Confissões de Adolescente: o que a revisão de mais 20 anos depois nos revela

Confissões de Adolescente: o que a revisão de mais 20 anos depois nos revela

Em 1994, a série “Confissões de Adolescente” passou pela primeira vez na TV Cultura — a emissora que representava, sobretudo nesta época, o melhor que a TV brasileira tinha para oferecer às crianças e adolescentes. Adaptada do livro homônimo escrito por Maria Mariana (a Diana da série), a série conta a história de quatro irmãs da classe média do Rio de Janeiro que vivem uma boa vida sob o olhar carinhoso e atento do pai. Diana (Maria Mariana) e Bárbara (Gerogiana Góes) têm 19 e 17 anos, respectivamente, e são filhas do primeiro casamento de Paulo (Luís Gustavo); e Natália (Daniela Valente) e Carol (Deborah Secco), filhas do segundo, têm 16 e 13.

Bastante diferentes entre si, as quatro protagonistas trazem perspectivas distintas sobre assuntos que permeiam o universo juvenil. Carol é a irmã mais moleca, usa boné pra trás, joga futebol com os garotos, conserta eletrodomésticos e não quer ser chamada de princesa. Natália é a romântica, tímida, ansiosa e insegura, faz balé e cuida de bebês. Bárbara é papo-reto, não leva desaforo pra casa, é debochada, gosta de música e sonha em viajar pelo mundo. Diana é doce, carinhosa e apaziguadora, é estudante de jornalismo e ama escrever. Cada episódio de “Confissões de Adolescente” retrata uma fase importante na vida delas, como o primeiro beijo da Natália, a primeira menstruação da Carol, a escolha do curso do vestibular da Bárbara e a reflexão sobre maternidade da Diana.

A nostalgia dos anos 90 acende em nós a vontade de só usar camisetão largo com shorts de lycra; jeans com jeans; bandana; gravar fita k7 com as músicas da rádio; falar com mais de uma pessoa pelo telefone através da extensão (ou só ouvir a conversa dos outros); cantar Sina, do Gilberto Gil; e alugar fita VHS na locadora de vídeo. Revisitar a série “Confissões de Adolescente” é esquentar o coração e relembrar de como era a nossa infância e adolescência sem celular e com hora marcada para assistir a um filme ou a uma série na TV, além de, é claro, reviver a memória afetiva de quando assistimos pela primeira vez, de querer fazer parte desta família que falava com uma linguagem tão próxima da nossa.

Diálogo com as adolescentes

Imagem: Confissões de Adolescente (reprodução)

O ponto positivo que mais se destaca é que a série realmente dialoga com o público jovem. Maria Mariana, a roteirista e escritora, publicou o livro aos 19 anos, trazendo veracidade aos problemas que muitas meninas passam. É uma realidade contada a partir do ponto de vista feminino, de alguém que viveu aquilo. A personagem da Natália, inclusive, menciona o quanto se incomoda quando seu pai se refere “coisas de adolescente” como sendo algo menor ou ruim, o que é algo que vemos com frequência: adultos menosprezando as subjetividades e as individualidades de adolescentes.

A pluralidade das personagens é evidenciada através do ponto de vista que cada irmã tem sobre determinados assuntos. Elas discordam sobre a importância do primeiro beijo, idolatrar ou não alguém, espiritualidade, drogas, política, mas independente da divergência de opinião, sempre se apoiam e eventualmente ajudam o pai a compreender um momento particular que alguma delas esteja passando e que ele não esteja sabendo lidar.

Mães ausentes

Confissões de Adolescente
Imagem: Confissões de Adolescente (reprodução)

O fator mais importante nessa família é o fato de que as quatro irmãs são criadas apenas pelo pai, sem a presença da figura da mãe (a de Diana e Bárbara as abandonou logo cedo e a de Carol e Natália faleceu). A possibilidade de vermos quatro mulheres criadas juntas, em uma casa gerenciada por elas mesmas e o pai, sem a presença de uma mãe, é bastante interessante e leva à reflexões necessárias.

Em meio a tempos onde se tem discutido sobre ideologia de gênero e onde mães e pais desempenham responsabilidades desiguais na criação dos filhos, tem ficado cada vez mais evidente que o machismo também afeta os homens, principalmente em relação à masculinidade tóxica. Portanto, ver um pai assumir a responsabilidade da criação das quatro, se permitindo ser atencioso e presente, é muito relevante. Não há qualquer conflito em relação à criação exclusiva do pai, o que contribui positivamente para a desmistificação de que homem não é capaz de criar filhas sozinhas e de que isso é papel da mulher.

