As obras da Irmandade Pré-Rafaelita, fundada em 1848 por artistas britânicos como Dante Gabriel Rossetti, John Everett Millais e William Holman Hunt, são conhecidas por sua estética marcante e pela exploração de temas que evocam mistério e simbolismo.
O movimento rejeitava as convenções acadêmicas da época, buscando inspiração em um período anterior à arte renascentista. Esse retorno ao misticismo medieval, combinado com uma atenção meticulosa aos detalhes, permitiu aos pré-rafaelitas criar obras repletas de beleza etérea e elementos enigmáticos.
Neste artigo, exploraremos como os artistas pré-rafaelitas incorporaram elementos místicos em suas obras, utilizando o simbolismo e a mitologia, e como as mulheres frequentemente surgem como figuras intangíveis e misteriosas, personificações de beleza e pureza espiritual.
Elementos místicos nas obras pré-Rafaelitas
O misticismo, frequentemente associado ao espiritual e ao desconhecido, está presente de maneira marcante nas obras pré-rafaelitas. As pinturas desse movimento destacam figuras femininas envoltas em atmosferas misteriosas, com cenários que parecem pertencer a outro mundo, distante da realidade mundana.
A obra Ophelia (1851-1852), de John Everett Millais, é um exemplo icônico dessa estética. Retratando a personagem de Shakespeare em um estado de contemplação antes da sua morte trágica, Millais utiliza símbolos como flores flutuantes e a água tranquila para criar uma atmosfera de paz, mas com um toque de mistério e presságio.
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Outro exemplo é The Lady of Shalott (1988), de John William Waterhouse, inspirado no poema de Alfred Tennyson. A personagem principal está aprisionada em uma torre, condenada a tecer sem jamaisolhar diretamente para o mundo. A maldição que a aprisiona e sua eventual fuga retratam o conflito entre o místico e o real, um tema que permeia muitas obras pré-rafaelitas.
O papel do simbolismo e da mitologia
O uso do simbolismo e da mitologia nas obras da Irmandade Pré-Rafaelita é um dos principais elementos que reforçam o misticismo e a aura de mistério presentes em suas pinturas. Cada detalhe nas obras carrega um significado oculto, muitas vezes ligado a temas espirituais, bíblicos ou mitológicos. Esses símbolos são usados para evocar não apenas a beleza visual, mas também uma profundidade intelectual e emocional.
Para exemplificar, a obra Beata Beatrix (1872), de Dante Gabriel Rossetti, foi criada como um tributo à sua esposa, Elizabeth Siddal, que faleceu tragicamente. A pintura está repleta de simbolismos que remetem à transição da vida para a morte, ao amor espiritual e à redenção. A figura de Beatriz, envolta em uma luz mística, parece estar em um estado de êxtase espiritual, entre a vida e a morte, reforçando o caráter transcendente da obra.
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Os artistas frequentemente buscavam inspiração em mitos e lendas para criar suas composições. A mitologia grega e o ciclo arturiano, por exemplo, são fontes recorrentes. The Beguiling of Merlin (1874), de Edward Burne-Jones, retrata a feiticeira Viviane enfeitiçando Merlin. A interação entre essas duas figuras mitológicas encapsula o misticismo do amor e do poder sobrenatural, temas centrais na iconografia pré-rafaelita.
Mulheres como figuras divinas e misteriosas
Um dos aspectos marcantes das obras pré-rafaelitas é a representação da mulher como uma figura divina, misteriosa e, muitas vezes, inalcançável. As mulheres nas pinturas desse movimento são frequentemente retratadas com longos cabelos, expressões sonhadoras e vestes fluidas, sugerindo sua conexão com o espiritual e o místico.
Essa representação não era puramente estética, mas tinha uma base cultural e simbólica. As mulheres eram vistas como mediadoras entre o mundo terreno e o espiritual, canalizando o mistério da vida e da morte. Isso pode ser observado em Proserpine (1874), de Dante Gabriel Rossetti, onde a deusa da mitologia romana segura uma romã, símbolo de sua ligação com o submundo. A expressão melancólica de Proserpine e o ambiente sombrio em que ela se encontra evocam a ideia de uma beleza trágica e mística.
