It – Capítulo 2: um filme que entretém, mas acaba se perdendo

It – Capítulo 2: um filme que entretém, mas acaba se perdendo

Stephen King é um nome importante dentro do gênero de terror. Suas obras são referenciadas, adaptadas para outras mídias, e não raro é citado como exemplo de sucesso. Não é de se admirar que sua nova adaptação para o cinema, It – Capítulo 2, chamasse tanta atenção. Talvez pela quantidade de fãs do autor, talvez por nomes importantes dentro do cast, como James McAvoy, Jessica Chastain e Bill Hader, talvez por saberem que King não brinca em serviço quando a questão é aterrorizar alguém. O fato é que muitos holofotes se viraram para essa estreia. 

It – Capítulo 2 é a segunda parte da adaptação cinematográfica, que teve seu primeiro filme lançado em 2017, do livro de mesmo nome, lançado em 1985 nos Estados Unidos. No Brasil, o livro chegou pela editora Suma, e conta com a tradução de Regiane Winarski, que tem em sua carreira uma extensa quantidade de obras da família King. O livro é gigantesco, com média de 1100 páginas. Antes dessa adaptação, houve uma minissérie para TV, em 1990. 

AVISO: O texto a seguir procurar dialogar um pouco com o livro e a adaptação de 2017/2019, e pode conter spoilers

IT – A Coisa: o livro de Stephen King

Stephen King
Stephen King (Imagem: reprodução)

Em uma cidadezinha fictícia chamada Derry, localizada no Maine, Estados Unidos, cenário de outras histórias de King, conhecemos um grupo de crianças bastante comuns: gostam de brincar, tem uma imaginação fértil, e infelizmente sofrem bullying pesado do valentão da cidadezinha. Mas, em um verão, em 1957, o irmão de um deles é encontrado morto, sem um dos braços. 

George Denbrough foi assassinado, e outras crianças também estão tendo um destino semelhante. Seu irmão, Bill, quer descobrir o que aconteceu, e conta com a ajuda de seus amigos, Eddie Kaspbrak, Ben Hanscom, Beverly Marsh, Richie Tozier, Stan Uris e Mike Hanlon, que acabam sendo conhecidos como Clube dos Otários.

Cada uma das crianças têm algo com que se preocupar, algo pesado demais para a idade delas, mas que faz com que o laço que as une ainda seja maior: Bill, após a morte do irmão, sofre com a ausência dos pais; Eddie tem uma mãe controladora e sinais de hipocondria; Ben é um garoto acima do peso; Bev tem problemas em casa com um pai abusivo e violento; Mike é um garoto negro em uma cidade interiorana dos Estados Unidos da década de 1950, o que já é um enorme problema; enquanto Richie e Stan parecem ter uma percepção maior do que realmente acontece, mas que acaba sendo escondido por suas personalidade, sendo Richie um garoto que disfarça suas preocupações com piadas e comédia, e Stan não parecendo ter a idade que tem, sendo descrito como um “mini adulto”. 

O valentão da cidade e seu grupo de amigos é peça chave e fundamental para unir as crianças em um único grupo. Todos eles sofreram algo com Henry Bowers, o típico garoto problema que aparece em tantas narrativas dos anos 1980. Bowers repetiu várias vezes na escola, não consegue deixar as crianças menores em paz e oferece riscos sérios à integridade física e mental de todos aqueles que são obrigados a conviver com ele. E, nessas perseguições, ele acaba unindo cada vez mais as crianças. 

Mas, além de Bowers, cada uma delas é atormentada pelo pesadelo chamado A Coisa, um mal que aterroriza a cidade de Derry desde sempre, causando assassinatos e terrores de crianças ou adultos. A Coisa pode assumir a forma do que quiser, conhecendo os medos e assombrações de cada criança, atraindo-as, assim, para suas armadilhas. Entretanto, quando A Coisa se depara com o Clube dos Otários, percebe que há algo errado ali. Essas crianças são mais fortes do que ele imaginava que seriam. 

Ao longo dos capítulos do livro, vamos descobrindo como essas crianças acabaram se tornando amigas, como elas se encontraram, o que motivou para que elas acabassem em um enorme jogo cósmico entre algo ainda maior que o bem e o mal.

It - A Coisa, Stephen King
Trecho da capa do livro “It – A Coisa”, lançado pela editora Suma. (Imagem: reprodução)

A história se passa em dois momentos: sendo A Coisa um mal que adormece e retorna a cada 27 anos, acabamos reencontrando o Clube dos Otários já adultos, em 1985. Ainda crianças, eles haviam ficado divididos entre acreditarem que haviam derrotado A Coisa ou não, e fizeram uma promessa de que retornariam para Derry caso ela não tivesse morrido. A questão é que não, A Coisa não tinha morrido, e eles são forçados a largarem suas vidas e correrem para Derry, para tentarem impedir novamente esse monstro. 

