“A maior história de vingança de todos os tempos.” Essa frase é frequentemente atribuída a O Conde de Monte Cristo, obra-prima de Alexandre Dumas, um épico literário que explora traição, justiça e redenção. No entanto, essa definição tem sido tão simplificada que muitas adaptações reduzem o romance a um melodrama de vingança superficial.
O filme francês de 2024, estrelado por Pierre Niney no papel de Edmond Dantès, infelizmente cai na armadilha de transformar o que deveria ser uma narrativa sofisticada em algo que beira o exagero melodramático e o tom novelesco — elementos que Dumas evitou em sua obra-prima.
Foi justamente essa complexidade que elevou o livro ao patamar de clássico literário, muito além de um simples romance de folhetim, ainda que tenha sido publicado como tal.
No entanto, a adaptação parece mais um filme blockbuster da Marvel (no pior dos sentidos). O resultado é uma produção visualmente atraente, mas superficial em sua narrativa, incapaz de capturar a essência da obra de Dumas, desapontando os fãs que esperavam uma adaptação à altura do clássico.
Um Monte Cristo de capa, espada… e máscara
O protagonista de O Conde de Monte Cristo (2024) é, à primeira vista, o Edmond Dantès criado por Alexandre Dumas. No entanto, ao acompanhar sua jornada no novo filme, o espectador pode facilmente confundi-lo com um herói de quadrinhos ou um Mary Sue masculino.
Em vez do Conde calculista, paciente e sofisticado do romance original, encontramos um Edmond que mais parece ter saído do universo cinematográfico da Marvel.
Ele exibe habilidades de combate, dignas de um treinamento militar intensivo — algo que, curiosamente, teria adquirido durante sua prisão no Castelo de If, onde deveria estar sucumbindo à brutalidade do cárcere e ao isolamento.
No lugar das intrigas sutis e manipulações psicológicas que desmascaram seus inimigos na obra literária, este Monte Cristo opta por confrontos físicos e duelos dramáticos.
A adaptação chega a inserir não apenas um, mas dois duelos que jamais existiram no livro, desrespeitando uma das decisões de Dumas: subverter esse tipo de tropo comum no gênero de “capa e espada.” Essa escolha garantiu a longevidade e relevância literária da obra.
A abordagem exagerada culmina em cenas que flertam com o absurdo. Edmond utiliza disfarces elaborados, incluindo próteses de látex que o tornam irreconhecível, e sua mansão — recriada com exagero no CGI, em um estilo próximo ao das produções da Disney — abriga um arsenal mais digno de um vilão de filmes de espionagem.
O resultado é um personagem que se afasta da imagem de um homem consumido pela dor e pela busca de justiça divina, aproximando-se perigosamente de uma caricatura. Isso obscurece a profundidade psicológica que tornou Edmond Dantès um dos personagens mais memoráveis da literatura mundial.
É importante ressaltar que o livro sempre flertou com a teatralidade e o exagero, características que o tornam irresistível. Mas há uma linha tênue entre o teatral e o absurdo, e essa adaptação ultrapassa essa linha repetidamente.
Edmond não é mais apenas um homem quebrado que retorna para acertar contas; ele se transforma em algo que lembra o Batman. E, com isso, o cerne da sua jornada é completamente desvirtuado.
Onde está a sofisticação de Monte Cristo?
Um dos maiores triunfos de O Conde de Monte Cristo é o retrato de Edmond Dantès como um manipulador brilhante, capaz de agir nos bastidores e mover suas peças com precisão cirúrgica.
No romance original, suas ações são meticulosamente planejadas e carregadas de simbolismo, envolvendo não apenas a retribuição, mas também a exploração das fraquezas morais de seus inimigos. No filme de 2024, no entanto, essas nuances são descartadas em favor de soluções narrativas simplistas e apelos visuais chamativos.
O exemplo mais gritante dessa simplificação é o resgate de Albert. No livro, Monte Cristo utiliza o carnaval romano como palco para um sequestro elaborado, demonstrando sua riqueza e influência ao negociar com o temido bandido Luigi Vampa.
Já no filme, essa cena é reduzida a um confronto banal: Edmond simula um ataque nas ruas, enfrentando capangas contratados por ele mesmo. A troca de uma narrativa tão rica e cheia de camadas por um artifício óbvio subestima a inteligência do público e enfraquece a essência do personagem.
Além disso, a abordagem visceral e direta do filme reduz Monte Cristo a um mero executor de vinganças pessoais, quando ele deveria ser o arauto de uma justiça quase divina. No romance, Edmond se percebe como um instrumento da providência, e sua frieza calculada é parte do que o torna tão fascinante.
Ele não precisa de lutas físicas ou exibições de força; sua verdadeira arma é o intelecto. Essa camada é completamente perdida na adaptação, transformando Monte Cristo em mais um vingador genérico.
Os vilões são reduzidos a caricaturas
Alexandre Dumas é um mestre na criação de vilões complexos, que, apesar de seus atos desprezíveis, mantêm uma humanidade em suas ambições, medos e moralidade questionável. No entanto, O Conde de Monte Cristo transforma Villefort, Danglars e Mondego em estereótipos tão exagerados que beiram o risível.
