Severance (Ruptura) é uma série criada por Dan Erickson. A Apple TV lançou a segunda temporada em 2025, depois de um hiato de dois que deixou seus fãs à beira do assento, com o final da primeira temporada. A série conquistou grande popularidade entre público e crítica, e a renovação para a terceira temporada. Logo, a construção de mundo e a atmosfera desconfortável que dão forma a realidade habitada pelos empregados da Lumon rendem muitas análises e perguntas para o espectador. Uma delas é a relação dos Eagan e as imagens.
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Severance e as imagens
Em Severance, acompanhamos os empregados do andar de rupturas da empresa Lumon. O processo que dá nome à série consiste na separação da consciência dos funcionários, criando uma nova ativada apenas dentro do trabalho. Assim, quando chegam no andar de rupturas, as personagens não se lembram de nada da sua vida externa. E quando saem, não se recordam de nada do que fazem no trabalho. Ou seja, a consciência do trabalho conhece e vive apenas o andar de rupturas da Lumon.
O mundo dentro e fora da Lumon é controlado pela família Eagan, proprietária da empresa e herdeira de Kier, figura tratada não apenas como fundador, mas também como um tipo de profeta ou líder messiânico dentro da cultura corporativa da Lumon. Esse controle dos Eagan se manifesta de diversas formas, sendo uma delas a manipulação da narrativa por meio do simbolismo que envolve as personagens.
A Lumon adota uma filosofia própria, com estrutura semelhante às religiões judaico-cristãs. No centro estão os “quatro temperamentos”, que, segundo Kier Eagan, representariam os pilares da personalidade humana. A história de Kier também integra esse folclore, como vemos no quarto episódio da segunda temporada, “Vale da Aflição”, em que Milchick (Tramell Tillman) leva os funcionários do setor de Refinamento de Macrodados para uma espécie de excursão por um momento da vida de Kier.
George Orwell e a manipulação pela linguagem
O que George Orwell tem a ver com a história de Severance? Ao longo da série, as imagens têm um papel fundamental na construção da narrativa das indústrias Lumon. Elas são usadas tanto para incutir medo e rivalidade entre os setores da empresa — como na cena em que Irving B. (John Turturro) descobre que o quadro “The Grimm Barbarity of OD” existe também no setor de Optics and Design, mas com os papéis invertidos e intitulado “The Macrodata Refinement Calamity” — quanto para reforçar a hierarquia entre os personagens e Kier, como no quadro “Kier Pardon His Betrayers”.

Em suas obras, Orwell mostra como o controle das massas pode ser exercido por meio da manipulação da linguagem. No livro 1984 (1949), ao retratar um regime totalitário e fascista, o autor inglês destrincha os mecanismos de institucionalização da censura — que, segundo ele, começa justamente pela linguagem. É por isso que o “Grande Irmão”, apesar do nome, representa uma figura autoritária e violenta. Da mesma forma, o chamado “Ministério do Amor” é, na verdade, o setor responsável por torturas e prisões no governo retratado.
É assim que Orwell estabelece o “duplipensamento” — o ato de acreditar simultaneamente em duas ideias contraditórias, mesmo que uma anule a outra. Como o amor poderia estar ligado à violência? O lema do regime que controla a sociedade em 1984, e que se tornou uma das marcas mais fortes da obra, sintetiza essa lógica: “Guerra é Paz; Liberdade é Escravidão; Ignorância é Força”.
Ou seja, o verdadeiro poder está em fazer com que a população acredite não só que os desígnios da autoridade são o melhor para ela, mas também que é isso o que ela deseja — mesmo que signifique viver sob opressão.
Em Severance o trabalho é “Misterioso e importante”
Em A Revolução dos Bichos (1945), Orwell retoma sua teoria, desta vez ilustrando a ascensão gradual de um líder autoritário. O personagem Napoleão manipula, pouco a pouco, os demais animais da fazenda até que eles passem a aceitar sua posição como líder inquestionável — assim como todas as suas decisões.
Sob a liderança do velho porco Major, os animais da Fazenda Manor se revoltam contra a opressão dos humanos e estabelecem uma série de “mandamentos” a serem seguidos. Com o tempo, Napoleão começa a alterar esses mandamentos — que permanecem expostos para que todos possam ler. Por exemplo, onde antes se lia “Todos os animais são iguais”, passa a constar: “Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que outros”.

Orwell utiliza as características dos animais como uma forma de construir uma alegoria sobre a corrupção de ideais e a ascensão de governos autoritários ao longo do século XX. As ovelhas, por exemplo, representam as massas: são facilmente convencidas a repetir, sem questionar, as máximas impostas por Napoleão — e, com isso, ajudam a persuadir os demais animais.
Essa manipulação da linguagem e da memória ocorre nos corredores da Lumon, onde os empregados que passaram pelo processo de ruptura não possuem uma visão de mundo que vá além daqueles limites. Os Eagan utilizam o imaginário, as imagens e a propaganda para convencer seus funcionários a trabalharem sem questionar a dinâmica estabelecida pela empresa. Além disso, eles precisam acreditar que o trabalho que realizam é “misterioso e importante”.
O poder das imagens
A manipulação das massas por meio da propaganda e do simbolismo está profundamente integrada à sociedade moderna. Por exemplo, até o Renascimento, o simbolismo religioso adotado pela Igreja Católica estabelecia que o lugar do Homem era inferior ao de Deus, representado pela própria Igreja. Já durante o período do nazismo na Europa, a propaganda foi usada como uma poderosa ferramenta para manipular a população considerada cidadã e obter seu apoio.
O “controle da opinião pública” era uma preocupação central para Hitler, que implementou leis incentivando a incorporação dos meios de comunicação pelo aparato público. Durante a Guerra Fria, tanto a União Soviética quanto os Estados Unidos adotaram táticas semelhantes. Essa estratégia, porém, não ficou restrita ao século XX e segue até hoje, utilizando as mesmas ferramentas.
Por isso, os meios de comunicação e a arte são campos altamente disputados pelos grupos que detêm o poder na sociedade. No Brasil, por exemplo, surge a “Brasil Paralelo”, que tem como objetivo distribuir produções audiovisuais que reconstroem a história do país de maneira a favorecer seus interesses, manipulando tanto os fatos quanto o público que os consome.
O que Severance nos mostra?
Em Severance, vemos o mesmo modus operandi. Como recompensa pela sua promoção, Milchick recebe uma série de pinturas que retratam uma versão de Kier Eagan como um homem negro, muito parecido com ele próprio.
Nesse momento, uma tensão crescente toma conta de Milchick, que precisa ignorar todo o contexto por trás desse gesto da Lumon. Essa cena simboliza o controle da empresa sobre ele, lembrando que, mesmo após a promoção, ele continua sendo um subalterno.

A Lumon e os Eagan utilizam a arte como uma ferramenta constante de controle, definindo para os funcionários o lugar que cada um ocupa dentro da empresa. Curiosamente, foi também a linguagem que deu início ao processo de libertação de Mark e do setor de Refinamento de Macrodados. Isso acontece quando Mark S. (Adam Scott) lê o livro de Ricken, quando Dylan (Zack Cherry) rouba um cartão do OD, e quando Irving encontra uma versão diferente do quadro que já conhecia.
Severance, além da trama e das teorias que envolvem suas personagens, nos indica um caminho possível para resistir a essa manipulação: o contato com a arte em sua forma mais diversa e livre. Assim como os funcionários do setor de Refinamento de Macrodados, também podemos encontrar na arte um meio para nos rebelarmos.
Referências: