“Pose” emerge na segunda temporada com os dois pés na cultura pop dos anos 90, embalado pelo sucesso estrondoso do single “Vogue”, da Madonna. A música, que estoura nas paradas, também atira aos holofotes os protagonistas desse movimento contracultural, com seus gestos, coreografias e celebrações.
Impulsionados pela animação do modismo que se popularizou instantaneamente ao lançamento da música, os personagens de “Pose” acabam envolvidos em uma onda de esperança e prosperidade, ao serem pela primeira vez de fato enxergados pela sociedade em um mundo que sempre os ignorou.
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AIDS e a violência enfrentada pelas mulheres transexuais em “Pose”
Porém, uma outra realidade circunda os personagens em paralelo. A morte foi assunto de vários episódios da segunda temporada de “Pose“, expressos tanto através do terror real da AIDS como o da violência que, infelizmente, faz parte da realidade de muitas mulheres transexuais.
A AIDS, inclusive, foi um dos temas principais da série, abordado de forma dura e sem eufemismos. Ao retratar como a doença provocou um verdadeiro holocausto na comunidade homossexual nos anos 90, também deixou evidente a angústia dos gays que, ao saber do diagnóstico, desmoronavam ao considerá-lo um atestado prematuro de morte.

Cena do episódio 4 “Never Knew Love Like This Before”. Foto: Eric Liebowitz/FX (reprodução)
Por conseguinte, “Pose” também abordou a brutalidade que cerca as mulheres transexuais pelos incontáveis casos de uma morte violenta – e tal fato ser algo naturalizado e silenciado pela sociedade; talvez porque a mulher transexual representa, através de seu próprio corpo, a liberdade de ser o que quiser, algo que muitas pessoas não conseguem ter coragem de exprimir.
Entretanto, ao lidar com a dor da perda e o medo de morrer ainda jovens, os protagonistas de “Pose” representaram de uma forma dura e poética a angústia de não saber ao certo quanto tempo de vida ainda resta. A série expressou a indignidade de ser considerado um não-alguém, nem mesmo na morte. Contudo, é nessa hora que a comunidade, formada através dos bailes, decide se unir e mostrar ao mundo que eles eram dignos de viver como quiserem e que estavam bem ali, diante de todos.
Da vida real para a ficção: protestos contra o conservadorismo da igreja

A cena do protesto na igreja, retratada no episódio “Acting Up”, é baseada em um caso real, ocorrido em 1989. Foto: Pose / FX (divulgação)
Na segunda temporada de “Pose“, Blanca Evangelista se envolve com o ACT UP, um grupo ativista que realmente existiu e organizou diversos atos sobre a conscientização do HIV na década de 90. Blanca e sua família reencenam o polêmico protesto em uma igreja de Nova York, com o intuito de questionar o conservadorismo da igreja católica – que era contra a educação sexual nas escolas públicas.
De acordo com o site Bustle, esse mesmo protesto ocorreu no St. Patrick’s, em 1989, onde membros do ACT UP protestaram contra o cardeal John Cardinal O’Connor e seus comentários anteriores sobre contracepção. Segundo o artigo do The New Yorkk Times, 4.500 pessoas estavam do lado de fora da igreja, enquanto dezenas invadiram o local durante um culto, que reflete a cena da segunda temporada de “Pose“.
Um desses manifestantes foi o ativista Michael Petrelis. Em entrevista para o site NPR, ele relembra: “Em voz alta, levantei-me do banco apitando, literalmente, por séculos de tratamento horrível da igreja em relação aos gays e às mulheres“. [tradução livre] Entretanto, mesmo quando isso não pareceu adequado, Michael adotou outra abordagem. “Comecei a gritar: ‘Pare de nos matar! Arcebispo O’Connor, pare de nos matar!’“. Como resultado de sua manifestação, 111 pessoas foram presas.
O ACT UP foi um grupo ativista fundado em 1987, que usou arte visual, teatro de rua e desobediência civil para chamar a atenção do governo sobre a necessidade de tratamento e prevenção eficazes para acabar com a epidemia da AIDS. O grupo teve como alvo o líder católico conservador, cardeal John O’Connor, em seus protestos “Stop the Church” por sua direta oposição à homossexualidade, uso de preservativos, educação sexual em escolas públicas e aborto.

Milhares de ativistas do ACT UP se reuniram na capital de Nova York, na tentativa de combater o preconceito e aumentar o financiamento para pesquisa e tratamento da AIDS. (Imagem: reprodução)
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A manifestação pop dos anos 90 e destaque para Pray Tell
Através da coragem de enfrentar os perigos reais que tornam a vida algo raro, seja pela doença que debilita e degrada o corpo ou por uma morte violenta, Blanca (MJ Rodriguez) e Pray Tell (Billy Porter) decidiram enfrentar uma verdadeira cruzada pela vida deles e de seus amigos, mas sobretudo pela realização dos sonhos, para que o mundo os respondesse em atenção.
Contudo, o maior destaque da segunda temporada de “Pose“, sem dúvida, é o personagem Pray Tell, cuja interpretação de Billy Porter mostra toda a sua versatilidade como ator, cantor e performer. Os looks maravilhosos de Pray personificam esteticamente a elegância do personagem, assim como os momentos impagáveis como MC do baile, e da justa homenagem à Diana Ross.
Aliás, várias justas homenagens à efervescente manifestação pop dos anos 90 foram feitas na série, com referências à Janet Jackson, Roxette, MC Hammer e a própria Madonna. Além do estilo e elegância indiscutíveis, Pray Tell protagoniza os dois momentos inesquecíveis da série: o dueto com Blanca no hospital, e a sensual e intensa cena de sexo com Ricky (Dyllon Burnside), que se torna seu namorado.

Cena do episódio 6 “Love’s In Need Of Love Today”. Foto: Michael Parmelee/FX
Empatia e sororidade na 2ª temporada de “Pose”
Em suma, a maior palavra que define a segunda temporada de “Pose” é alteridade. Durante a série, os personagens se mostraram muito mais dispostos a se colocar no lugar do outro antes de gongar. Pela primeira vez, vimos Pray Tell e todo o conselho do baile serem julgados por juradas femininas em uma categoria feminina. Também presenciamos a crueldade das personagens Elektra (Dominique Jackson) e Lulu (Hailie Sahar) se dissolverem através da sororidade proposta pela amizade de Blanca e Angel (Indya Moore). E o luto também se tornou uma oportunidade de todos se aproximarem. Ou seja, a segunda temporada de “Pose” mostrou que a tradição e a inovação podem sim trilhar um caminho juntas, e com isso evoluir.
Nesse sentido, através dos dramas particulares, os personagens de “Pose” descobriram que ao olhar para o lado poderiam encontrar apoio e compreensão, indicando que sempre há um outro caminho possível de resistência ao mundo preconceituoso que oprime através de rótulos, acreditando no que te faz ser alguém singular.

Cena do episódio “Life’s a Beach”. Imagem: FX (reprodução)
Apesar de um final de temporada meio final de novela, “Pose” já foi antecipadamente renovada para a terceira temporada, mostrando que muito ainda está por vir. E a última cena da segunda temporada mostrou exatamente isso: que o futuro do legado das casas pode seguir através de uma nova geração, que impulsionada pelos belos exemplos de suas mães e pais, podem se tornar muito mais do que somente brilho e movimento, ao se confiar na autenticidade de ser o que se é.
Recentemente, a Netflix divulgou que a primeira temporada de “Pose” estará disponível no catálogo dia 28 de setembro.
Edição realizada por Isabelle Simões.