House of The Dragon, ou A Casa do Dragão, é o spin-off da aclamada série da HBO, Game of Thrones. Baseada em acontecimentos narrados no livro Fogo e Sangue, de George R. R. Martin, a série explora a história da Casa Targaryen até os eventos retratados em As Crônicas de Gelo e Fogo.
A segunda temporada de House of The Dragon, exibida entre julho e agosto de 2024, gerou discussões acaloradas sobre o que constitui uma boa história e uma boa série. Atenção: este texto contém spoilers das primeiras duas temporadas de House of The Dragon.
A tradição de Game of Thrones
Game of Thrones é conhecida por suas tramas impulsionadas por personagens femininas poderosas, como Daenerys, Cersei, Sansa, Arya, Olenna Tyrell, entre outras. Apesar dos problemas narrativos que marcaram as últimas temporadas, é inegável que essas personagens ganharam destaque nas disputas políticas e de poder da história, afastando-se de tropos femininos tradicionais e apresentando personalidades complexas.
Essa característica é um traço marcante nas sagas de Martin, que cria personagens moralmente ambíguos, agindo conforme seus próprios interesses, permitindo ao público decidir por quem torcer. Este paralelo é relevante, pois o público de House of The Dragon é, em grande parte, composto por fãs de Game of Thrones.
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Dessa maneira, House of The Dragon focou inicialmente na construção das personagens e no estabelecimento dos conflitos que culminam na “Dança dos Dragões“, uma guerra civil que divide a Casa Targaryen e seus aliados na disputa pelo Trono de Ferro. Porém, os roteiristas e showrunners optaram por direcionar o público para apoiar um dos lados da disputa, o que influencia o desenvolvimento das personagens na segunda temporada.
House of The Dragon entre os “pretos” e os “verdes”
Na primeira temporada, a rivalidade entre Alicent (Olivia Cooke) e Rhaenyra (Emma D’Arcy) é central, mas a segunda temporada busca resolver essa tensão, que descarta tal rivalidade. A evolução das personagens, observada desde a juventude em diferentes momentos temporais, revela como suas diferentes abordagens aos deveres e obrigações causam atritos, especialmente após o casamento de Alicent com o rei Viserys, pai de Rhaenyra.
Acontece, então, a divisão entre os “pretos” (Rhaenyra e seus aliados) e os “verdes” (Alicent e seus aliados). Nessa divisão, a série deixa claro quem são os vilões e os mocinhos. Embora Rhaenyra seja uma personagem moralmente complexa, que inicialmente se mostra rebelde e disposta a quebrar regras, há pouco espaço para questionar suas atitudes, pois elas são contrastadas com as de Alicent.
Alicent é apresentada com uma estética que remete ao fundamentalismo religioso, exibindo penteados conservadores e amuletos cada vez maiores em suas vestes, simbolizando a Fé dos Sete. Sua postura e discurso reforçam essa visão fundamentalista, julgando Rhaenyra a partir dessa perspectiva, inclusive utilizando a paternidade dos filhos da princesa como uma maneira de atacá-la e questionar seu direito ao trono.
Assim, na divisão dos papéis dentro da trama, fica evidente a intenção dos criadores da série de posicionar Alicent e os “verdes” como os vilões da guerra, desde o início.
Rainhas sem influência em House of The Dragon
Na segunda temporada, vemos esses conflitos, já muito estabelecidos, serem diluídos com o início das movimentações para a guerra. Mesmo após o final da temporada anterior, quando Lucerys (Eliot Grihault), um dos filhos de Rhaenyra, é morto por Aemond (Ewan Mitchell), um dos filhos de Alicent, Rhaenyra abandona sua complexidade e ambiguidade, passando a construir suas atitudes em oposição ao próprio conselho, ao marido e até mesmo ao filho mais velho. Ou seja, todas figuras masculinas.