A mulher também surge como símbolo de pureza espiritual e sacrifício em várias obras. The Lady of Shalott, já mencionada, é um exemplo claro de uma figura feminina que sofre em silêncio, aprisionada por uma maldição que reflete as limitações impostas às mulheres pela sociedade da época. Essa dualidade entre a beleza estonteante e o sofrimento interno é uma característica marcante das personagens femininas pré-rafaelitas.
Influências femininas nas obras da Irmandade Pré-Rafaelita
Mesmo com os homens dominando amplamente o movimento da Irmandade Pré-Rafaelita, muitas mulheres assumiram papéis importantes como modelos, musas e artistas. Elizabeth Siddal, por exemplo, não foi apenas esposa de Dante Gabriel Rossetti, mas também uma talentosa pintora e poetisa por mérito próprio. Sua influência nas obras de Rossetti vai além de sua imagem física, inspirando temáticas como morte, ressurreição e amor eterno.
Além de Elizabeth Siddal, escritoras contemporâneas como a brasileira Lygia Fagundes Telles e a chilena Isabel Allende também dialogam com questões de representação feminina, pureza e mistério, que eram centrais nas obras dos pré-rafaelitas. Embora sejam de tempos distintos, ambas contribuem para a reflexão sobre o papel e a imagem da mulher na sociedade.
Em Ciranda de Pedra, Telles explora a luta interna de uma jovem que busca se libertar das expectativas sociais impostas às mulheres, criticando o confinamento feminino a padrões de beleza e pureza inalcançáveis – uma crítica que também reflete as representações pré-rafaelitas.
Já Isabel Allende, em Paula, desconstrói estereótipos femininos ao apresentar a força e a complexidade das mulheres em diferentes contextos. Ao citar essas autoras, é possível estabelecer um paralelo entre a literatura contemporânea e as preocupações femininas já presentes nas pinturas do movimento pré-rafaelita, criando uma ponte de continuidade sobre a representação da mulher na arte e na sociedade.
A dualidade entre idealização e realidade
A estética pré-rafaelita, ao idealizar a figura feminina, reflete tanto o fascínio pela beleza celestial quanto a limitação da visão da mulher a papéis específicos. Embora as pinturas retratem mulheres belíssimas, elas frequentemente carecem de agência própria, servindo mais como veículos para explorar o misticismo e o simbolismo do que como protagonistas de suas próprias narrativas.
Essa dualidade entre idealização e realidade é um tema que permeia tanto a arte quanto a literatura. Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, criticou a construção cultural que define a mulher como o “Outro”, subordinada e passiva. O confinamento da mulher à beleza e à pureza impede o reconhecimento de sua complexidade e força interna.
Essa divisão torna-se evidente nas obras pré-rafaelitas, que, ao exaltar a beleza feminina, também confinam suas personagens em narrativas de sacrifício e dor. Artistas e escritores continuam explorando o paradoxo entre a pureza idealizada e a realidade da vida das mulheres até os dias de hoje.
A relevância contemporânea da representação feminina na arte
A estética do misticismo nas obras pré-rafaelitas reflete uma busca profunda por beleza, mistério e transcendência. O uso do simbolismo, da mitologia e a representação das mulheres como figuras etéreas criam um universo visual de grande riqueza espiritual e emocional. Essas imagens, além de encantarem o público, também suscitam discussões importantes. É essencial considerar o impacto que elas podem ter na percepção e no diálogo sobre temas relevantes.
Ao longo dos séculos, as discussões sobre a dualidade entre idealização e realidade nas representações femininas continuaram a evoluir, influenciando movimentos artísticos e literários em todo o mundo. O impacto dos pré-rafaelitas transcende a estética, fomentando debates significativos sobre o papel da mulher na arte e na sociedade.
Referências:
- Marsh, Jan. The Pre-Raphaelite Circle. National Portrait Gallery Publications, 2005.
- Barringer, Tim. Reading the Pre-Raphaelites. Yale University Press, 1999.
- Prettejohn, Elizabeth. The Art of the Pre-Raphaelites. Tate Publishing, 2000.
- Marsh, Jan. Pre-Raphaelite Sisterhood. Quartet Books, 1985.
- Casteras, Susan P. Images of Victorian Womanhood in English Art. Associated University Presses, 1987.
- Callen, Anthea. Women Artists of the Arts and Crafts Movement, 1870-1914. Pantheon Books, 1979.