O filme Cisne Negro mergulha nas profundezas da mente de uma bailarina obcecada pela perfeição. A obra de Darren Aronofsky explora a tênue linha entre arte e loucura, retratando a jornada de Nina Sayers em sua busca pela excelência no papel duplo de Odette/Odile no ballet “O Lago dos Cisnes” de Tchaikovsky.
Ao explorar as relações tóxicas retratadas em Cisne Negro, como a transformação física e psicológica da protagonista, o uso de elementos simbólicos, como cores e espelhos, e ao discutir como o balé serve de metáfora para a vida, é possível realizar uma análise aprofundada dessa obra, que desafia os limites entre realidade e delírio.
A dualidade do Cisne Negro e Branco
No balé “O Lago dos Cisnes” de Tchaikovsky, os cisnes representam dualidades opostas. O Cisne Branco, Odette, simboliza pureza, fragilidade e inocência. Já o Cisne Negro, Odile, encarna sensualidade, agressividade e independência. Essa dualidade é central no filme, onde Nina Sayers (Natalie Portman) deve incorporar ambas as personalidades em sua performance.
Nina enfrenta o desafio de interpretar tanto o Cisne Branco quanto o Negro. Sua personalidade naturalmente se alinha com o Cisne Branco, mas ela luta para liberar seu lado sombrio e sensual necessário para o Cisne Negro. Essa dificuldade reflete os conflitos internos de Nina e sua luta para equilibrar diferentes aspectos de sua personalidade.
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A jornada de Nina para se tornar o Cisne Negro é uma transformação psicológica e física intensa. Ela passa por alucinações, paranoia e automutilação, simbolizando sua luta interna. A pressão para alcançar a perfeição e a competição com outras bailarinas intensificam sua transformação, levando-a a explorar aspectos desconhecidos de si mesma.
A psicologia por trás do Cisne Negro
A psicologia de Nina pode ser analisada sob a lente da teoria freudiana do id, ego e superego. Enquanto o id a impulsiona na busca obsessiva pela perfeição e pela aprovação, o ego tenta equilibrar essas demandas com a realidade imposta pelo ambiente competitivo do balé. O superego, representado pela mãe controladora, reforça padrões rígidos, aumentando a repressão de impulsos naturais.
Esse embate gera intensos conflitos internos em Nina, que culminam em alucinações e comportamentos autodestrutivos, à medida que a pressão para interpretar perfeitamente o Cisne Branco e o Cisne Negro cresce. A chegada de Lily (Mila Kunis), uma figura de liberdade e impulsividade, catalisa o despertar dos aspectos reprimidos da personalidade de Nina, especialmente no que se refere à sua sexualidade.
Esse processo de autodescoberta é marcado por momentos de autoexploração e sonhos confusos, simbolizando a jornada de Nina rumo à libertação dos limites impostos por sua criação. Sua transformação no Cisne Negro representa o ponto culminante dessa trajetória, onde ela finalmente abraça seus impulsos sombrios e sensuais, ainda que ao custo de sua saúde mental.
A cena em que Nina tenta se masturbar, interrompida pela presença imaginária da mãe, ilustra o conflito constante entre repressão e desejo, e como essa tensão alimenta sua busca pela perfeição artística.
Relações tóxicas e manipulação
Nina está envolvida em uma série de relações abusivas. Erica, sua mãe, é uma ex-bailarina que projeta suas frustrações na filha, mantendo-a infantilizada e criando uma relação simbiótica e emaranhada. Essa dinâmica tóxica contribui para a fragilidade psicológica de Nina, impedindo seu crescimento emocional e sua autonomia.
Thomas Leroy (Vincent Cassel), o diretor artístico, manipula Nina psicologicamente. Ele a pressiona a explorar sua sensualidade, chegando a sugerir que ela se masturbe. Suas táticas abusivas intensificam a busca obsessiva de Nina pela perfeição como o Cisne Negro.
Lily representa tudo o que Nina sente faltar em si mesma. Essa rivalidade exacerba o estresse e a insegurança de Nina, fazendo-a questionar sua própria identidade e capacidade. A competição entre as duas bailarinas se transforma em uma amizade distorcida, contribuindo para o declínio mental de Nina.
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A jornada de autodestruição de Nina
Nina enfrenta uma batalha interna que se manifesta em distúrbios alimentares. A pressão para manter um corpo ideal no mundo do balé leva muitos bailarinos a desenvolverem hábitos alimentares irregulares.
Nina apresenta sinais de anorexia nervosa, caracterizada pela restrição alimentar autoimposta e o medo intenso de ganhar peso. Essa obsessão com a forma física reflete sua busca pela perfeição artística, mas tem um custo alto para sua saúde mental e física.
A automutilação se torna uma válvula de escape para que Nina lide com o estresse emocional. Ela recorre a comportamentos autolesivos como forma de transferir a dor interna para uma dor física. Esses atos são uma tentativa disfuncional de aliviar o sofrimento psíquico e podem ser vistos como um grito de socorro.
A autolesão de Nina reflete a intensidade das pressões que ela enfrenta no competitivo mundo do balé e sua incapacidade de lidar com os conflitos emocionais de maneira saudável.
À medida que a estreia de O Lago dos Cisnes se aproxima, a paranoia de Nina aumenta. Ela começa a ter alucinações e a perder o senso de realidade. Sua percepção distorcida do ambiente ao seu redor é um sintoma claro de sua deterioração mental.
Essa paranoia se manifesta em sua desconfiança em relação a Lily, sua rival, e em visões perturbadoras de um doppelgänger. A crescente instabilidade mental de Nina ilustra o preço psicológico da busca obsessiva pela perfeição artística no balé.
