[LITERATURA] Mulheres autoras de sci-fi 1: Ursula Le Guin

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“Vida e morte são como amantes na unidade do êxtase – dois em um – como mãos postas, uma contra a outra, são o princípio e o fim.” – Ursula K. Le Guin

Desde nova tive o hábito da leitura fortemente cultivado. Eu era curiosa de biblioteca e desde que aprendi a ler saía explorando qualquer prateleira que meus braços alcançassem. Hoje, com quase um metro e setenta e cinco de altura fica tão fácil, que eu sou responsável por apanhar livros para outras pessoas que não possuem pernas ou braços tão longos quanto os meus; lendo os mais variados estilos para descobrir qual que eu acabava por gostar mais. 

Comecei a entender quais eram meus autores preferidos e porquê. A reparar que muitos deles eram homens, especialmente os que escreviam ficção. Comecei a ir atrás de autoras, a procurar quais eram as mulheres que escreviam os estilos que eu tanto gostava de ler e, em decorrência dessa busca, achei um monte de novas paixões literárias. Mas ainda assim, sentia que eu estava procurando pouco, porque para ter tantos autores homens e  tão poucas mulheres. A minha compreensão do porque isso acontecia veio com o tempo e o contato mais frequente com a militãncia feminista.

No meio da minha adolescência, quando eu procurava muito por autoras de ficção científica – estilo esse que até hoje é um dos meus favoritos, seja em literatura, seja no cinema ou nos quadrinhos – encontrei ela: Ursula K. Le Guin.

Na época ainda não haviam exemplares em português do livro (ou eu não havia encontrado um ainda) que veio parar nas minhas mãos. E assim fui, com “A Mão Esquerda da Escuridão” numa edição bem velha e em inglês indo desbravar a literatura da primeira melhor depois de Mary Shelley que eu havia ouvido falar até então que escrevia sci-fi. Tive que me empenhar mais que o normal para ler, já que o livro tem muitos verbetes que são um pouco mais difíceis de lidar pra quem ainda não tinha um inglês 100%. Me apaixonei pelo estilo da escrita dela, antes mesmo de entender o que eram os prêmios “Hugo” e “Nebula”, que o livro havia conquistado.


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“A Mão Esquerda da Escuridão”: Genly Ai, nosso protagonista, por assim dizer, é enviado à Gethen, o “Planeta Inverno”, como representante diplomático para tentar convencer os governantes a entrarem numa espécie de “ONU” do Universo, o Ekumen. Dentro desse cenário, Genly experimenta um planeta com costumes, até então nunca vistos por ele, numa cultura onde a pressa parece desnecessária e os gêneros das pessoas não são nem de longe centrais na estruturação da sociedade, até porque os indivíduos do planeta não possuem um sexo ou gênero definido.

O nosso humano tem aí um dos principais embates da trama: compreender um funcionamento de sociedade onde os papéis de gêneros são completamente alheios a estruturas sociais e não há construção de masculino ou feminino. Isso foi provavelmente uma das coisas mais intrigantes pra mim. Eu jamais tinha tido contato com uma ficção científica que colocasse uma questão de gênero tão em evidência.

Todos os habitantes de Gethen são andróginos durante a maior parte dos seus dias, e só manifestam potencialidades sexuais durante o período do kemmer, que é uma espécie de cio, para facilitar a explicação. Durante esse período, cada indivíduo de um casal que está apaixonado pode assumir o gênero que quiser. Fora do kemmer, os gethenianos não manifestam um comportamento pautado em desempenho de papéis de gênero, e nesse ponto, a gente que é leitor se vê tão confuso quanto o Genly, tentando encaixar em qualquer definição que ele tenha de organização social as posturas dos habitantes do planeta gelado, ao passo que Genly, aos olhos dos nativos é visto como um ser pervertido (um ser que está lá, sempre com o órgão sexual, é como se estivesse sempre no kemmer, sem necessariamente estar com um parceiro, ou seja…)

Para além, o livro é extremamente dinâmico. As narrativas variam entre a visão do Genly e de outros personagens e são intercaladas por capítulos que falam da história de Gethen, mitos, acontecimentos… É um grande estudo antropológico de um planeta inexistente. O total estranhamento ao outro, a costumes que são desconhecidos e por isso ficam difíceis de ler, por não se encaixarem com o que observamos previamente. É a imersão em dúvidas que não são aplicadas numa sociedade como a nossa, acerca das questões que envolvem os papéis de gênero determinados pelo sexo.

Ursula questiona de maneira maravilhosa a forma como a humanidade se configura a partir da sexualidade e gênero, como um ponto central tanto de manutenção, como de funcionamento da sociedade. Ela demonstra como é bizarra a nossa maneira de ser, mostrando um outro lado de estranhamento, que faz com que nos perguntemos diversas vezes como seria se fosse como em Gethen.

Muitas citações te dão aquele famoso tiro na cara, falando sobre a solidão de estar num lugar completamente sozinho, tendo que falar outro idioma, viver em outro clima, caminhar sem saber exatamente como e para onde. Então além dessa temática central de gêneros, a Le Guin ainda dá um monte de lições sobre humanidade, sobre relacionamento, amor, cuidado… sobre como é estar num mundo completamente deslocado com um objetivo a cumprir. Isso sem contar na forma de conduzir a narrativa, que volta e meia transita entre passagens extremamente poéticas (e eu amo com muita força quem faz isso em literaturas que são vistas como mais pro lado técnico e frio, do que pra uma questão mais lírica), que me fazem sentir gostinho quase de realismo fantástico, no meio de naves de metal e gelo pra todo lado.

Terminei o livro com a sensação de que havia sido dividida. O confronto mental que o livro apresentou para mim foi uma experiência que eu fiz muita questão de repetir quando o livro saiu em português (quando eu consegui achar ele em português, na verdade) e é muito bom ter na minha estante uma mulher que desafiou a literatura; que no campo da ficção científica ainda é muito masculino, colocando também perspectivas de gênero que são ainda menos vistas nesse tipo de literatura.

Ursula Le Guin ainda escreveu muita coisa boa de fantasia, mas isso eu prometo que escrevo em outro post. Por hoje, ficamos por aqui.


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A Mão Esquerda da Escuridão

Ursula K. Le Guin

Editora Aleph

296 páginas

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Escrito por:

10 Textos

Alguns vinte e poucos anos usados pra fazer Cinema e Ciências Sociais. Comunista e híbrida de humana e bicho-preguiça. No mais, tenho uma Delírio tatuada no braço. Acho que isso já explica muita coisa.
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