A questão da ausência da mãe não é um assunto constante em toda a série, mas há um episódio só sobre isso. É quando a mãe de Diana e Bárbara (representada por Marieta Severo) aparece, de repente, no Natal. Embora o abandono parental seja um problema sério, é mais socialmente aceito quando feito pelo do pai do que pela mãe. Eles dizem que não querem ou não estão preparados para ser pai, que não têm condições financeiras – ou insira-aqui-outra-desculpa – e são isentados da responsabilidade de assumir, criar, estar presente e custear o filho. Por outro lado, quando as mulheres decidem não estar presente na criação do filho, seja lá qual for o motivo, são condenadas e julgadas pela sociedade como perversas, irresponsáveis, dignas de mau caratismo – ou insira-aqui-outra-ofensa. Quando a maternidade compulsória dita a vida das mulheres, é de se aplaudir uma série que dialoga com a possibilidade dos homens assumirem o protagonismo da criação dos filhos.

Aborto sem moralismo

Confissões de Adolescente
Imagem: Confissões de Adolescente (reprodução)

Outro elogio a ser feito é a forma que foi discutida a questão do aborto, uma das pautas feministas mais relevantes atualmente. Sabendo que em muitas famílias há falta de diálogo entre pais e adolescentes, a série faz um serviço de utilidade pública ao encarar o assunto considerado tabu de forma transparente. Sem dar spoilers, embora o comportamento do pai tenha sido demasiado grosseiro e cheio de xingamentos preconceituosos, o episódio, um dos mais importantes primeira temporada, leva em conta, em primeiro lugar, o desejo da mulher em seguir ou não com a gravidez.

Em uma sociedade que transforma o assunto do aborto em uma questão moralista, ignora que é uma questão de saúde pública e que o aborto continuará acontecendo independente da criminalização (o que, por causa da criminalização, só leva a mais mulheres pobres e negras procurarem métodos caseiros por não terem recursos financeiros para fazer o procedimento de forma rápida e segura, com médicos e em clínicas), é sempre gratificante ver uma série para adolescentes tratar o assunto com foco no respeito à decisão da mulher.

Representatividade na política

Confissões de Adolescente
Imagem: Confissões de Adolescente (reprodução)

Além disso, outro episódio bastante relevante que dialoga com os dias atuais é o que Carol decide concorrer à presidência da chapa para o grêmio estudantil pela primeira vez. É discutida a questão da participação política dos estudantes dentro das escolas, da repressão sofrida na época da ditadura militar, e também o discurso vazio de que professores não devem ensinar valores morais e de que escola não é lugar para ideologia, reforçando o perigo que vivemos atualmente, através das pautas retrógradas da gestão do novo governo e do projeto do Escola Sem Partido.

Das quatro irmãs, a Carol é a personagem que continua sendo a que mais envelhece bem na revisão da série (spoiler: Bárbara é a que mais decepcionou). A caçula não só traz personalidade e carisma, como também levanta debates importantes, principalmente sobre a igualdade de gênero, refresca as ideias conservadoras sobre que é ser mulher e qual o lugar dela. Carol subverte a ordem, questiona, critica, se posiciona e enfrenta firmemente o status quo, além de trazer a esperança de que, a menina de 14 anos da série, tenha se tornado hoje uma mulher crítica e politizada que enxerga as opressões da sociedade e luta para transformá-la.

Embora a revisão de “Confissões de Adolescente” seja cheia de afeto e nos transporte para a nossa infância ou adolescência, há de se revisar com um olhar crítico e distanciado, trazendo consigo a memória afetiva, mas com a disposição de desconstruir a imagem que foi sendo consolidada ao longo dos anos. Por isso, apesar de a primeira temporada trazer a pluralidade e protagonismo feminino, abordar assuntos relevantes ao universo juvenil e retratar outras configurações familiares, a série derrapa ao tratar alguns assuntos de maneira superficial e não se aprofundar em questões que ajudariam a trazer luz a problemas estruturais. Alguns episódios são carregados de heteronormatividade, naturalização de opressões, conservadorismo e preconceito, além de terem pouca consciência dos privilégios de raça e classe. Vejamos alguns exemplos mais concretamente.

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Pressão estética, tarefas domésticas e sexualidade feminina

Confissões de Adolescente
Imagem: Confissões de Adolescente (reprodução)

Quando Carol fica menstruada pela primeira vez, a pressão das irmãs para que ela se torne “feminina” e troque o futebol com os garotos pelas festinhas, salão de beleza, depilação e roupas justas, acende uma luz vermelha de alerta sobre a pressão estética e mais ainda sobre a adultização de meninas, como ocorre a respeito da Millie Bobby Brown e MC Melody, por exemplo.

Apesar das tarefas serem divididas na família, quando um garoto sujo e relaxado se hospeda na residência delas, as adolescentes ignoram a possibilidade de ensinar o garoto a fazer a sua parte na limpeza e organização, repetindo o padrão de que a mulher é a responsável pela casa enquanto o homem tem liberdade de se isentar destas tarefas.

