Cinco artistas feministas cantando sobre feminismos

Cinco artistas feministas cantando sobre feminismos

“Pagu”, de Rita Lee e Zélia Duncan, foi lançada em 2000 e considerada um escândalo por sua letra descarada que, essencialmente, declarava a liberdade e denunciava os estereótipos lançados sobre as mulheres: nem toda feiticeira é corcunda, nem toda brasileira é bunda, meu peito não é de silicone. De lá para cá, quase duas décadas depois, o empoderamento de artistas mulheres produzindo conteúdo feminista, criticando a sociedade patriarcal e representando as lutas de ser mulher em suas obras, tem se consolidado com força e fôlego.

Uma das mais aclamadas músicas feministas recentes chegou inclusive a ser ouvida na trama do horário nobre da Globo do ano passado. A voz de Juliana Strassacapa, vocalista da banda “Francisco, el Hombre”, se tornou tema do crescimento de Clara, protagonista da novela “O Outro Lado do Paraíso”. Enquanto a personagem fugia de uma situação abusiva física e psicologicamente, “Eu não me vejo na palavra fêmea, alvo de caça, conformada, vítima” ecoava como trilha de fundo. Também em 2018, Ana Cañas lançou seu disco “TODXS”, aclamado pelos críticos especializados, que quase inteiramente trata da liberdade sexual das mulheres e continua o discurso que a cantora já havia martelado quando lançou “Respeita”, em 2017 (Respeita as mina, porra!).

Porém essas produções partem de nichos brancos, que possuem privilégios mais confortáveis de encontrar divulgação e serem espalhados pelos meios populares, que são mais facilmente endossados. Muito mais artistas estão lançando trabalhos cheios luta e de crítica que falam de outras camadas e de outras formas de feminismo que ainda não se espalham como as desses nichos mais privilegiados. Quem são essas artistas? Que tipo de discurso suas produções trazem? Aqui vão cinco artistas e seis músicas contundentes sobre empoderamento e luta feminista.

Ellen Oléria – Testando

Foto: divulgação/internet

Negra e lésbica, Ellen já possuía carreira musical independente desde os 16 anos de idade e um álbum lançado quando ganhou notoriedade nacional após ganhar a primeira temporada do The Voice Brasil, em 2012. Com o lançamento do segundo disco, a cantora também alcançou público na Espanha, na França e nos Estados Unidos. “Testando” é uma indicação do primeiro disco de Oléria, lançado em 2009, completamente recheada de empoderamento negro (Minha raça, minha cara, tua cara à tapa) e da realidade das violências sofridas pelas mulheres (Conhece a carne fraca? Eu sou do tipo carne dura) em uma composição cheia de gingas, baixos marcados e uma entonação rápida da voz poderosa da cantora.

Tanto faz lei divina, tanto faz lei dos homi
Não importa por roupa chique ou dar seu sobrenome
A mulherada já sabe o cotidiano da rua
Anoiteceu sozinha cê não tá segura.

Tássia Reis – Ouça-me

Foto: divulgação/internet

Cantora paulista conhecida principalmente por sua presença dentro do hip hop, Tássia Reis vai bem além de gêneros fechados, levando sua voz para nuances também do rap ao reggae. Formada em moda, somente aos 20 anos Tássia lançou sua primeira música, “Meu RapJazz”, e começou a construir carreira, desde o início, pautada na luta e no enfrentamento ao racismo e às violências que sofreu e sofre. “Ouça-me” faz parte originalmente do segundo álbum da cantora, Outra Esfera, lançado em 2016, mas foi relançada com videoclipe na versão “Ouça-me RMX” no ano passado. A canção reverbera a voz grave e contundente de Tássia em um desabafo incisivo para que as vozes das mulheres negras finalmente sejam ouvidas e sobre a exaustão de tanto tempo fadadas ao apagamento. Tássia agora vai gritar e esse grito vai tomar todos os ouvidos: Não toleraremos mais o seu XIU.

Eu tentei falar baixinho, mas ninguém me ouviu
Eu tentei com carinho e o sistema me agrediu
Então eu grito, elevo o meu agudo ao infinito!

Mulamba – Mulamba

A banda curitibana Mulamba é formada somente por mulheres que querem que outras mulheres sejam ouvidas. Mesmo com traços marcantes da MPB, é difícil definir o estilo, cheio de letras densas e temas complexos normalmente associados a ritmos mais pesados. A música do grupo chega a quem ouve como uma bomba dolorida recheada de força entre sons de cordas e percussão. Formada em 2015, desde o nome da banda – uma busca pela ressignificação de um termo usado pejorativamente – as mulheres da Mulamba usam suas letras como armas de guerra contra o apagamento e a violência sofrida.

