O filme de estreia da cineasta zambiana Rungano Nyoni, Eu não sou uma Bruxa (2017) chama atenção já logo pelo título, afinal, como uma garota de 8 anos, Shula (Maggie Mulubwa) seria capaz de lutar contra uma comunidade inteira que a acusa de bruxaria?
Rungano, que já ganhou o prêmio de melhor direção na mostra Um Certo Olhar, do Festival de Cannes em 2024, é uma cineasta que, pelo visto, tem muito a dizer sobre as garotas em seus filmes.
Logo de cara, o famoso discurso de Sojourner Truth feito na Women’s Rights Convention em Akron, Ohio, nos EUA em 1851, me pareceu um diálogo possível para tentar entender um pouco sobre qual seria o destino de Shula.
E não sou uma mulher?
Sojouner nasceu Isabella em 1797. Escravizada, sua biografia atravessa ocupações como empregada doméstica, abolicionista e escritora. Tornou-se ativista dos direitos das mulheres e abolicionista afro-americana em 1843, apenas oito anos antes de proferir um discurso que ecoa até hoje.
O texto, amplamente revisitado por estudiosas, reivindica a vida das mulheres negras. Sojouner expõe em seu discurso, os mecanismos de opressão e dominação específicos para as mulheres negras, considerando, portanto, não só o gênero, mas atravessamentos como a raça, a classe, a religião e outros.
Sojouner já fabulava sobre a vivência das mulheres pretas, suas trajetórias e, principalmente, suas invisibilidades. Nesse sentido, a garotinha com a qual me deparo no filme de Rungano – uma órfã de 8 anos, parece materializar mais uma vez os questionamentos feitos há mais de 150 anos.
Shula e os acampamentos de bruxas
O filme começa com vários turistas visitando o que ficou conhecido como os acampamentos de bruxas, muito comuns no continente africano. Apesar de parecer apenas uma fabulação assustadora e extrema sobre a opressão das mulheres, a história contada por Rungano baseia-se na experiência real de muitas mulheres e meninas.
Não à toa, o filme inicia com os turistas que, logo de cara, se deparam com uma série de mulheres, sentadas lado a lado, pintadas e presas por uma fita que, segundo a explicação, evita que saiam voando por aí. Os gritos dessas mulheres, como se fossem pássaros famintos em uníssono, é apenas um indicador do que está por vir.
Escravização, perseguição, misoginia e demonização das mulheres. A ficção torna-se tão assustadora quanto a realidade: a caça às bruxas. Na Zâmbia, por exemplo, a simples acusação de bruxaria já basta para o cárcere. Mas inda mais terrífico – mas não menos esperado – é que, a maior parte dessas suspeitas recaem nas mulheres.
Shula é acusada por uma mulher por “muitas coisas estranhas estarem acontecendo, coisas que não haviam acontecido antes”. A jovem bruxa, não conseguindo comprovar sua inocência, acaba sendo enviada para um acampamento de bruxa.
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A vida de bruxa de uma garota não-bruxa
Os campos de bruxas são repletos de mulheres mais velhas e que veem em Shula alguém que deve ser olhada com cuidado. O pedido para que a menina frequente a escola é feito pelas mais velhas, contudo, a ganância de Mr. Banda (Henry B. J. Phiri) faz com que a garota torne-se uma “bruxa” lucrativa.
Para esse homem, espécie de “xerife” da cidade, todos os problemas podem ser resolvidos pela jovem garota. Assim, levá-la para programas de TV para fazê-la famosa é apenas uma dessas coisas.
Shula possui a rédea mais longa de todas. Ela caminha para locais mais afastados do acampamento, e é considerada sortuda pelas mais velhas. A garotinha, que transfere todo o seu pavor para o olhar – já que as palavras são quase sempre colocadas à força em sua boca, carrega o peso imenso de uma sociedade que culpa suas mulheres por toda e qualquer tipo de crise que, mais dia ou menos dia, pretende contestar a manutenção da lógica capitalista.
Um final infeliz
Shula, nas sequências finais, mesmo com a vida roubada por adultos irresponsáveis e lunáticos, ainda resguarda uma leveza que nos faz pensar que seu final poderia ser diferente. No entanto, é essa mesma leveza que a faz caminhar, dançando e resmungando canções para longe. Esse corpo pequeno, frágil e enfraquecido já não aguenta mais o trabalho árduo.
A garotinha conversa com suas companheiras mais velhas e pensa que talvez fosse melhor ter escolhido ser uma cabra, afinal, ela poderia “andar livremente e comer quando quiser”. Shula é ovacionada como doida, as mulheres dizem que ela seria morta e viraria alimento. Acontece que nessa realidade tão inacreditável, o pensamento da pequena talvez não seja tão alienado.
Shula sai para caminhar e caminha o suficiente para, de fato, ir embora. Seu corpo morto é levado para longe por dois garotos e encontrado por uma de suas companheiras. Todas se reúnem para cantar para a Shula em uma última cerimônia. Elas cantam a celebração pelo nascimento, pelo casamento e pela morte.
A celebração não deixa de ser verdadeira, mas por motivos errados. À Shula foi tirado o direito de viver, tirado também o que lhe seria imposto caso ela fosse adulta – o casamento. A pergunta que fica é: quantas mais Shulas ainda precisam passar por isso? Quantas mais Shulas precisaram caminhar para que outras cheguem mais longe?
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