O detalhe é que, quando cada um saiu da cidade, eles se esqueceram de detalhes importantes de suas infâncias. Para derrotarem A Coisa de uma vez por todas, eles precisam se reconectar e lembrar de detalhes importantes de suas vidas naquele verão de 1958. Então, o livro acaba utilizando de flashbacks, nos contando coisas que não sabíamos no começo, fazendo com que, cada vez que avançamos na leitura, acabamos por conhecer um detalhe ou outro que não sabíamos no começo.

It, A Coisa, é um livro de terror, mas também é uma história sobre amizade e laços. As crianças jamais permaneceriam juntas se não fosse um enorme amor que as une e as mantém juntas. Assim como em muitas obras de King, It tem uma dose de drama, uma forte mensagem sobre se conectar com seu interior e trabalha muito a questão da infância e dos traumas que são sofridos nessa época, como isso pode alterar nossa vida já adulta, como isso nos molda, mesmo que a gente não consiga se lembrar de tudo. 

Conforme o livro avança, avança também o sentimento que temos pelos personagens. Com personalidades tão diferentes entre si, é difícil não se identificar ao menos um pouco com algum deles, com seus medos, com as situações que eles enfrentam tanto em casa quanto fora dela. 

É um livro enorme, controverso, com passagens problemáticas e difíceis de aguentar. King escreveu a história sob fortes doses de drogas e entorpecentes, e mesmo que não justifique algumas de suas escolhas, é uma informação a se levar em consideração. Ainda sim, é uma obra incrível, com um forte sentimento de amizade e de reconhecimento, trazendo elementos das obras de King que os fãs estão tão acostumados. 

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As adaptações recentes: It: A Coisa – Capítulo 1 e 2

Os filmes, divididos em duas partes, dirigido por Andy Muschietti, apresenta algumas mudanças na história. Se passa em 1988 e 2015, com os 27 anos de cochilo de Pennywise. Muitos dos temas do livro são amenizados, mas ainda estão lá, mesmo que somente na superfície.

No Capítulo 1 somos apresentadas às crianças, conhecemos o Clube dos Otários, e cada um deles nos mostra um pouco de sua personalidade e seus medos. Bill (Jaeden Lieberher), Ben (Jeremy Ray Taylor), Bev (Sophia Lillis), Richie (Finn Wolfhard), Mike (Chosen Jacobs), Eddie (Jack Dylan Grazer) e Stan (Wyatt Oleff) precisam confrontar aquilo que os assombra e que aparece na forma de Pennywise, o palhaço (Bill Skarsgård). 

O primeiro filme aposta no terror e no medo infantil, com cenas aterrorizantes de Pennywise perseguindo as crianças. Os atores infantis também são carismáticos e fazem com que torçamos por eles, para que eles saiam desse inferno em que se meteram, para que se livrem disso de uma vez por todas, mesmo que saibamos que isso não vá acontecer.

It - A Coisa
Cena de “It – A Coisa” (Imagem: reprodução)

Já em It – Capítulo 2, nós voltamos a encontrar os personagens. Bill (James McAvoy) se tornou um escritor de sucesso e se casou com Audra (Jess Weixler). Bev (Jessica Chastain) se tornou uma estilista famosa, se casou com um homem violento chamado Tom (Will Beinbrink). Eddie (James Ransone) se tornou consultor de riscos. Ben (Jay Ryan) se tornou um arquiteto. Richie (Bill Hader), acabou se tornando um comediante. Mike (Isaiah Mustafa) permaneceu em Derry, para que pudesse chamar de volta o restante do grupo quando Pennywise acordasse novamente. Não sabemos tanto sobre Stan (Andy Bean), pois ao receber a ligação de Mike, Stan cometeu suicídio, algo que acaba sendo explicado ao final do filme. 

Nós vemos esses personagens adultos, se reencontrando, em uma das cenas mais interessantes da adaptação: durante o jantar em um restaurante chinês, onde todos conversam e riem e contam sobre suas novas vidas, você acaba querendo saber mais daqueles personagens. Mas, por escolha, o filme não foca na vida dos personagens adultos, preferindo abordar  em como cada um deles lida com seu próprio trauma.

