Chamas do Destino: “há algo de podre no reino da Dinamarca”

Chamas do Destino: “há algo de podre no reino da Dinamarca”

Final do século XIX, França. Um incêndio num bazar de caridade que rapidamente consome todo o local termina com uma centena de vítimas, mulheres da aristocracia em sua maioria. Assim começa a série francesa “Chamas do Destino“, disponibilizada pela Netflix no final de 2019 e baseada em fatos reais. A produção do canal TF1 se desenvolve a partir de três mulheres: Rose Rivière (Julie De Bona), que trabalha na casa da família Jeansin; Alice (Camille Lou), filha mais velha desta família; e Adrienne De Lenverpre (Audrey Fleurot), casada com um senador, um dos homens mais ricos da época e tia de Alice.

Rose é casada com Jean (Aurélien Wiik), que também trabalha para a família Jeansin. Juntos, eles pretendem cruzar o atlântico num navio para começar uma vida nova nos Estados Unidos (qualquer semelhança é mera coincidência). Alice é a mocinha típica das novelas de época, romântica, ingênua, doce e educada, que está noiva do jovem rico (e entediante) Julien de la Ferté (Théo Fnandezer). Adrienne é casada com Marc-Antoine De Lenverpre (Gilbert Melki) com quem tem uma filha (Camille – Rose de Kervenoaël). De antemão, se sabe duas coisas sobre ela: ela esconde segredos e vive um casamento abusivo.

A vida das três muda radicalmente após o incêndio. Nesse momento, tal como na famosa obra de Shakespeare, sente-se o alerta: “Há algo de podre no reino da Dinamarca” que transforma o destino de Hamlet, como transformará o delas.

As cenas do incêndio, a propósito, são horripilantes e o primeiro episódio é todo dedicado a ele. As que se seguem tem certas doses de tensão que só aumentam ao longo dos episódios – num total de oito, de aproximadamente 50 minutos.

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Imagem de divulgação da serie “Chamas do Destino”, pelo canal TF1 (reprodução)

Vencido o incêndio, como sobreviver ao patriarcado?

Se aumenta a tensão é porque aumentam também as dores dessas três mulheres e das demais retratadas pela produção. Mesmo as aristocratas cobertas de privilégios sofrem o machismo numa sociedade na qual os homens tudo decidem, ocupam todos os espaços públicos e sufocam o privado. Nem sobre seus próprios filhos elas tem gerência (quiçá sobre seus próprios corpos).

O casamento é uma dessas dores e a série quase “desenha” como ele era permeado pelas conhecidas violências psicológica e física. Ao mesmo tempo em que funciona como sentença de condenação à prisão, da qual as mulheres não poderiam sair, já que o divórcio não era uma opção, servia como instrumento de barganha, e até uma chance para viver uma nova vida.

Todas elas, de meninas e adolescentes a jovens ou experientes mulheres, todas entendem e expressam – mesmo que só com olhares – o quão importante é seguir as regras e o que é preciso para vencê-las: inteligência, ardil, dissimulação e alianças. Aliás, a pergunta que constantemente ressoa dos dramas de cada uma delas é: até onde irão para sobreviver e proteger os seus.

É exatamente essa questão que as aproxima de outra personagem de Hamlet, Ofélia, que num tom de lamento após sua tragédia familiar diz ao Rei: “Senhor, sabemos o que somos, porém não o que poderemos ser.

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Julie de Bona em “Chamas do Destino”. (Imagem: Revista Bula)

Os pecados e as virtudes

“Chamas do Destino” não consegue fugir dos clichês e os francófonos dizem sofrerem um pouco com a tradução. Também reproduz o atualmente tão combatido “padrão de beleza”, branco, magro, sem qualquer preocupação com a diversidade (mesmo considerando a sociedade da época). As tramas e resoluções lembram um pouco as novelas. Não é imperdível nem o caso de uma renovação para outra temporada.

Contudo, com certa dose de paciência, as telespectadoras encontram seus predicados e podem ver o nascimento do movimento anarquista na França e das reivindicações ao exercício das liberdades civis das mulheres – como o direito ao voto, ainda que a abordagem seja pontual e superficial. Há ainda uma certa luta de classes e disputa do poder com os burgueses, revelados em suas baixezas, o que é um traço marcante e comum aos pais e maridos da produção.

Intriga lembrar se tratar de uma história real e qual foi o papel que os homens tiveram na tragédia, já que a maioria das mortes foram de mulheres. Além disso, se famosos incêndios como o da Boate Kiss e do Edifício Joelma e, mais recentemente, o Centro de Treinamento do Flamengo e do Museu Histórico Nacional, permanecem vivos (e doloridos) na memória brasileira, é de se imaginar o que teria representado à época para os franceses e para cada família vitimada.

Então, se o arco das personagens nem sempre é tão convincente e factível, é interessante perceber o quanto elas se revelam corajosas na trama e estão cientes de que só poderão contar umas com as outras (ou terão poucos aliados) para lidar com as consequências do evento em suas vidas.

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Evidente, até pela distância de tempo, que tanto elas como seus dramas se distanciam muito de nós e dos nossos. Entretanto, não há como não torcer (até o último capítulo – como os leitores de Hamlet) que não tenham um final trágico (um feliz seria ingênuo demais). Mesmo tão diferentes, elas nos lembram o quanto a nossa condição na sociedade avançou, que avançamos juntas e que não nos cabe julgar as (poucas) escolhas daquelas que vieram antes de nós. 


Edição por Isabelle Simões e revisão por Mariana Teixeira.

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Nativa do Paraná, atualmente cultivada no Rio de Janeiro. Adubada por livros, séries, música brasileira e outras mulheres.
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