

Após levar um tiro à queima-roupa, disparado pelo Coringa na HQ “A Piada Mortal”, de Alan Moore e Brian Bolland, Barbara Gordon (Batgirl) se vê obrigada a utilizar uma cadeira de rodas após o ato violento. Em “Aves de Rapina”, a personagem volta a ativa como Oráculo, uma hacker habilidosa que auxilia a equipe com sua memória fotográfica e conhecimentos tecnológicos. Durante sua passagem pelo título, Gail Simone abordou as marcas deixadas pelo ataque do Coringa à Barbara Gordon por meio do transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) da heroína.

Representatividade importa!

Compreender o trabalho de Gail Simone é interiorizar que a representatividade é o norte de suas criações. Em sua conta no Twitter, a roteirista exterioriza o tempo todo a importância da diversidade, seja de corpos, gêneros, orientação sexual, cor da pele e o que mais fizer uma pessoa se sentir incluída em um mundo que constantemente a rechaça. “Quando as pessoas falam sobre representatividade, elas não querem tirar nada de ninguém, elas querem acrescentar algo ao que está por aí. Isso só acrescenta à tapeçaria. Entrar em pânico sobre isso é um olhar podre”, expõe a artista em um de seus tweets.

Os cabelos vermelhos de Gail, odiados por ela durante a infância, tornaram-se mais aceitáveis graças à personagem Barbara Gordon (Batgirl), que futuramente teria roteiros criados pela própria Gail Simone. A escritora compartilhou essa vivência no Twitter e foi seguida por vários depoimentos sobre representatividade e autoaceitação gerados por meio de personagens dos quadrinhos:

“Eu odiava ter cabelo vermelho quando era criança, mas Barbara Gordon me fez sentir ok sobre isso. Parece bobo, mas fez uma grande diferença pra mim.

Meu filho nasceu com um problema cardíaco congênito. Quando ele tinha 3 anos, teve que colocar um dispositivo para cobrir os buracos em seu coração. Ele não entendeu isso até quando completou 6 anos e viu o Homem de Ferro. ‘Tony Stark é como eu’, ele disse. Ele teve que usar um monitor uma vez e disse que era seu reator arc.”

https://twitter.com/lizzylynngarcia/status/955240508644823040

“Ter sido diagnosticada com várias doenças crônicas foi um soco no estômago pra mim, porque eu era muito ativa. Mas, ver a Babs Gordon pegando mais gênios do crime com um teclado e uma cadeira de rodas do que ela fazia como Batgirl, mudou todo o mundo pra mim.”

A diversidade de Batgirl não se limitou à representação de mulheres fortes, mesmo que tivessem de vencer as limitações físicas de seu próprio corpo. Gail também foi responsável por incluir a primeira personagem transgênero em uma HQ do mainstream. A edição #19 de Batgirl (2013), com roteiro de Gail Simone e arte da dupla Daniel Sampere e Vicente Cifuentes, revelou Alysia Yeoh, companheira de apartamento de Barbara Gordon, como transgênera e bissexual.

Gail Simone
A revelação de Alysia (Imagem: reprodução)

Gail atribuiu a inspiração para a personagem a uma conversa na WonderCon com o colega e roteirista Greg Rucka, nome por trás da co-criação e reboot da Batwoman abertamente lésbica, depois que um fã questionou a ausência de homens gays nas HQs. Em resposta, o escritor apontou que seria um grande sinal de mudança a aparição de um personagem gay na capa de uma revista em quadrinhos e um passo maior ainda para um transgênero. Depois disso, a roteirista apresentou a ideia para o editor Dan Didio, que a aprovou sem delongas.

A roteirista que divide opiniões

A carreira de Gail Simone é bastante extensa e repleta de marcos para ser resumida ou sintetizada apenas em uma obra. Porém, sua colaboração para a HQ da Mulher-Maravilha é várias vezes associada ao seu nome. Não é para menos; a roteirista é a pessoa que escreveu para a publicação por mais tempo (2008-2010). Dada a importância do título, esse seria um dos maiores desafios da carreira de Gail, que o assumiu logo após o desfecho do arco “O Ataque das Amazonas” (Wonder Woman #11 – #13), dando início aos roteiros de “O Círculo”.