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Citar somente uma canção que represente a banda é quase heresia, mas a composição, que também traz o nome da banda, encaixa perfeitamente para o entendimento de como a música é, sim, uma arma pelo empoderamento e pela luta feminista. Recheada de metáforas ácidas que desenham os estereótipos e as agressões, a música coloca a mulher e sua dor de forma visceral e crua em sua legítima defesa por liberdade, existência e visibilidade. O disco da banda, lançado ano passado, carrega inteiro o mesmo tom.

Agora o meu papo vai ser só com a mulherada
‘Nós não é’ saco de bosta pra levar tanta porrada
Todo dia umas 10 morrem, umas 15 são estupradas
Fora as que ficaram em casa e por nada são espancadas.

Doralyce – Miss Beleza Universal

Foto: divulgação/internet

A pernambucana Doralyce Gonzaga é dona de uma das vozes mais poderosas da música nacional recente. Com influências do funk, do forró, do frevo e do maracatu, o sotaque da cantora e suas composições reverberam nos ouvidos e arrepiam a pele do começo ao fim. É o caso de “Miss Beleza Universal”, single lançado em 2017 como prévia do disco Canto de Revolução, um funk mesclado de batidas de maracatu que rebate, repudia e critica diretamente os padrões de beleza impostos às mulheres e a importância exagerada e caricata dada a concursos que julgam as mulheres unicamente por quanto estão dentro deste padrão. A letra é simples e direta, sem muitas firulas e relativamente curta, mas é pungente em seu questionamento e repúdio a essa forma de opressão.

É ditadura
Quanta opressão!
Não basta ser mulher
Tem que tá dentro do padrão.

Bia Ferreira – Cota Não É Esmola e De Dentro do Apê

Foto: divulgação/internet

Mineira crescida em Aracajú, Sergipe, Bia Ferreira começou a compor aos 10 anos de idade brincando com os irmãos e se transformou, hoje, em uma das maiores vozes que ascendem na música nacional. Seu tamanho artístico e político – denunciando racismo, machismo e homofobia – é tão estrondoso que a cantora já sofreu mais de 80 ameaças de morte, ataques de policiais por denunciar a violência sofrida pela população negra e foi vítima de crime virtual ao ter um vídeo seu substituído com áudio racista.

Bia Ferreira é uma voz que precisa ser ainda mais ouvida por seu tamanho de enfrentamento aos padrões de violência sofridos pelas identidades negra, mulher e lésbica. “Cota Não é Esmola” foi apresentada no canal Sofar Curitiba, de alcance internacional, e reverberou sua letra crua e pungente com força tremenda. A letra é uma retratação do que sofre a população negra e pobre na favela, dos racismos e do cotidiano de agressões físicas e sociais, e também traz a nota da opressão e da solidão endereçada a essas meninas e mulheres.

O tempo foi passando e ela foi crescendo
Agora lá na rua ela é a preta do sovaco fedorento
Que alisa o cabelo pra se sentir aceita
Mas não adianta nada, todo mundo a rejeita.

Já em “De Dentro do Apê”, Bia traz crítica às próprias formas com que o feminismo se apresenta, sendo cegado dentro dos privilégios e invisibilizando a luta e a realidade de mulheres negras com dupla jornada e que sofrem com a violência racista, pontuando a necessidade de sair da bolha branca e abastada. Entre os versos, a cantora e compositora demonstra o cotidiano e a rotina de marginalização de mulheres negras e pobres, exaltando a forma como são esquecidas dentro da própria luta feminista, enquanto indaga a forma de ação de movimento em não se preocupar de sair de ‘dentro do apê’ e chegar ‘na sua quebrada’.

As muié preta nós só serve pra vocês mamar na teta
Ama de leite dos brancos
Sua vó não hesitou quando mandou a minha lá pro tronco.


Edição realizada por Gabriela Prado.

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Jornalista, fotógrafa, feminista e lésbica cearense. Ariana torta e viciada em qualquer série, filme ou livro que tenha mulheres amando mulheres, tem voltado sua atuação à defesa dos direitos humanos e à luta por visibilidade e representatividade lésbica. Não dispensa uma pizza ou uma balinha de gengibre das que vendem no ônibus. Nas horas vagas se atreve a escrever ficção científica.
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