O feminino existencialista na Trilogia das Cores de Kieślowski

O feminino existencialista na Trilogia das Cores de Kieślowski

A Trilogia das Cores de Krzysztof Kieślowski, um dos grandes nomes da história do cinema, correlaciona o lema da Revolução Francesa — Liberté, Egalité, Fraternité — às cores da bandeira do país: azul, branco e vermelho.

Explorando a liberdade, a igualdade e a fraternidade, cada filme traz uma reflexão sobre o psicológico e o emocional, o pessoal e o interpessoal, e a relação humana consigo mesmo e com os outros — demonstrando como nossa percepção de nós mesmos pode influenciar nossa postura em relação ao próximo.

O primeiro filme, protagonizado pela talentosa Juliette Binoche, aborda a temática da liberdade em meio ao processo de luto. Julie (Binoche) enfrenta a trágica perda do marido, um renomado compositor francês, e da filha de apenas cinco anos em um acidente de carro. Após uma tentativa de suicídio mal-sucedida, ela decide vender todos os bens da família, dos quais agora é a única proprietária, e mudar-se para um lugar onde ninguém a conheça.

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No segundo filme, que aborda a temática da igualdade, a personagem coadjuvante Dominique, interpretada por Julie Delpy, não apenas pede o divórcio de forma humilhante ao seu ex-marido Karol Karol (Zbigniew Zamachowski), que sofre de impotência sexual. Incapaz de salvar seu casamento, Karol elabora um plano para fazer com que Dominique se sinta tão vulnerável quanto ele, permitindo que ela compreenda como é estar em seu lugar.

Já no terceiro e último filme, a adorável protagonista Valentine, vivida por Irène Jacob, acidentalmente atropela uma cadela pastor alemão e acaba desenvolvendo uma improvável amizade com o dono do animal, um recluso juiz aposentado cujo principal passatempo é grampear e ouvir conversas telefônicas dos vizinhos.

As personagens Julie, Dominique e Valentine na Trilogia das Cores, de Krzysztof Kieślowski.
As personagens Julie, Dominique e Valentine. (Imagem: reprodução)

Nos filmes de Kieślowski, ele desenvolve suas personagens no âmago das questões existencialistas de sua trilogia, inspirando reflexões sobre questões comuns a todos nós, em nossa existência individual e interpessoal.

Em A Liberdade é Azul (Trois couleurs: Bleu, 1993), a liberdade é retratada como a ausência de vínculos afetivos. Julie já não é mãe nem esposa, pois perdeu sua família em uma tragédia. Embora essa falta de papéis tipicamente femininos na sociedade não seja uma escolha pessoal, ninguém ousaria julgá-la diante de sua dor e sofrimento. Ela poderia agarrar-se às memórias, à saudade e ao sofrimento nostálgico, mas a liberdade é imposta a ela, e Julie opta por exercê-la.

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Juliette Binoche como Julie em “A Liberdade é Azul” (1993), primeiro filme da Trilogia das Cores, de Krzysztof Kieślowski.
Juliette Binoche como Julie em “A Liberdade é Azul” (1993). (Imagem: reprodução)

Contudo, surge a questão: qual o preço dessa liberdade? Julie declara: “Não quero bens, presentes, amigos, amor e vínculos. Tudo isso são armadilhas“, enquanto a angústia e a solidão tornam-se cada vez mais insuportáveis. O também compositor Olivier, que trabalhava com seu falecido marido, é um consolo temporário para ela. Ele a ama, mas Julie o usa para escapar de seu martírio. Entregar-se a essa relação implica uma ameaça à sua liberdade.

A Igualdade é Branca (Trois couleurs: Blanc, 1994) talvez seja o mais controverso dos filmes da trilogia. Após o divórcio com Dominique, Karol, que antes era cabeleireiro, retorna a Varsóvia, sua cidade natal, e utiliza métodos pouco convencionais para se consolidar como empresário e acumular fortuna.