Um dos pontos mais interessantes sobre Gail e sua Mulher-Maravilha recai na dualidade de opiniões sobre a construção dessa personagem, muitas vezes atrelada ao feminismo, pelas mãos da norte-americana. Alguns fãs argumentam que a qualidade da roteirista em “Aves de Rapina” não continuou em Mulher-Maravilha, alegando que a personagem ficou muito inocente, enquanto outros defendem que esta versão da protagonista é a mais competente e poderosa, sendo colocada de igual para igual com Superman. Gail encerrou sua contribuição ao passar o título para J. Michael Strazcynski e voltou ao comando das Aves de Rapina.

Wonder Woman, Gail Simone
A Maravilha de Gail (Imagem: reprodução)

Estereótipos: Gail acha que o Justiceiro deveria sorrir mais

Divergências à parte sobre o arco da Mulher-Maravilha de Gail Simone, não há como refutar a existência do “estereótipo sorridente” que ainda recai sobre as heroínas. A cristalização mais recente desse olhar sexista foi em relação à atuação de Brie Larson como Capitã Marvel,  tachada de “sem sal”, como se ser simpática fosse um pré-requisito para todas as mulheres dotadas de super-poderes. A atriz não deixou o absurdo passar em branco e fez pequenas edições nos pôsteres de alguns heróis:

Gail Simone
Larson deixa heróis mais simpáticos (Imagem: reprodução)

Gail embarcou na crítica e sugeriu no Twitter que o personagem Justiceiro ficaria mais bonito se sorrisse mais, uma clara ironia aos comentários direcionados à Larson. Não demorou muito para que um homem aparecesse para explicar à roteirista o conceito do personagem que ela mesma roteirizou, mais um caso de mansplaining que só foi resolvido após a intervenção de outra pessoa dizendo que Gail Simone sabia o que estava falando, afinal de contas, ela foi a mente por trás do Justiceiro.

Ao longo de sua carreira, Gail Simone trabalhou com alguns ilustradores que hiperssexualizavam os corpos femininos, padronizando-os: magros, de seios grandes, com pouca roupa e em posições impossíveis para um ser humano. Em “Aves de Rapina”, a roteirista já sabia que encontraria esse tipo de desenho e afirmou em entrevista ao Terra Zero:

“Eu não tenho problemas com isso, na verdade gosto muito de visuais sexy nos quadrinhos. O que tentei fazer nas histórias foi mostrar que as revistas não dependiam do apelo visual. Ele podia estar lá, mas o importante era mostrar os conflitos das personagens e afastá-las do conceito de ajudantes de heróis masculinos. Elas tinham vida própria e foi isso que tentei buscar, independente da arte. Enfim, isso realmente não me incomoda, contanto que a história não fique se valendo apenas de apelo sexual.”

Breve apanhado da trajetória de Gail Simone

Premiações:

  • Introdução no Hall da Fama dos Criadores de Quadrinhos Femininos de Friends of Lulu (2009);
  • Indicação ao GLAAD Media Award de Outstanding Comic Book, pelo trabalho em Secret Six (2010);
  • Segunda indicação ao GLAAD Media Award de Outstanding Comic Book (2012);
  • True Believers Comic para o Roll of Honor/ Comic Excellence no London Film e Comic Con (2014).

Roteiros:

  • The Simpsons;
  • Deadpool/ Agent X;
  • Killer Princesses;
  • Marvelous Adventures of Gus Beezer;
  • Rose and Thorn;
  • Action Comics;
  • Villains United;
  • Secret Six;
  • Birds of Prey;
  • Welcome To Tranquility;
  • The All-New Atom;
  • Wonder Woman;
  • The Fury of Firestorm;
  • Batgirl;
  • Leaving Megalopolis;
  • The Movement;
  • Red Sonja;
  • Savage Wolverine;
  • Swords of Sorrow;
  • Clear Room;
  • Crosswind;
  • Domino: Hotshots;
  • The Punisher;
  • Plastic Man;
  • Tony Stark: Iron Man.

Edição realizada por Gabriela Prado.

Escrito por:

Rafaella Rodinistzky é graduada em Comunicação Social (Jornalismo) pela PUC Minas e atualmente cursa Edição na Faculdade de Letras da UFMG. Participou do "Zine XXX", contribuiu com a "Revista Farpa" e foi assistente de produção da "Faísca - Mercado Gráfico". Você tem um momento para ouvir a palavra dos fanzines?
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