Através do Fogo: sensibilidade e reflexões existenciais

Através do Fogo: sensibilidade e reflexões existenciais

Franck Pasquier (Pierre Niney) é um jovem e corajoso bombeiro parisiense que está aspirando ao comando de sua unidade e acabou de ter filhas gêmeas com sua também jovem esposa. O longa “Através do Fogo” segue sua rotina num estilo parecido a um documentário, desde os rigorosos treinos físicos até os perigosos resgates diários. O longa está em cartaz no Festival Varilux de Cinema Francês, evento que está ocorrendo em diversas cidades do país.

O título original, “Sauver ou Périr” (Salvar ou Perecer), é o lema dos bombeiros, que enfatiza o caráter de sacrifício da profissão. Um dos rituais que realizam é sempre lembrar, durante a formação militar, dos companheiros mortos em missão e este será quase o destino de Franck. Não uma morte real, mas simbólica. Em um incêndio grave num armazém, ele se arrisca para salvar seus colegas, mas acaba com graves queimaduras por todo o corpo. O tratamento dura anos e ele vê sua vida, assim como seu corpo, se deteriorar. 

O desenvolvimento da trama de “Através do Fogo”

O que poderia ser um filme cheio de clichês acaba sendo uma profunda investigação sobre o auto luto após um acidente. Filmes sobre pessoas com deficiências ou que têm que superar grandes barreiras costumam servir de “inspiração” para a população que jamais teve que passar por tais situações; já este traz uma grande sensação de autenticidade, tanto pelo realismo e profundidade da trama quanto pelos detalhes gráficos, que são impactantes, mesmo que breves. Assim, temos a sensação de como seria viver por uma experiência parecida, o que nos desperta diversas reflexões existenciais.

O  longa “Através do Fogo” vai por um caminho interessante, que consiste em primeiro mostrar a trama pelas ações e depois confirmar o que apreendemos da situação através de diálogos-chave. Primeiro, descobrimos que Franck é um homem orgulhoso de sua profissão e, em boa parte por causa dela, tem uma sensação de invencibilidade, que é o que talvez o convença diariamente a embarcar em tantos resgates perigosos.

Através do Fogo
Franck (Imagem: Através do Fogo/divulgação)

Ele participa de todos aqueles treinamentos físicos rigorosos justamente para que tudo vá bem. A disciplina corporal e mental dos bombeiros, ele acredita, é o que faz tudo dar certo numa missão. Se ele seguir todas as regras, tudo sairá conforme o previsto. O acidente quebra todas essas convicções; a vida não está sob nosso controle e às vezes não há nada que possamos fazer para evitar determinadas coisas. “Por que comigo?”, ele se pergunta constantemente, e o pior, “como será minha vida daqui pra frente?” é algo que não sai de sua cabeça.

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No hospital ele tem de usar uma máscara branca sobre o rosto, a qual, além de compor uma figura assustadora por si só, funciona simbolicamente como a “monstrificação” de seu corpo. Essa é uma comparação interessante, principalmente quando se observa o olhar dos outros para as vítimas que ficam com sequelas visíveis de acidentes, o que nos lembra como o comportamento da sociedade ainda faz diferença, já que ela prefere esconder essas pessoas e exclui-las do convívio social, fazendo com que sua presença se torne ainda mais estranha e “amedrontadora” para o público em geral. “Você terá que se acostumar com os olhares” é uma das frases mais difíceis que ele ouve de uma orientadora.

Através do Fogo
Imagem: Através do Fogo/divulgação

Suporte emocional dentro das relações

Os relacionamentos de Franck também são afetados. A esposa, Cecile, tem um arco tridimensional e não é apenas o arquétipo da mulher cuidadora e hiper benevolente que apoia e cuida do marido sob quaisquer circunstâncias. “Através do Fogo” mostra, ainda que brevemente, o impacto que o acidente teve sobre ela também e todo o fardo que ela teve que carregar durante a recuperação do marido – e é interessante que a permanência dela não está garantida. Franck, para manter o casamento, tem de aprender a cuidar dele ativamente e não apenas esperar que Cecile esteja sempre ao seu lado, não importa o que aconteça.

O filme mostra essa tensão no casamento sem julgar as atitudes de Cecile, o que é um dos elementos mais bem vindos e surpreendentes na trama. Boa parte da adaptação de Franck à sua nova vida consiste em assumir sua nova forma de existir no mundo, abdicando do papel tradicional de provedor e do jeito bravio de masculinidade militar, típico de sua antiga profissão. 

A alegoria da “monstrificação” só é prejudicial em relação ao gênero. A cena que quebra a sensação de que essa poderia ser uma experiência “universal” é quando Franck, após muitos meses em tratamento no hospital, pede para que Cecile fique nua e em seguida pergunta se ela ainda tem atração por ele, mesmo em forma de “monstro”. Essa cena, que expõe a nudez da esposa, dificilmente seria filmada dessa forma se os gêneros estivessem invertidos e nos remete ao cansado tropo do monstro que é amado, mesmo assim, por uma mulher bondosa. Quantas “monstras” tem esse privilégio? As monstras estão mais para as vilãs da história, quando aparecem.

Por fim, “Através do Fogo” é um filme muito interessante e profundo sobre o luto de si próprio, que mostra as dores reais da recuperação de um acidente tão grave. O realismo da trama nos conecta intimamente ao personagem e há muitas e muitas cenas emocionantes. Não chorar é quase impossível e o filme consegue esse feito mesmo com uma mise-en-scene contida, que nunca apela para o melodrama ou sensacionalismo. A cena do incêndio onde acontece o acidente é uma das cenas de ação mais apavorantes e de tirar o fôlego do cinema recente, além de muito bem filmada. Seria muito bom que filmes parecidos tivessem a mesma sensibilidade deste. 


Edição realizada por Gabriela Prado.

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Cineasta, musicista e apaixonada por astronomia. Formada em Audiovisual, faz de tudo um pouco no cinema, mas sua paixão é direção de atores.
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