A noção de igualdade, no entanto, se confunde com vingança. Karol forja a própria morte e deixa em testamento todos os bens para sua ex-esposa, o que a leva até Varsóvia. Na cidade, eles se encontram em um hotel e passam a noite juntos. Na manhã seguinte, Dominique acorda sozinha no quarto, e logo depois a polícia chega. Ela é presa sob suspeita de ter assassinado Karol para obter sua herança, devido a circunstâncias suspeitas.

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A personagem Dominique (Julie Delpy) em cena de “A Igualdade é Branca” (1994), de Krzysztof Kieślowski.
A personagem Dominique (Julie Delpy) em cena de “A Igualdade é Branca” (1994).

É evidente, na cena do hotel e na cena final do filme, quando eles se olham através da janela da cela de Dominique, que ainda existe amor entre eles. No entanto, Dominique, que outrora humilhara Karol e tirara-lhe todas as chances de tentar salvar seu casamento, agora se vê tão impotente quanto ele. Ela não o tem, não tem seu dinheiro e sequer tem sua liberdade.

Não sabemos se a intenção de Kieślowski era questionar os métodos pelos quais a igualdade é alcançada – ou a própria noção de igualdade – mas essa é uma possibilidade. No primeiro ato do filme, na cena do tribunal, Karol questiona: “onde está a igualdade?“, pois o fato de não ser fluente em francês e depender de um intérprete parece resultar em tratamento desigual por parte da corte, prejudicando-o durante a audiência de divórcio.

Karol Karol (Zbigniew Zamachowski) em "A Igualdade é Branca” (1994), segundo filme da Trilogia das Cores, de Krzysztof Kieślowski.
Karol Karol (Zbigniew Zamachowski) emociona-se ao observar Dominique pela janela da prisão, em cena final de “A Igualdade é Branca” (1994).

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A Igualdade é Branca é o único da Trilogia das Cores não protagonizado por uma mulher. Ele se diferencia dos outros também pelo tom quase cômico presente em algumas cenas e pelas referências visuais mais sutis à cor que leva em seu título. O branco, que é a junção de todas as cores e adequado ao conceito de igualdade, é mais notável nas cenas em flashback do casamento, mas não é tão proeminente na fotografia ou em elementos cênicos como nos outros filmes. A cor está presente, sem dúvida, mas talvez seu impacto seja menor por se tratar de uma cor neutra.

Em A Liberdade é Azul, por outro lado, a cor azul simboliza o luto e a aflitiva trajetória de Julie, estando presente em todo o filme. O azul, uma cor fria, embora comumente associado à quietude, serenidade e harmonia, também está associado à tristeza e melancolia, e é nessa acepção que se desenvolve no primeiro filme da trilogia.

A cor azul é notável na fotografia e cenografia de “A Liberdade é Azul” (1993).
A cor azul é notável na fotografia e cenografia de A Liberdade é Azul (1993)

– “Pergunto-me o que faria no lugar deles… A mesma coisa.” 

– “Você atiraria pedras?” 

– “Se estivesse no lugar deles? Claro. E o mesmo princípio se aplica a todas as pessoas que julguei. Se tivesse as vidas deles, e nas condições deles, também roubaria, mataria, mentiria, com certeza.” 

(Diálogo entre o juiz e Valentine em A Fraternidade é Vermelha)

O filme A Fraternidade é Vermelha (Trois couleurs: Rouge, 1994), o último da trilogia, aborda a temática de colocar-se no lugar do outro e dialoga com as obras anteriores. A intensa cor vermelha traz consigo uma valiosa lição sobre empatia. A relação entre Valentine e o ex-juiz, interpretado por Jean-Louis Trintignant, exemplifica o poder transformador de uma conexão fraternal, algo que Julie se fechou em A Liberdade é Azul.

No início do filme, o juiz é retratado como um homem solitário e amargo, aparentemente indiferente à sua única companhia, uma cadela chamada Rita. Insensivelmente, ele diz a Valentine que ela pode levar Rita consigo e fazer o que quiser com o animal após um atropelamento. Entretanto, ao longo da história, uma mudança significativa em sua postura é evidente. Ele se mostra mais afetuoso, não só em relação a Valentine, mas também aos animais de estimação de Rita, que acabou tendo filhotes.