Fernand Mondego, por exemplo, é apresentado como um vilão caricato, chegando ao absurdo de usar um tapa-olho – um clichê digno de um desenho animado.
Sua traição contra Edmond Dantès, que no livro é motivada por ciúmes e ambição, é amplificada a níveis ridículos, eliminando qualquer traço de humanidade ou profundidade. No filme, Mondego é cruel por definição, mas sem as camadas que o tornam um antagonista interessante e crível na obra original.
Villefort, o promotor público ambicioso do romance, é transformado em um monstro sem qualquer traço redentor. A complexidade de seu relacionamento familiar – que inclui a trágica narrativa de sua esposa Heloise, uma assassina em série – é completamente eliminada.
Em seu lugar, o filme introduz uma nova personagem, sua irmã Angele, cuja história serve apenas para reforçar a vilania de Villefort de maneira simplista e caricata.
Danglars, outro personagem fascinante no livro, é reduzido a um vilão obcecado por dinheiro, sem as outras características que o tornam tão reminiscente de homens ricos e poderosos do mundo real.
Suas motivações, bem como sua covardia e falhas humanas, são reduzidas a uma caricatura unidimensional, evidenciando a falta de imaginação da produção.
A tragédia de Haydée e outros personagens secundários
Entre os aspectos mais decepcionantes está o tratamento dado a Haydée, a princesa grega que desempenha um papel central na vingança contra Mondego. No romance, Haydée não é uma personagem passiva, mas sim uma figura ativa, igualmente movida pelo desejo de justiça e vingança ao lado de Monte Cristo.
No entanto, na adaptação, Haydée é reduzida a um arquétipo simplista e, de forma completamente desnecessária, envolvida em um romance com Albert. Essa subtrama rasa compromete não apenas a força narrativa de sua personagem, mas também enfraquece o impacto emocional da história.
Além de Haydée, outros personagens centrais do romance são completamente eliminados. Figuras como Maximilien Morrel, Heloise e Valentine de Villefort se tornarem irreconhecíveis, enquanto Benedetto, que no livro é retratado como um psicopata, é transformado em um herói juvenil trágico na adaptação.
Essas mudanças não apenas distorcem as intenções originais de Dumas, mas também removem a profundidade emocional e as dinâmicas familiares que tornam o livro uma obra tão rica e multifacetada.
Um final sem esperança que perde a essência de Dumas
O desfecho de O Conde de Monte Cristo tenta ser sombrio, mas perde a essência que torna o final do livro tão memorável. Em vez de equilibrar justiça e redenção, Edmond encerra sua jornada sozinho, sem Haydée e sem a sensação de completude que Alexandre Dumas constrói em suas páginas finais.
Embora o romance não ofereça um final totalmente feliz, ele é marcado pela esperança, onde Edmond redescobre o significado da vida e do amor, mesmo após anos de sofrimento.
O filme parece punir seu protagonista por buscar justiça. A narrativa transmite uma mensagem confusa e contraditória, especialmente após dedicar tanto esforço para apresentar a vingança de Monte Cristo como como cool e seus vilões como figuras tão desprezíveis que o público torce por sua destruição.
Edmond não busca apenas vingança; ele busca significado. E, no final, ele encontra. Mas o mesmo não ocorre na adaptação.
Adaptações que distorcem a essência dos clássicos
Um dos maiores problemas de adaptações como essa é que elas não apenas falham em capturar a essência da obra original, mas também perpetuam ideias equivocadas sobre o que ela representa.
O público que não leu O Conde de Monte Cristo provavelmente sairá do cinema com uma compreensão superficial e distorcida da história. A vingança, apresentada como o tema central, ofusca a profundidade do romance, que é uma reflexão sobre justiça, redenção e a complexidade da natureza humana.
Além disso, adaptações malfeitas reforçam o estigma de que clássicos literários são “difíceis” ou “inacessíveis”.
Dumas escreveu o romance para um público amplo, transformando-o em uma narrativa popular. Ao reduzir a história a algo raso e desprovido de nuances, o filme aliena tanto os fãs do original quanto os espectadores casuais, que poderiam se interessar em explorar o livro.
É justo, no entanto, reconhecer os méritos técnicos. A cinematografia é bem-feita, com cenas bem compostas e uma estética visual que combina com a ambição grandiosa da história – embora a marcada artificialidade de alguns momentos seja incômoda.
A trilha sonora é outro ponto positivo, oferecendo momentos de verdadeira emoção que, infelizmente, não encontram apoio na narrativa.
Mais uma adaptação que desaponta
O filme é mais uma entrada decepcionante na longa lista de adaptações que falham em compreender a essência da obra de Dumas.
Enquanto tenta modernizar a história para atrair um público mais jovem, sacrifica os elementos que tornam o romance um clássico: a sofisticação narrativa, a profundidade psicológica dos personagens e o delicado equilíbrio entre vingança e redenção.
Para os fãs que aguardavam uma adaptação definitiva, esta produção certamente não é a resposta. Contudo, há um fio de esperança para os admiradores da obra: a minissérie dirigida por Bille August, prevista para o final de 2024, talvez consiga finalmente capturar a grandeza do romance.
Até lá, o melhor conselho é voltar às páginas de Dumas, onde Edmond Dantès continua sendo o protagonista complexo e inesquecível que inspirou gerações ao longo dos séculos.