A Substância: o body horror que chegou ao mainstream

A Substância: o body horror que chegou ao mainstream

Desde sua estreia em setembro de 2024, A Substância tem pautado a crítica, o público, as trends e os memes, furando a bolha do body horror e atingindo o mainstream. Dirigido por Coralie Fargeat, cineasta francesa, e estrelado por Demi Moore e Margareth Qualley, o filme promete e entrega uma mistura de ficção científica gore, terror, drama, sátira e suspense psicológico.

Do roteiro e visual às atuações, A Substância se firma na intenção de provocar. As reações da crítica e público foram intensas e divididas entre elogios desenfreados, análises obsessivas e contestações ferozes. Uma coisa é certa: amando ou odiando, você vai sentir alguma coisa depois de assistir esse filme.

Uma versão melhor de você

A história d’A Substância começa com Elisabeth Sparkle (Moore), atriz que acaba de completar cinquenta anos de idade. Somos introduzidas brevemente a seus momentos de glória, e compreendemos que estão no passado. Sparkle é apresentadora do programa de TV Sparkle Your Life, focado em exercícios físicos e desenvolvimento pessoal, mas é demitida logo após seu aniversário. Seu chefe, Harvey (Dennis Quaid), claramente a vê como descartável.

Confusa e triste, Elisabeth se envolve em um acidente de carro. No hospital, após constatar que não sofreu nenhum ferimento, ela recebe de um enfermeiro o pendrive com os dizeres A SUBSTÂNCIA.

O dispositivo contém um comercial que poderia facilmente estar rodando no Instagram, com música acelerada e voice over explicativo. O vídeo oferece a possibilidade de uma nova versão de você, melhorada. Apesar de todas as bandeiras vermelhas, Elisabeth decide seguir com o experimento.

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É uma foto de cima, com uma caixa aberta,e duas mãos brancas que presumidamente acabaram de abri-la seguram um cartão branco, que lê em letras garrafais: "Remember you are one"
“Lembre que vocês são uma” | Fonte: Internet

Ao tomar a Substância, temos a primeira cena mais impactante de body horror, na qual o corpo de Elisabeth se abre para dar a luz à sua versão mais jovem, Sue (Qualley). A partir daí elas devem viver uma vida dupla, revezando sua existência semanalmente, respeitando o equilíbrio. Sue segue os mesmos passos de Elisabeth, se candidatando para substituí-la na TV e ascendendo rapidamente para o sucesso.

Sue é tudo que Elisabeth não é mais: jovem, firme, desejada. O equilíbrio semanal, como esperado, não é respeitado, e as duas se antagonizam em ritmo acelerado para um final que deixa o palco em chamas. Os temas não são propostos de maneira discreta: envelhecimento e a descartabilidade da mulher, ilustrados de maneira literal para uma mensagem clara.

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Narrativa visual de uma fábula contemporânea

Visualmente, A Substância é igualmente provocativo. O filme aposta nas cores primárias, contrastes fortes, embalado com música acelerada. Com cenas e direção de arte que referenciam clássicos como O Iluminado, Fargeat, Stanislas Reydellet (diretor de arte) e Benjamin Kracun (diretor de fotografia) criam uma sucessão de cenas e cenários marcantes.

A caracterização visual e cenográfica de Elisabeth é certeira: um apartamento gigantesco mas escuro e minimalista, com um retrato gigante de si mesma. Vemos ali, ilustrado pelo cenário, que ela não existe para além de sua imagem.

A janela, como um aquário, permite que veja Los Angeles e um outdoor que representa o mundo lá fora: inicialmente com seu rosto, porém logo substituído por Sue. As cenas de Elisabeth após utilizar a Substância são quase todas lá dentro, evidenciando sua solidão crescente e impotência ao assistir seu eu melhor e mais novo dominar o que antes foi seu.

Outra excelente caracterização é seu sobretudo amarelo, marcante durante toda a narrativa, e ironicamente a sua peça de escolha para ser discreta. Ali temos mais um vislumbre de quem ela é: sua ideia de discrição é um traje que chama atenção por definição. Elisabeth não sabe existir fora do olhar alheio. Essa relação também é ilustrada pela sua estrela na calçada de Hollywood, e as cenas finais do filme.

