O Amor Sangra (Love Lies Bleeding) é um thriller noir ambientado nos anos 80, seguindo uma fisiculturista sem dinheiro se preparando para uma competição em Las Vegas (Katy O’Brian) e seu interesse amoroso, uma funcionária da academia que ela começa a frequentar (Kristen Stewart).
A trama se desenrola em camadas, e temos clareza da teia que envolve os personagens apenas na parte final do filme. O romance entre Jackie (O’Brian) e Lou (Stewart) começa com um pedido por cigarro e uma picada de anabolizantes, denunciando as temáticas do filme logo de início. Uma falta de aceitação da sexualidade pela cidade ou família não é uma peça principal da história em nenhum momento, que evolui para ficar cada vez mais acelerada e sangrenta.
A diretora afirmou em mais de uma entrevista que O Amor Sangra retrata uma “batalha entre mente e corpo”, e temos o vício em cigarros de Lou e a obsessão de Jackie com fisiculturismo como os grandes pilares desse desenvolvimento.
Aviso: análise a seguir contém spoilers da história
Lou e seus cigarros em O Amor Sangra
“No fim, é apenas um filme sobre uma mulher tentando parar de fumar e falhando.”
Rose Glass, diretora de O Amor Sangra, em entrevista com Consequence (tradução livre)
Conhecemos a personagem de Stewart a partir de seu vício: logo na primeira cena, ela está ouvindo um audiobook para parar de fumar. O texto, que fala das desgraças e perigos do cigarro, se contrapõe com a rotina de Lou – sempre com um cigarro na mão. Temos poucas informações sobre quem ela é, além do fato de trabalhar em uma academia aos pedaços, ser uma fumante inveterada e estar tentando parar. Lou não parece feliz.
Rapidamente entendemos que sua situação familiar é complicada. Ela trabalha na academia do pai, mas não fala com ele. Lou Sr. (Ed Harris) é dono de um estande de tiro e está sendo procurado pelo FBI, com claro envolvimento em crimes violentos. Quando conhecemos sua irmã, Beth (Jena Malone), entendemos o porquê de Lou seguir na cidade: vítima de violência doméstica, Beth sofre agressões cada vez mais graves do marido (Dave Franco).
Esse retrato inicial de Lou, apesar de melancólico, nos traz simpatia com a personagem: ela está tentando fazer o melhor possível, dentro de um cenário sombrio.
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Jackie e a faca de dois gumes da sua disciplina
A primeira aparição de Jackie nos introduz ao oposto de Lou: ela está fazendo tudo em seu poder para alcançar seus objetivos. Ela pede caronas, dorme embaixo da ponte, transa com JJ (Franco) para conseguir um emprego. Mesmo sem nenhum recurso, amanhece fazendo exercícios e tem como foco único a competição em Las Vegas.
Sua disciplina é retratada como uma obsessão, motivada por sua infância difícil, em que sofreu bullying e enfrentou questões de autoimagem. A transformação de seu corpo é uma forma de resistência e empoderamento. Quando confrontada pelo pai de Lou sobre o porquê não gosta de armas, ela diz que “Qualquer um pode se sentir forte se escondendo atrás de um pedaço de metal. Eu prefiro conhecer a minha própria força.”
Adotada aos treze anos, entendemos que ela brigou com as figuras parentais – que a consideram um monstro. Se pelo corpo ou pela sexualidade, não temos certeza.
Entre vício e obsessão
O romance é acelerado e tórrido: Jackie começa a morar com Lou no segundo dia, e uma vida doméstica quase pacata toma lugar na casa. Rapidamente enxergamos os efeitos uma na outra, com Jackie tomando cada vez mais drogas para performance e Lou largando o cigarro de vez. Preparando os ovos sem gemas e dedicando-se à vida da namorada, temos um momento de paz para a agora não fumante personagem de Stewart.
No entanto, o equilíbrio é frágil e se desfaz quando Lou introduz Jackie para a irmã e o marido. Duas coisas acontecem: Lou descobre que Jackie dormiu com JJ, tomando contato com a parte “feia” da disciplina obcecada da namorada, e Jackie descobre mais do passado e das feridas de Lou, ao ver a relação tóxica dos cunhados. O que poderia ser uma ruptura aquece ainda mais o romance das duas, que dizem “Eu te amo” na mesma noite, depois de brigar e transar em reconciliação.
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Lou: quem é, e quem gostaria de ser
A violência é uma peça-chave na história, mas Lou e Jackie têm relações bem diferentes com ela. Jackie, focada e cuidando de si mesma, vê na violência uma forma de emancipação. Lou é o oposto – ela foge dela, e inicialmente assumimos que é por associá-la ao pai. Só quando mais peças da história são reveladas é que entendemos o real motivo dessa fuga.
Tudo se relaciona a uma ausência marcante: descobrimos que a mãe de Lou sumiu, e não está claro se está escondida ou foi morta pelo pai. Essa é a chaga que, mais tarde, descobrimos ter sido a cisão entre Lou Sr. e a filha. Lou trabalhava nos negócios escusos do pai e era considerada “uma grande parceira” por um dos agentes do FBI.
As peças do quebra-cabeça de quem é Lou se encaixam com essa revelação: sua relação com o cigarro, com o pai, com a irmã, ficam mais claras. Ela não carrega apenas o mesmo nome que o pai, mas também foi um espelho dele durante muito tempo. Lou Sr. declara que não matou a esposa, mas que ela foi embora porque não aguentava mais tê-lo como marido e nem Lou como filha.
A mulher a quem fomos introduzidas no início de O Amor Sangra parece ser alguém melancólica com a dura realidade da vida. Com o desenrolar do filme, entendemos que Lou é traumatizada por quem ela é capaz de ser e pelas consequências das suas próprias ações.
Seu cuidado desesperado com Beth também pode ser visto como um reflexo da culpa pelo abandono da mãe. Lou tenta desesperadamente não se reconhecer mais em Lou Sr., mas gravita em seu universo – morando na mesma cidade, trabalhando na academia do pai -, usando a segurança da irmã como justificativa.
Está colocado: Lou gostaria de ser alguém além dela mesma, alguém sem vícios, que não machuca ninguém, que protege familiares desprotegidos. Essa sua imagem ideal vê na violência um passado macabro, uma prisão. Com o convívio efervescente com Jackie, o assassinato de JJ e a eficiência com a qual ela lida com as mortes e crimes que se acumulam, entendemos que essa imagem ideal simplesmente não existe.
O amor que sangra, entre fisiculturistas gigantes e cigarros acesos
A colisão de duas forças opostas – a obsessiva Jackie e a paralisada Lou – é um evento impossível de passar sem deixar feridos. O amor que sangra no filme vai muito além da relação das duas. Os laços familiares de Lou sofrem cortes hemorrágicos: a compreensão de que Beth nunca quis ser salva, o abandono da mãe, a luta final com o pai.
O trabalho de personagem em O Amor Sangra é o principal motor do filme. Escolhas surreais de roteiro, como o crescimento estilo Hulk de Jackie, são momentos mais estilísticos e simbólicos do que acontecimentos lineares. Seu ar levemente cômico não atrapalha a atmosfera da história.
O filme se encerra com uma Jackie dormindo tranquila no carro e uma Lou que finalmente cede à vontade de fumar um cigarro, que aprecia aceso ao lado de um corpo que precisa desovar. Vemos nessa composição que seria adorável se não fosse um crime em andamento, que algo mudou muito profundamente nas personagens. Lou encontrou alguma forma de paz, e assumiu a si mesma. Jackie, finalmente, pode parar de brigar e descansar.