No episódio em que Natália se apaixona por um garoto que está de viagem marcada, ela fala sobre tesão, desejo e a vontade de transar com ele, até que de repente o debate sobre a virgindade passa a ser extremamente romantizado, ficando evidente a diferença de postura que meninos e meninas têm em relação ao sexo. Apesar disso, fala-se abertamente sobre métodos contraceptivos, doenças, gravidez e visita ao ginecologista (ainda que o médico diga, erroneamente, que o uso de tabelinha é seguro).

Drogas, privilégio branco e meritocracia

Confissões de Adolescente
Imagem: Confissões de Adolescente (reprodução)

Ao contrário do episódio em que Carol têm seu primeiro porre, no episódio em que Diana se relaciona com um rapaz mais velho que consome cocaína, o final apelativo e moralista anula qualquer possibilidade de abordar o tema com um aprofundamento sério, tratando a raiz do problema. Pelo contrário, faz o desserviço de tratar a realidade do consumo de drogas na adolescência baseado no medo e no trauma, em vez de trazer informação e conhecimento.

O privilégio branco da classe média é evidente durante toda a série, mas é escancarado em dois momentos: quando Carol furta um objeto de uma loja e é tratada como tendo feito uma “travessura de menina” e também quando todas decidem trabalhar para conseguir uma graninha extra, já que a mesada que elas ganham do pai não é o suficiente. Ao não se aprofundar na problemática da branquitude, a série compactua com a sociedade racista, na medida em que despreza que a realidade dos jovens negros no mercado de trabalho é menos sobre gastos pessoais e mais sobre contribuição na renda familiar; e que jovens negros não teriam o mesmo tratamento complacente que Carol teve ao ser pega furtando.

Além disso, na época em que Bárbara vai prestar vestibular, fica evidente que a meritocracia não existe quando vestibulandos brancos de classe média dizem que os pais darão um carro a eles, caso passem no vestibular, ou quando Paulo diz à Bárbara para cursar Direito, pois “as portas já estão abertas”.

A gordofobia retratada em “Confissões de Adolescente”

Confissões de Adolescente
Imagem: Confissões de Adolescente (reprodução)

Quando uma garota nova, modelo e atlética entra para o grupo de amigos de Bárbara e Diana, a pressão estética e a rivalidade feminina se evidenciam expondo a gordofobia de ambas, fazendo deste, com certeza, o episódio mais desagradável da primeira temporada. Mesmo se repetindo em outros episódios, a gordofobia não é tratada com seriedade; pelo contrário, é normatizada sendo, inclusive, geralmente associada à Bárbara, que, por exemplo, não mede as palavras e destila ódio gratuito às clientes da loja onde trabalha, fazendo ressignificar a memória afetiva que se tinha da série e tornando ela a personagem que menos envelhece bem na revisão.

Ainda com todos esses problemas, que hoje seriam mais facilmente criticados, caso a série fosse lançada por agora, é importante ressaltar que, por ser uma série voltada ao público juvenil, expõe debates importantes que não podem ser ignorados e traz a alegria do dia a dia familiar para os episódios, associada a uma imagem positiva de que família pode ser entendida a partir de composições distintas.

Revisitar “Confissões de Adolescente” é, sobretudo, uma viagem no tempo. Através de uma linguagem acessível, a série é um refresco para discussões de assuntos que permeiam a realidade das jovens. Diversas vezes nos vemos representadas naquelas garotas em fases diferentes da vida, uma hora concordando com a Carol, outra com a Diana, lembrando que agiu como a Natália, mas queria ter feito como a Bárbara. Através da identificação com as personagens – associada ao distanciamento temporal -, é possível até mesmo compreender melhor alguns pensamentos e decisões que tomamos na adolescência.

Confissões de Adolescente
Imagem: Abertura de “Confissões de Adolescente” (reprodução)

Assistir a série, com mais de 20 anos após o lançamento, reacende a vontade de pertencer àquela família, mas dessa vez não como uma quinta irmã, mas, talvez, como uma prima distante, uma vizinha mais velha, alguém que estivesse ali presente naquela realidade e que pudesse contribuir para o amadurecimento dessas meninas, além de ser uma fonte de apoio, trazendo mais consciência para algumas questões nem sempre tão bem esclarecidas ou evidenciadas.

A proposta de dar voz aos jovens com coerência e intimidade segue sendo tão relevante que o livro “Confissões de Adolescente” continua, até hoje, sendo adaptado para o teatro e para a TV, contando sempre com novo elenco e novos episódios, o que nos faz querer ainda mais que a série original tenha um destaque no streaming mais próximo, para que as meninas da geração atual possam conhecer avanços importantes que a série dos anos 90 trouxe em relação à desmistificação do que é ser uma adolescente.

Autora convidadaLígia Maciel Ferraz é taurina com lua em peixes, ama animais descabelados e pessoas esquisitas. Ao longo dos anos, entre tantas variáveis, a escrita sempre se manteve constante.

Edição realizada por Gabriela Prado.

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