“Olhos que Condenam” e a importância de contarmos nossas próprias histórias

“Olhos que Condenam” e a importância de contarmos nossas próprias histórias

Olhos que Condenam” (“When They See Us”) é uma minissérie da Netflix criada e dirigida por Ava DuVernay e produzida por Oprah Winfrey.

Existe um antigo provérbio africano que diz: “Até que os leões tenham seus próprios historiadores, as histórias de caçadas continuarão glorificando o caçador”. A escolha de Ava DuVernay em contar a história desses cinco jovens é uma forma de reescrever a história pelo olhar de quem sempre foi prejudicado pelo sistema penal e honrar suas vidas e histórias. Após o sucesso de seu documentário “A 13ª Emenda“, sobre o sistema prisional racista americano – que também está disponível na Netflix, a diretora resolveu colocar o dedo na ferida do sistema prisional novamente.

Antron McCray, Kevin Richardson, Yusef Salaam, Raymond Santana e Korey Wise são cinco jovens negros e latinos que, em 1989, foram condenados injustamente, acusados de cometer um estupro brutal no Central Park. A minissérie de quatro episódios remonta esse caso real e nos mostra como o racismo institucional foi capaz de condenar cinco jovens negros e latinos sem provas e evidências físicas, apenas com depoimentos em que os garotos foram forçados a mentir e não seguiram as regras mínimas que a lei obriga, como ter um advogado na sala ou a presença dos pais dos garotos, que eram menores de idade. Tudo isso porquê, perante os olhos da polícia, promotores e sociedade, os cinco garotos já eram culpados.

Olhos que Condenam
Imagem: Olhos que Condenam (divulgação/Netflix)

Os cinco jovens ficaram conhecidos como os “Central Park 5” e cumpriram de sete a 12 anos de prisão. Na época, o então empresário Donald Trump – e hoje presidente dos EUA – chegou a pagar um anúncio no jornal de página inteira pedindo a volta da pena de morte e a execução dos jovens, além de dar declarações racistas para os jornais da época. A violência com que a jovem foi atacada fez com que ela perdesse a memória do dia do ocorrido e ficasse com graves sequelas pelo corpo, sendo impossível por ela identificar os rapazes – e ainda que a maioria das provas indicasse que eles não estavam envolvidos, ou pelo menos colocasse um ponto de interrogação sobre o caso, os garotos foram condenados pelo júri e pela sociedade.

O primeiro episódio nos mostra as diversas vivências dessas pessoas que tiveram as suas vidas mudadas para sempre e a sua juventude roubada, naturalizando as vidas negras e mostrando como elas são importantes. A importância de se contar a história pelo ponto de vista das vítimas desse caso é o que torna “Olhos que Condenam” tão necessária. A primeira hora da série é extremamente desconfortável e revoltante e te faz pensar “como deixaram isso acontecer com garotos tão jovens?”. Eles nem sabiam o que estavam fazendo, enquanto uma série de investigadores e promotores tentam encontrar o culpado perfeito para o crime, fazendo-os mentir e se acusarem, mesmo eles não se conhecendo pessoalmente.

A promotora do caso, Linda Fairstein, que fez carreira na Unidade de Crimes Sexuais de Manhattan, não hesitou em apontar os cinco como culpados e fez de tudo para provar o seu ponto quando encontrou os “culpados perfeitos”. Após esse caso, que teve grande destaque na mídia por anos, ela se tornou uma famosa autora de livros sobre investigação criminal e inspirou até o seriado “Law & Order SVU”. Hoje, após o lançamento de “Olhos que Condenam” e a repercussão na mídia, a promotora caiu em desgraça e a sua carreira está sendo questionada. Alguns anos antes do caso do Central Park 5, ela falhou em condenar um homem branco acusado de um violento crime, porque ele não tinha o “perfil” de um criminoso.

Olhos que Condenam
Imagem: Olhos que Condenam (divulgação/Netflix)
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Para além das reparações que essa série trouxe, “Olhos que Condenam” é bastante pesada e pode ser gatilho de traumas e estresse para quem sofre com o racismo diariamente e se vê na pele desses garotos. O desconforto causado pela violência física e moral sofrida pelos cinco protagonistas, ecoa na vida pós prisão dos que conseguiram sair antes da cadeia e se viram sem perspectiva de futuro, já que estavam “marcados” pelo sistema prisional. O caso mais marcante é o de Korey Wise (Jharrel Jerome); condenado com apenas 16 anos (idade da maioridade penal americana), ele foi mandado para um presídio com homens adultos e sofreu todo o tipo de tortura possível naquele lugar. Nenhuma indenização pode pagar o que este garoto, hoje em dia um homem, sofreu nos anos que deveriam ser os seus melhores dias se não tivesse sido preso.

Um questionamento que a série traz é se vale a pena ver o sofrimento negro novamente em tela, sofrimento tão fetichizado pelas audiências brancas, como no caso do jovem Emmett Till, assassinado brutalmente aos 14 anos na década de 50, após ter sido acusado de assediar para uma mulher branca, o que nunca ocorreu, de fato. A foto de seu rosto desfigurado no caixão aberto se tornou um símbolo da luta dos movimentos afro-americanos pelos direitos civis na época. Expor a violência e a brutalidade que Emmet Till sofreu, foi uma forma de gritar para o mundo os maus-tratos sofridos pelas pessoas negras nos EUA, mas recentemente a foto voltou a ser tema de uma discussão ao se tornar uma figura de fetiche para artistas brancos.

Olhos que Condenam
Imagem: Bastidores de Olhos que Condenam (divulgação/Netflix)

No caso de “Olhos que Condenam“, para além de violência sofrida pelos cinco garotos, o que está sendo mostrado também são as suas vidas e a humanidade que foi retirada deles quando jovens – e daí vem a importância da história ter sido contada pela diretora Ava DuVernay e por sua equipe, formada em grande parte por pessoas negras, além das próprias vítimas terem participado do processo de produção da série.

A história dessa injustiça cometida há 30 anos, talvez não tivesse o mesmo peso e nem a mesma sensibilidade se tivesse sido contada pelos olhos de uma pessoa branca, que não sabe como o racismo pode prejudicar e até destruir a sua vida e nem a importância de se mostrar a pluralidade dos indivíduos negros e as suas vivências.

Antes de serem conhecidos como os Central Park 5, esses cinco garotos que estavam começando a viver, tinham sonhos, planos, namoradas e famílias que foram afetadas por tudo isso. Contar essa história é uma forma de honrar a vida deles e de tantos outros que foram condenados injustamente apenas porque a cor da sua pele os tornava os culpados perfeitos.

https://www.youtube.com/watch?v=InMokMK3ji4&feature=youtu.be


Edição realizada por Gabriela Prado.

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Formada em artes visuais e apaixonada por arte, música, livros e HQs. Atualmente pesquisa sobre mulheres negras no rock. Seu site é o Sopa Alternativa.
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