Ruptura (Severance) é quase uma história de terror. Quase uma distopia. Ou quase uma comédia. A série original da Apple TV+ traz uma proposta muito interessante, suficiente para atrair um público diverso. Seu desenrolar é excepcional, suficiente para ser considerada um dos maiores feitos televisivos da década.
Mark (Adam Scott) é um dos poucos funcionários da Lumon a realizar a famosa “ruptura”, uma cirurgia que divide as memórias do indivíduo em duas: as de sua vida e, após entrar no local de trabalho, apenas memórias desenvolvidas após a cirurgia e naquele lugar. Ou seja, quando o trabalhador entra no local de trabalho, ele se torna somente o trabalhador, sem qualquer lembrança da vida que leva fora dali.
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Acompanhamos esse personagem e seus escassos colegas de trabalho: Helly (Britt Lower), Irving (John Turturro) e Dylan (Zach Cherry). Mas, evidentemente, o que parece vantajoso a uma primeira vista, torna-se tenebroso quando pensado com atenção.
A desumanização dos trabalhadores em um mundo cada vez mais capitalista é apenas um dos constantes dilemas dessa trama. A série, criada por Dan Erickson e dirigida por Ben Stiller e Aoife Mcardle, traz um retrato delicado e cruel sobre as sociedades modernas, alertando-nos sobre o futuro.
“Severance” e o trabalho como fuga
Ainda no primeiro episódio há um evidente contraste entre as “duas vidas” de Mark. Na sua vida no trabalho, ele é dedicado e tranquilo. Pois sente que está fazendo algo importante na empresa; algo útil. Contudo, na sua vida real, fora da Lumon, Mark apresenta indícios de depressão. Ele é solitário e chora com frequência, constantemente pensando sobre a falecida esposa. Mas mesmo assim, ele sente que faz algo bom na empresa. Ou quer acreditar nisso.
Na verdade, os funcionários que passam pela ruptura não têm muitas pistas sobre o trabalho deles. Isso mesmo. A versão externa – como eles chamam seus “eus” com lembranças da vida pessoal – não sabe o que eles fazem na empresa. A versão interna, também não. Eles fazem algumas atividades sem saber o propósito. Mas para tornar o trabalho suportável, é mais fácil acreditar que há um propósito e teorizar sobre a possível relevância dele para o mundo.
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Evidentemente, viver uma vida sem as preocupações, dores e arrependimentos do trabalho pode ser o sonho da vida de alguns. E é o que os “externos” possuem. Mas, para Mark, sua dádiva é ter uma vida que seja apenas isso, apenas trabalho. O trabalho em ruptura é analisado sob diversos ângulos e o trabalho como fuga da realidade é um deles.
“Ruptura” e o trabalho como fuga
Isso nos leva a outras discussões. Por exemplo, o trabalho como uma “fuga” da realidade pode ser saudável? Ou é apenas um escape para sofrimentos e alegrias inerentes aos seres humanos? Afinal, a humanidade é completamente sintética na Lumon, cujos funcionários não são nada além de funcionários. No sentido mais literal possível. Ou pelo menos, é assim que eles gostariam que fosse.
Mas, conforme analisa-se essas questões através de Mark e os demais personagens, fica mais claro que isso não é possível. Então, o elemento de terror entra em cena: o trabalho não pode ser uma fuga e nenhuma pessoa consegue se livrar totalmente de seus desejos sobre sentir. Seja sentir prazer em uma atividade de lazer, ou a dor de perder um amigo. Não à toa, o suicídio e o luto são temas que atingem os “internos”, naquele ambiente que supostamente, era privado dos problemas sentimentais do mundo real.
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O ambiente da Lumon é aterrorizante, pois não poderia ser mais destoante da realidade. As relações entre os funcionários torna-se a única coisa verdadeira na vida dos “internos”, o que resulta, evidentemente, em uma união entre eles. A expressão “estamos todos no mesmo barco” sintetiza bem os sentimentos da pequena comunidade de trabalhadores da Lumon. Afinal, pouco a pouco, eles percebem que são prisioneiros de si mesmos e dessa empresa, a qual está muito longe de ser o ideal que aparenta.
Os impactos da ruptura no individual e social
Uma vida sem as preocupações do trabalho contra uma vida sem as preocupações da vida particular. Ambas podem parecer perfeitas. Mas em Severance alguns militantes se colocam contra a ruptura, alegando que os “internos” vivem em uma situação de escravidão. Eles são forçados a trabalhar e nada pode fazê-los ter acesso a uma vida fora da Lumon. Ou seja, trabalho é tudo o que existe.
Mas há aqueles que, trabalhando na Lumon, por qualquer motivo que seja, escolhem acreditar que aquela foi uma escolha totalmente livre. A versão externa de Mark em dado momento discute com um dos militantes que são contra a ruptura querendo mostrar que possui liberdade o suficiente.
No entanto, talvez os internos tenham no que discordar. Aqueles que não compartilham das mazelas da vida trabalhadora não conseguem plenamente se empatizar com ela.
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As belezas de “Ruptura”
A qualidade técnica da série é indiscutível. Com cenários e figurinos minimalistas, a melancolia é impulsionada. A trilha sonora também tem um efeito extraordinário. O processo de ruptura se torna um experimento, um mistério e algo que precisamos ver. E claro, as atuações são excelentes. Adam Scott está perfeito como Mark. Um protagonista que possui inúmeras facetas e nos faz gostar de cada uma.
Aos poucos, Britt Lower também se revela com a atriz perfeita para Helly. E além dos personagens que integram o núcleo principal, há ainda Christopher Walken, Dichen Lachman e Patricia Arquette, nomes de peso para um elenco já maravilhoso. Assim, a Severance foi indicada a diversas categorias do Emmy, que incluem não apenas as de atuação em séries de drama, como a principal (“melhor série de drama”).
Em suma, poucas críticas podem ser feitas contra a primeira temporada de Ruptura. O suspense une o melhor de muitos gêneros e deixa várias questões em aberto: desde o passado da Lumon até sobre a vida pessoal dos funcionários.
O ritmo lento favorece as múltiplas camadas do mundo criado, pois nos revela pouco a pouco que aquela atmosfera limpa e agradável não é o que parece. E a sensação que fica é que caminhamos ao lado dos personagens para um lugar cada vez mais sombrio. No entanto, eles não estão sozinhos.
Por mais distante que a ruptura pareça estar de nossa realidade, os dilemas que a envolvem estão muito, muito próximos. Talvez esteja aí a beleza da obra. É uma série que ousa. A simplicidade, portanto, esconde um plano gigante. E bom para nós. Ruptura acaba de encontrar seu lugar, nos ajudando também a encontrar o nosso.