Cada um deles precisa encontrar um artefato ligado a sua infância, que fará com que eles possam realizar um ritual para derrotar A Coisa de uma vez. Então, através de flashbacks e tempos atuais, vemos esses personagens lutando com traumas antigos com novas roupagens, percebendo detalhes de quando eles se encontraram com A Coisa pela primeira vez, em 1988.  

It - Capítulo 2
Cena de “It – Capítulo 2” (Imagem: reprodução)

It – Capítulo 2 acabou se tornando um blockbuster do gênero. Custou cerca de 70 milhões de dólares, fez uma imensa bilheteria, mas é necessário pontuar algumas coisas. 

Para um filme de quase 3h de duração, It – Capítulo 2 escolheu se manter um pouco superficial demais. É difícil se apegar aos personagens emocionalmente, exceto na cena do jantar. Nós não vemos o companheirismo da infância, a tentativa de que eles se reconectassem uns com os outros que é apresentada no livro, a possibilidade de encontrarem antigas emoções já há tanto tempo enterradas. O que causa um pouco de confusão, talvez, já que é possível que se você não tenha lido o livro, vai imaginar que algumas decisões foram estranhas: por que o Bill é tão importante? Por que essas pessoas morreriam para ajudá-lo? Só uma promessa? Por que os finais escolhidos foram aqueles? Nessas mesmas perguntas, talvez, algumas pessoas se perguntem: por que a Bev acabou ficando com Ben, se ela imaginava que amava o Bill? 

It – Capítulo 2 perde em profundidade pois se preocupa em assustar da forma mais simples: colocando Pennywise para perseguir cada um deles. Conforme acompanhamos os personagens nas buscas de artefatos, Pennywise aparece para cada um deles, como havia aparecido antes. O que, talvez, pudesse ter sido uma boa escolha como adaptação, mas o filme falha em explicar coisas muito simples, se ocupando com detalhes que já havíamos entendido (ou não precisávamos entender tão bem). A questão do ritual de Chüd, que sofreu alterações para a adaptação, poderia ter sido explicada de forma mais breve, dando mais espaço para detalhes mais importantes. 

Dos principais problemas, talvez um dos maiores seja a forma como Beverly é colocada nessa última parte. Beverly Marsh é a única garota do grupo, o que por si só não é um problema, e se no livro sua participação durante a vida adulta já é bem menor que durante a infância, na adaptação isso ainda foi piorado.

Exploramos um pouco mais sobre como Bev foi retratada aqui no site no texto Beverly Marsh: de heroína a vítima nos capítulos de “It – A Coisa”. Sua relação com o marido abusivo foi rapidamente resolvida, sua escolha ao ficar com Ben foi pouco discutida, e pouco sabemos sobre suas escolhas já adulta. Afinal, pouco sabemos sobre as escolhas de todos os membros do Clube dos Otários enquanto adultos. 

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Pennywise (Bill Skarsgård)
Pennywise (Bill Skarsgård) em “It”. Imagem: reprodução

Como adaptação, It – Capítulo 2 faz alterações interessantes para que mesmo quem não leu o livro possa gostar de assistir ao filme, mas acaba se perdendo em escolhas desnecessárias. Existiam outros caminhos, que ainda manteriam a relação dos adultos com suas versões crianças e uns com os outros de forma mais simples e forte.

O livro, para muitos, pode ser percebido como um livro sobre amizade e laços, tanto com nossos passados quanto com nossos amigos, mas o filme opta por trabalhar o trauma em primeiro lugar. E isso não seria um problema, pois lida bem com o tema proposto. Mas ele se perde, enrola, e acaba parecendo que algo falta ali, alguns motivos, algumas situações. Como filme, infelizmente, não se sai muito melhor, tornando talvez uma experiência maçante e não tão divertida para a espectadora que não tem contato com a obra de King. 

Entretanto, no final, o que tiramos de It – Capítulo 2 é que seus traumas vão te perseguir se você não enfrentá-los. Mas, mesmo com a mensagem jogada na nossa cara, algo continua faltando para encerrar o ciclo em Derry, esse ciclo com Pennywise, o ciclo dessas crianças.

Apesar de tudo isso, e isso pode parecer controverso, It – Capítulo 2 é um filme divertido, se você não for esperando a grande obra de terror do século. Pode garantir cenas realmente assustadoras, pois efeitos e sustos não foram poupados na produção. Acompanhado com seu filme anterior, e somando a um tempo de quase cinco horas de duração, as duas partes acabam se complementando bem. 


Edição realizada por Isabelle Simões.

Escrito por:

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Formada em História, escreve e pesquisa sobre terror. Tem um afeto especial por filmes dos anos 1980, vampiros do século XIX e ler tomando um café quentinho.
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