Yuliya Solntseva, atriz e cineasta, foi a primeira mulher a receber o prêmio de direção no Festival de Cannes, por “Chronicle of Flaming Years” (Povest plamennykh let, 1961); e, por 56 anos, a única, até que Sofia Coppola foi premiada por O Estranho que Nós Amamos (The Beguiled), em 2017.
Nascida em Moscou, Rússia, em 7 de agosto de 1901, Solntseva foi esposa e colaboradora de Aleksandr Dovzhenko, nome de peso do cinema soviético, equiparado aos seus contemporâneos Sergei Eisenstein, Dziga Vertov e Vsevolod Pudovkin. Os newsreels produzidos pelo casal tinham caráter revolucionário, ao mesmo tempo que mantinham o aspecto artístico e poético tão característicos do trabalho de Dovzhenko.
O início da carreira de Yuliya Solntseva
Solntseva estreou como atriz em Aelita, a Rainha de Marte (direção de Yakov Protazanov, 1924), baseado no romance de Tolstoi, o primeiro filme soviético de ficção científica e uma das principais inspirações de Fritz Lang ao realizar Metrópolis (1927). Após atuar em Terra (Zemlya, 1930), de Dovzhenko — filme para o qual contribuiu também como assistente de direção —, encerrou sua carreira como atriz e trabalhou junto ao marido, novamente como assistente de direção, em Ivan (1932), dando sequência à colaboração entre ambos.
Variando entre ficção e não-ficção, o casal manteve-se próximo às regiões de combate durante a Segunda Guerra Mundial, período em que diversos artistas eram evacuados ou voluntariamente deixavam áreas de risco. Foi quando realizaram seus mais notáveis newsreels. A temática de guerra era muito recorrente nos trabalhos conjuntos dos cineastas.
Em Michurin (1949), um dos últimos filmes de Dovzhenko, Yuliya Solntseva estendeu sua colaboração à pós-produção, assumindo controle sobre o processo de edição e montagem do longa. Sua estreia como diretora se deu em Yegor Bulychov and Others (Yegor Bulychyov i drugiye, (1953), codirigido por Boris Zakhava e baseado em um romance de Maxim Gorky.
O cinema de Yuliya Solntseva
Foi somente após a morte repentina de Aleksandr Dovzhenko, em 1956, que a cineasta decidiu lançar-se definitivamente como diretora, objetivando dar sequência ao legado e projetos inacabados do marido. Dovzhenko faleceu na noite anterior ao início das filmagens de Poem of the Sea (Поэма о море, no original russo), projeto para o qual vinha se preparando por dois anos.
Solntseva, então, assumiu a direção, usando o roteiro, anotações e esboços do falecido marido e lançando o filme dois anos mais tarde, em 1958. O longa aborda a construção da barragem de Kakhovka, para o desenvolvimento de uma usina hidrelétrica local, e seu consequente impacto sobre as vidas daqueles que viviam na região e foram expropriados de áreas que seriam inundadas.
A estética do filme e a falta de clareza narrativa remetem bastante ao trabalho de Dovzhenko, como pretendido por Solntseva. Nem por isso, entretanto, suas próprias particularidades como diretora fazem-se ausentes. Elas são evidentes especialmente na performance dos atores: enquanto Dovzhenko orientava a execução de gestos melodramáticos, muitas vezes de caráter simbólico, Solntseva opta pela abordagem de emoções mais plausíveis.
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Poem of the Sea foi o primeiro filme daquela que ficou conhecida como a Trilogia Ucraniana de Solntseva, cujos três filmes foram inspirados em roteiros de Dovzhenko. Exibido em diversos festivais internacionais, chamou a atenção da equipe da Cahiers du Cinéma, uma das mais importantes revistas de cinema do mundo. Em 1961, os cineastas Jean-Luc Godard e Jacques Rivette chegaram a incluí-lo em seus top 10 filmes do ano.
O já mencionado Chronicle of Flaming Years (“A Epopéia dos Anos de Fogo”, no Brasil), premiado em Cannes, foi lançado três anos mais tarde. É um filme de guerra, mais especificamente sobre seus efeitos sobre o povo ucraniano, contado através da trajetória do soldado Ivan Orlyuk, que várias vezes chega à beira da morte, intercalada com núcleos de personagens menores que também sofrem as devastadoras perdas da guerra — seja tal perda material, um ente querido ou a própria sanidade.