Um recinto branco, com pequenos armários do lado esquerdo. de tranca eletrônica do lado esquerdo. Elisabeth, uma mulher branca de cabelos pretos e compridos, está encarando os armários, de perfil. Ela usa um sobretudo amarelo chamativo, e tem uma bolsa vermelha na mão.
Elisabeth e seu sobretudo | Fonte: Spotern

Sue, com seu corpo perfeito, é filmada em fragmentos: lábios, olhos, bunda, peitos. Ela é a mercadoria perfeita, o suprassumo do que deveria ser o corpo feminino – de fato a versão melhor. Seu vestuário envolve diversas referências à imagem da cobra, que podem ser interpretadas tanto como a noção de descartar a pele antiga por uma nova, quanto uma referência a ouroboros: a serpente que devora o próprio rabo.

Entre o gore e o simbólico

A Substância não é tímida com sua provocação, e notamos camadas à medida que nos debruçamos sobre o filme. Além da óbvia crítica ao corpo feminino como um produto descartável, é possível observar a relação do Eu com o próprio envelhecimento: Sue, mesmo compartilhando da mesma consciência de sua matriz, consome e ignora Elisabeth da mesma forma que consumimos e ignoramos nosso próprio futuro, o que irá refletir em como envelhecemos.

A comida é um aspecto interessante da narrativa. Retratada de forma nojenta e quase tão gore quanto o body horror, ela sugere essa relação conturbada com nutrição, magreza e autoimagem. As cenas do filme, de forma geral, trazem em sua violência e nojo a experiência feroz que a beleza proporciona às mulheres. O corpo que não pode ser domesticado e consumido é feio, assustador, uma prisão de carne pronta para nos trair.

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Um espelho em um banheiro de azuleijos brancos. Refletido nele, Demi Moore, uma mulher branca na casa dos cinquenta anos, com uma blusa preta de veludo que cobre o colo e os braços até o cotovelo. Ela está segurando o cabelo, preto e longo, para o lado enquanto se examina no espelho, de maquiagem borrada.
Elisabeth se examinando no espelho

Tudo isso é envelopado pela solidão que a busca pela beleza e holofotes promove. Elisabeth não tem amigas, e seu isolamento intensifica sua necessidade de validação do olhar masculino. A cena em que se arruma para um encontro, se maquiando cada vez mais e se cobrindo como uma pária, coloca no centro a questão de amor como uma espécie de merecimento, atrelado à juventude.

A Substância propõe trazer para a tela e para os espectadores a experiência visceral de perseguir o corpo perfeito, e a dor e solidão que surgem no processo.

Subversão, Sue e o male gaze

Qual o limite entre a crítica subversiva e o reforço do status quo? A Substância, com toda sua ousadia temática e visual, foi condenado por propagar exatamente o que pretendia subverter.

A forma que retrata o corpo de Elisabeth, como algo grotesco e assustador, se contrapõe às tomadas do corpo fragmentado e perfeito de Sue, que se agitam sensualmente direto para o espectador. Seria essa uma representações crítica das visões nocivas da realidade atual, ou um desserviço que só as reforça por repetição?

O corpo perfeito de Sue virou obsessão no TikTok, X (Twitter) e Instagram, com trends de maquiagem e fan edits da personagem. A ironia é que esse corpo não existe, já que Margareth Qualley passou por treinos físicos intensivos e usou próteses para aumentar os seios. Mesmo com sua crítica tão literal e explícita, parece que A Substância não escapou de criar o objeto de adoração ideal.

Tweet de usuário "@sue_pitu": "obcecada pela sue (emoji de injeção)", seguido de imagem da personagem Sue, uma mulher branca de olhos claros e cabelo longo e castanho com ondas, usando um maio rosa metálico, em posição social no chão, enquanto um fotógrafo tira fotos.
Post no X sobre a personagem

Muito disso ocorreu pela forma que Sue foi filmada: como já mencionado, em fragmentos, com longas tomadas da bunda, dos lábios, desse corpo cuidadosamente construído. As cenas são um bom exemplo do que Laura Mulvey, crítica cinematográfica e feminista, chama de male gaze – o cinema assumindo o ponto de vista masculino, com as mulheres como objeto a ser observado.

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Essa constatação não invalida A Substância: a escolha artística de adotar o male gaze como prenúncio do gore que se sucede na história pode ser uma tentativa de subverter o olhar do espectador. Se essa empreitada funcionou, no entanto, é um debate para a posterioridade.

A obra de Fargeat apostou em uma ousadia crua, às vezes um pouco autoexplicativa demais, mas que apesar ter menos espaço para nuance e sutileza, garante uma experiência intensa e uma renovação de gênero com um dos filmes mais marcantes do ano.

A Substância está disponível na MUBI.

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Bia é uma pesquisadora e escritora formada em economia. Obcecada por internet e cultura, adora cinema e é leitora assídua de todo tipo de ficção.
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