Em A Igualdade é Branca, Karol deseja que Dominique compreenda a sua impotência ao igualar-se a ele em seu nível de sofrimento, para que ela possa entender como é estar em seu lugar. Por outro lado, A Fraternidade é Vermelha nos mostra que é mais valioso encontrar alguém com quem compartilhar nossas tormentas, em vez de simplesmente saber que há pessoas que também sofrem como nós. Valentine é uma personagem solitária, vinda de uma família instável e com um namorado ausente. Sua relação com o juiz é benéfica para ambos.

Valentine (Irène Jacob) e o juiz conversam em “A Fraternidade é Vermelha” (1994), terceiro filme da segundo filme da Trilogia das Cores, de Krzysztof Kieślowski.
Valentine (Irène Jacob) e o juiz conversam em A Fraternidade é Vermelha (1994)

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Há um elemento comum aos três filmes: a senhora que tenta depositar a garrafa de vidro no coletor de recicláveis. Em A Liberdade é Azul, ela tem dificuldade, deixando a garrafa na boca do coletor, sem conseguir empurrá-la para dentro. A protagonista, Julie, alheia ao que acontece à sua volta, permanece de olhos fechados, sentindo a suave luz do sol sobre seu rosto.

Em cena de “A Liberdade é Azul”, de Krzysztof Kieślowski.
Em cena de “A Liberdade é Azul”, Julie não nota a senhora que tenta colocar a garrafa no coletor de recicláveis.

Quando a cena acontece em A Igualdade é Branca, mais uma vez a senhora deixa a garrafa na boca do coletor. Karol observa a curta distância e chega a rir da situação. Ao final de A Fraternidade é Vermelha, porém, Valentine a ajuda a empurrar a garrafa para dentro. 

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A senhora que tenta colocar a garrafa no coletor de recicláveis em “A Igualdade é Branca”.
Karol observa a curta distância, mas não oferece ajuda em A Igualdade é Branca

A dinâmica das cenas e a atitude de cada personagem em relação à senhora estão intrinsecamente ligadas às temáticas de cada filme: Julie estava tão imersa em sua liberdade que as pessoas à sua volta passavam despercebidas. Karol teria apenas observado e se divertido com a situação porque isso talvez lhe trouxesse um breve alívio, simplesmente por não ser o único passando por momentos de dificuldade – já que a cena acontece imediatamente após a audiência de divórcio e a descoberta de que ele não teria mais acesso à sua conta bancária.

Valentine, porém, a representação da fraternidade, não apenas nota a senhora, como decide ajudá-la. Não por acaso, a cena acontece no final do filme, quando sua relação com o juiz já está consolidada, e toda a troca entre eles já trouxe tamanho aprendizado e firmou seu impacto sobre ambos.

Valentine ajuda a senhora em “A Fraternidade é Vermelha”, último filme da Trilogia das Cores.
Valentine ajuda a senhora em A Fraternidade é Vermelha

Além das temáticas próprias a cada filme, a estrutura familiar é uma questão sutilmente explorada — e questionada — em toda a trilogia. Descobre-se em A Liberdade é Azul que o marido de Julie tinha uma amante de longa data. Em A Igualdade é Branca, o próprio casamento fadado ao fracasso. E em A Fraternidade é Vermelha, Valentine é fruto de uma família desestruturada, marcada por vícios e ausências.

Seja na aflição de Julie, na frustração de Karol e Dominique ou no companheirismo entre Valentine e o juiz, é difícil não se identificar com alguma personagem ou refletir sobre nossa própria existência e nossas relações com aqueles à nossa volta. Isso nos leva a ponderar sobre a necessidade de vínculos afetivos, tão própria da condição humana, com seus muitos riscos, tragédias e, ao mesmo tempo, sua glória.

Edição e revisão por Isabelle Simões.

Escrito por:

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Laysa Leal é bacharel em Cinema e Audiovisual com foco em roteiro, direção de arte e crítica especializada. Apaixonada por artes visuais, tem formação profissionalizante em fotografia e atua também como fotógrafa. Não dispensa uma boa música e está sempre pelo circuito de shows e festivais, uma das poucas ocasiões em que prefere o frenesi à quietude de museus e galerias de arte ou ao conforto de salas de cinema.
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