A transformação física e psicológica em Cisne Negro
A transformação de Nina envolve mudanças físicas intensas. Natalie Portman, ao interpretar Nina, perdeu nove quilos para o papel, submetendo-se a treinos diários de cinco horas, que incluíam natação, musculação e balé.
Essas alterações corporais refletem a busca obsessiva pela perfeição no mundo do balé, onde o físico magro e longilíneo é privilegiado. As mudanças físicas de Nina são acompanhadas por lesões, como uma costela deslocada, simbolizando o sacrifício corporal exigido pela arte.
A jornada de Nina culmina em uma fusão completa com o personagem do Cisne Negro. Suas alucinações intensificam-se, incluindo visões de transformações físicas, como o crescimento de penas. A linha entre Nina e o personagem se dissolve, resultando em uma performance perfeita, mas à custa de sua sanidade.
Essa fusão representa o ápice da busca pela perfeição artística no balé, onde o artista se perde completamente em seu papel, sacrificando sua identidade pessoal pela arte.
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A simbologia das cores no filme
O branco da inocência
No filme Cisne Negro, o branco simboliza a pureza e a inocência de Nina. Esta cor representa o Cisne Branco, Odette, refletindo a fragilidade e o lado virginal da protagonista.
O branco também está associado à perfeição que Nina busca em sua performance no ballet Lago dos Cisnes. A predominância dessa cor no início do filme ressalta a personalidade inicial de Nina, uma bailarina dedicada e controlada, ainda não tocada pelos aspectos mais sombrios de sua transformação.
O negro da sedução
O preto em Cisne Negro simboliza o lado obscuro e sedutor que Nina precisa incorporar para interpretar Odile. Esta cor representa a transformação psicológica da bailarina, sua jornada para liberar impulsos reprimidos e explorar sua sensualidade.
A cor também está associada ao mistério e às coisas proibidas, refletindo a luta interna de Nina para abraçar aspectos desconhecidos de sua personalidade. A presença crescente do preto ao longo do filme marca a evolução da personagem e sua descida à loucura.
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O vermelho da paixão e loucura
O vermelho em Cisne Negro representa a paixão, o erotismo e a intensidade emocional que Nina experimenta durante sua transformação. Esta cor simboliza tanto o amor quanto o ódio, refletindo os extremos emocionais que a bailarina enfrenta.
A cor também remete ao sangue, representando a violência física e psicológica que Nina inflige a si mesma em sua busca pela perfeição no balé. A presença do vermelho intensifica-se à medida que a sanidade de Nina se deteriora, culminando em sua performance final como o Cisne Negro.
O espelho como elemento narrativo
Em Cisne Negro, o espelho é um elemento crucial que reflete a realidade distorcida de Nina. Presente em quase todas as cenas, ele simboliza a fragmentação da identidade da bailarina.
A câmera frequentemente captura as imagens refletidas, evidenciando o conflito interno da protagonista. O espelho serve como uma metáfora visual para a luta de Nina entre o Cisne Branco e o Cisne Negro, representando sua busca pela perfeição no balé e sua descida à loucura.
O espelho força Nina a confrontar seu eu interior, revelando suas inseguranças e desejos reprimidos. Diante dele, a bailarina experimenta alucinações e visões perturbadoras, que refletem sua crescente instabilidade mental. Esse confronto constante com sua imagem refletida intensifica a pressão psicológica que Nina enfrenta, contribuindo para sua transformação ao longo do filme.
O espelho, portanto, se torna um portal para o subconsciente da personagem, expondo seus medos mais profundos e sua obsessão pela performance perfeita em Lago dos Cisnes.
À medida que Nina mergulha mais fundo em sua psicose, o espelho começa a rachar, simbolizando a fragmentação de sua identidade. Essa desintegração visual reflete a luta interna da bailarina para equilibrar as exigências do papel de Odette/Odile com sua própria sanidade.
Por fim, o espelho quebrado torna-se uma metáfora poderosa para o colapso mental de Nina, ilustrando como a pressão do mundo do balé e sua busca obsessiva pela perfeição artística a levam à beira da loucura. A imagem distorcida no espelho fragmentado representa a perda de controle de Nina sobre sua própria realidade.
A música como personagem em Cisne Negro
A trilha sonora de Cisne Negro é permeada por variações das faixas do balé O Lago dos Cisnes, de Tchaikovsky. Essa escolha musical reflete a jornada de Nina em sua busca pela perfeição artística.
A música de Tchaikovsky serve como um personagem adicional, influenciando as emoções e ações de Nina. O compositor Clint Mansell adaptou as composições clássicas, criando uma atmosfera que intensifica a tensão psicológica do filme.
No longa, a música acompanha o aumento gradual da pressão sobre Nina. O ritmo e a intensidade das composições crescem à medida que a bailarina mergulha mais fundo em sua obsessão pela performance perfeita. Essa progressão musical reflete a deterioração mental de Nina, com a harmonia dando lugar ao caos.
As melodias suaves e harmoniosas do Cisne Branco contrastam com as composições mais intensas e caóticas associadas ao Cisne Negro. Essa justaposição reforça a transformação psicológica da bailarina, ilustrando sua jornada da inocência à sensualidade e, eventualmente, à loucura.
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Conclusão
Cisne Negro oferece uma visão profunda e perturbadora do mundo do balé. A jornada de Nina serve como um espelho para os desafios enfrentados por artistas, destacando o custo emocional e psicológico da excelência. O filme ilustra como a pressão externa e interna pode levar a uma perigosa obsessão, borrando as linhas entre realidade e fantasia.
Cisne Negro não apenas conta uma história, mas também nos convida a pensar sobre os limites da dedicação artística e o equilíbrio necessário entre paixão e saúde mental.