Sua agência como personagem torna-se, então, questionável, já que todas as ações de seus aliados, num primeiro momento, ocorrem sem o seu apoio. Alicent passa por um processo semelhante, com sua influência sendo descartada após a coroação do filho mais velho. Nenhum dos que antes ela considerava aliados dá valor às suas colocações, incluindo Larys Strong (Matthew Needham), que na primeira temporada atuava como um “mestre dos sussurros” para Alicent. Nem o pai, os filhos, nem mesmo o amante.
As personagens não apenas compreendem seu lugar como mulheres dentro das políticas em jogo — um lugar de submissão, esperado pelos homens ao seu redor —, mas, graças aos roteiristas, elas também passam a personificar divisões de gênero a partir da moralidade.
Alicent, que antes havia participado ativamente em planos de sabotagem contra a princesa herdeira, agora se encontra numa posição de oposição aos homens ao seu redor. Suas intenções se transformam numa busca pela resolução pacífica dos conflitos, visando a segurança de Rhaenyra, depois de ter auxiliado a usurpação do trono em nome do filho mais velho.
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Protagonistas ou coadjuvantes?
Enquanto isso, Rhaenyra passa boa parte da temporada debatendo com o seu conselho da mesma forma. Buscando saídas diplomáticas, que incluem se encontrar em segredo com Alicent para tentar argumentar o fim das disputas. Em oposição aos seus aliados, que defendem o ataque contra as forças dos verdes.
Assim, as duas protagonistas são colocadas em posições opostas, representando “feminino x masculino” e “pacificidade x violência”, o que enfraquece o espaço para o desenvolvimento de personagens femininas complexas. Ser mulher não se resume a um comportamento conciliador, assim como ser homem não se limita à representação da violência. Exemplo disso são diversos personagens de Game of Thrones, como Jon Snow, Tyrion Lannister, Jorah Mormont, entre outros.
Em House of the Dragon, essa ambiguidade de caráter parece ser melhor explorada justamente em personagens masculinos, como Daemon (Matt Smith), Aemond e Aegon (Tom Glynn-Carney), cujas psique são detalhadamente desvendadas ao longo da série. Seja pelo sentimento de rejeição maternal ou pelos ressentimentos ligados à relação de cada um com o Trono de Ferro.
Ainda assim, esses personagens acabam desempenhando papéis menos ativos na trama, de modo a não ofuscarem o protagonismo estabelecido na primeira temporada. Contudo, esse protagonismo feminino também é pouco (ou mal) desenvolvido na série.
Protagonistas femininas podem ter defeitos
A segunda temporada poderia ter trabalhado esses aspectos de forma mais eficaz, colocando suas protagonistas no centro do desenvolvimento político da trama. A essa altura, a relação entre as duas não é mais essencial para o andamento da história e, na verdade, regride o desenvolvimento já conquistado.
Ao mostrar que a guerra saiu do controle de Rhaenyra, ou que Alicent realmente acreditou ter cometido um engano, ou que foi apenas manipulada pelos interesses dos homens ao seu redor — mesmo quando ela alertou o filho mais velho, ainda adolescente, de que ele poderia ser o herdeiro do trono e foi conivente com planos contra Rhaenyra e seus filhos — a série coloca a personagem em uma posição de inocência quase infantil, retirando qualquer agência que ela pudesse ter tido.
Ambas tiveram oportunidades de evitar a guerra, mas escolheram não abrir mão do poder máximo, e isso é positivo. É uma guerra pelo controle de um reino; elas não precisam ser os pilares da moralidade, deixando o “trabalho sujo” para os homens. Personagens femininas podem ser complexas e moralmente ambíguas, assim como os personagens masculinos. É possível torcer por uma personagem feminina que comete erros, possui defeitos fatais ou é até mesmo um pouco má.
House of the Dragon passou uma temporada estabelecendo Alicent como uma espécie de vilã e Rhaenyra como uma personagem de atitude. No entanto, a segunda temporada retira a responsabilidade da guerra de Rhaenyra e limita Alicent a um discurso pacífico, em meio a uma guerra cercada de tramas políticas.
No universo criado por George R. R. Martin, não existem inocentes; as personagens mais complexas são as mais interessantes. Parece que esse aspecto foi deixado de lado na continuação da Dança dos Dragões.