As cenas de combate são espetaculares, destacando-se por dinâmicos movimentos de câmera e experimentações com som e narração. Apesar do estilo poético herdado do marido e dos simbólicos interlúdios sobre o país e seus rios, a sensação é de que não há escape, não há refúgio. Não há qualquer lugar que ainda não tenha sido corrompido pela guerra.
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O último filme da trilogia, The Enchanted Desna (Zacharovannaya desna, 1964), demonstra um profundo apreço pela paisagem ucraniana, com suas colinas suaves, as águas plácidas de seus rios e seus campos floridos. O filme retrata memórias de infância, em uma vila próxima ao rio Desna, de um soldado da frente de combate.
The Enchanted Desna é tido como um filme autobiográfico, não somente por remeter à infância de Aleksandr Dovzhenko, mas também porque o cineasta testemunhara diversas cenas de combate durante a Guerra Civil Russa e a Segunda Guerra Mundial. Proclamado por Godard como o melhor filme daquele ano, o longa é um constante contraste entre as cenas de batalha e a serenidade da natureza.
Apesar da inquestionável competência de Yuliya Solntseva como diretora, a cineasta subestimava a si própria, dizendo estar — em suas próprias palavras — “simplesmente traduzindo, ilustrando e continuando” o trabalho do marido, afirmando mesmo que jamais teria se tornado diretora, não fosse a morte de Dovzhenko.
As experimentações narrativas e sonoras de Solntseva, porém — especialmente pelo uso da voz over e do som metadiegético —, são algo particular da diretora, não uma reprodução de técnicas já usadas pelo marido, assim como o uso da técnica de projeção traseira.
The Unforgettable (Nezabyvayemoye, 1967) é o último filme de Solntseva baseado em escritos deixados por Dovzhenko. Mas neste ela também assina o roteiro, tornando-se coautora. Retomando a costumeira temática de guerra que tanto explorou com o marido, o filme distingue-se, porém, pelo protagonismo feminino.
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Na história, a jovem Olesia, residente de uma vila ucraniana, pede a um soldado do Exército Vermelho que passe a noite com ela, prevendo a chegada dos alemães e os consequentes ataques às mulheres da região. Com destino incerto, ela quer que sua primeira vez seja consensual e com alguém de seu próprio povo.
Deportada com Khrystia, sua prima, Olesia aguarda esperançosa pelo reencontro com o soldado. Khrystia, por sua vez, é uma guerrilheira de destino trágico, estuprada pelos alemães e acusada de traição por ter mantido relações sexuais com o inimigo. Não por isso ela perde sua força, mostrando-se uma guerrilheira destemida e denunciando a situação de mulheres em situação de guerra.
A própria premiação em Cannes salienta a relevância de Yuliya Solntseva por seu trabalho como cineasta. O festival não concedeu prêmio póstumo a Aleksandr Dovzhenko por seu roteiro, mas consagrou Solntseva como diretora. Infelizmente, mas não surpreendentemente, a história a manteve às sombras de seu marido. Seus filmes, entretanto, existirão sempre como prova de seu mérito.
FONTES:
- COSTA, Juliana. Yuliya Solntseva e seu companheiro inesquecível. Revista Cineclube Academia das Musas. Ano 2, edição 2, p. 19-21. Disponível em: <https://cineclubeacademiadasmusas.files.wordpress.com/2018/07/academia-das-musas-nc2ba-2-revisada-2.pdf>
- EBIRI, Bilge. Meet the Woman Who Made Some of the Greatest War Movies of All Time. The Village Voice. Ago. 2017. Disponível em: <https://www.villagevoice.com/2017/08/22/meet-the-woman-who-made-some-of-the-greatest-war-movies-of-all-time/>.
- TAFELSKI, Tanner. Yuliya Solntseva: revisiting the Soviet Union’s forgotten female auteur. The Calvert Journal. Ago. 2017. Disponível em: <https://www.calvertjournal.com/articles/show/8827/yuliya-solntseva-revisiting-soviet-union-forgotten-female-auteur>.
Edição e revisão por Isabelle Simões.