Durante a adolescência, li muitos livros de escritores do movimento que chamamos de Geração beat, como Jack Kerouac, Allen Ginsberg e até Gary Snider, que era um nome menos publicado aqui no Brasil. Gostava bastante da linguagem, das gírias e dos palavrões, das referências musicais, da visão de mundo, de toda aquela rebeldia da contracultura, da ideia de se aventurar pelo mundo, pegando carona nos vagões dos trens de carga. Olhando retrospectivamente para esse grupo de leituras, que foi fundamental para a minha formação, fico bastante incomodada por não ter notado, na época, uma ausência exemplar: Eu não conhecia nenhuma escritorA beat. Qual era o problema? Não existiam autoras que também vivenciaram esse período? Elas não publicaram? Elas publicaram e não tiveram visibilidade? Elas publicaram, tiveram uma visibilidade passageira e depois sumiram da história?
Bastante tempo depois de já ter desencanado um pouco desse tipo de leitura, encontrei por acaso, em uma livraria, o “Memórias de uma Beatnik“, da escritora e poeta Diane di Prima. Ora! Elas existiram! E foram parte importante do movimento!
Na contracapa do livro dessa autora, um excerto de uma resenha publicada no The Village Voice, me chamou bastante a atenção: “Fundadora e editora de várias das mais importantes revistas beatniks, uma poeta brilhante e prolífica cuja relativa obscuridade em comparação aos homens com os quais esteve associada chega hoje a ser escandalosa.”
“Escandalosa” é, de fato, uma palavra que define muito bem esse tipo de “lapso”. Para lutar contra esse padrão de apagamento, de tempos em tempos aparecem algumas iniciativas necessárias, como o número especial do jornal RelevO, de março de 2016, organizado pelas professoras da Universidade Federal do Paraná, Miriam Adelman e Renata Senna Garraffoni. No texto de apresentação do volume, assinado pelas organizadoras, elas explicam um pouco qual é a intenção da publicação:
“Ginsberg, Kerouac, Burroughs, Corso, Ferlinghetti. Todos nomes reconhecidos em diversos círculos literários brasileiros, signos de rebeldia social e inovação literária. Certamente, eles merecem muitas horas de leitura, debate e estudo. Contudo, há uma outra lista que poderia e deveria ser feita, em versões mais curtas e mais longas: a de mulheres que frequentaram a boemia e os espaços dessa vanguarda cultural norte-americana – inclusive, em alguns casos, como companheiras, amantes e/ou amigas desses homens protagonistas – e são desconhecidas do público admirador do movimento beat.
Essas mulheres que a edição especial RelevO-Mulheres Beats traz com textos inéditos em português, encararam não somente as pressões conservadoras e conformistas de uma ‘América macartista’, senão também as prescrições de gênero que agiam com renovada força na época, dificultando a realização de suas aspirações artísticas. Isso representava, geralmente, problemas de reconhecimento, legitimidade e visibilidade que se traduziam em empecilhos concretos em relação a publicação e tomada de lugares de fala.”
Esse volume especial apresenta, então, algumas mulheres que participaram ativamente desse movimento artístico: Hettie Jones, Joyce Johnson, Diane Di Prima, Joanne Kyger (que faleceu na semana passada), Elise Cowen, Lenore Kandel, Diane Wakoski. Para cada autora, as organizadoras dedicam um breve texto de apresentação, com dados biográficos e referências às suas produções literárias, bem como alguns poemas, no original, em inglês, e suas traduções, inéditas, para o português.
Além disso, cada uma das autoras também conta com um retrato, criado por Sabrina Gevaerd Montibeller. É importante mencionar que todas as traduções foram realizadas por mulheres, que pesquisam e trabalham com a obra dessas autoras. Como um tira-gosto, apresentamos aqui um poema de cada autora. O restante vocês podem conferir aqui, nesse caprichadíssimo volume.
Hettie Jones
Nasceu em 1934, no Brooklyn. Estudou no Mary Washington College, graduou-se em Artes Dramáticas, pela Universidade de Virgínia e fez uma pós-graduação na Universidade de Columbia. Escreveu mais de vinte livros para crianças e adultos, com destaque para How I Became Hettie Jones, o volume de poemas Drive, que foi premiado pela Poetry Society of America’s Norma Farber. Escreveu também para diversos jornais como The Village Voice, Global City Review e Ploughshares. Participou ativamente do movimento beat, tendo fundado, ao lado de LeRoi Jones, a revista Yugen (1957-1963), que publicou vários poetas dessa geração. Além disso, foi responsável pela fundação da TotemPress, que editou autores como Allen Ginsberg e Jack Kerouac, entre outros. Atualmente, ela vive em Nova Iorque, onde trabalha em uma série de projetos em presídios femininos norte-americanos e leciona na The New School.
Direção (Hard drive), traduzido por Miriam Adelman
[…]
e, portanto, mulheres jovens
eis aqui o dilema
em si a solução:
sempre fui ao mesmo tempo
mulher o suficiente para comover-se até o pranto
e homem o suficiente
para pegar o carro e me mandar
em qualquer direção.
Joyce Johnson
Palavras (Words), traduzido por Miriam Adelman
são chaves
ou suportes
ou pedras
Te dou minha palavra
Você a embolsa
e fica com os trocados
Eis aqui a palavra
na ponta da minha língua:
amor
Eu lhe dou abrigo
ela sonha ir embora
Diane di Prima
Nasceu em 1935, no Queens, em Nova Iorque. Ela escreveu para a imprensa, em publicações como Harper’s, Harper’s Bazar, New York, The New York Times Magazine, entre outras. Publicou três romances: Come and Join the Dance (1962), Bad Connections (1987) e In the Night Cafe (1987). Seu livro mais famoso é o volume de memórias Minor Characters (1983), em que ela rememora os anos de 1957 e 1958, época em que ela teve um relacionamento com Jack Kerouac. Ela também foi editora, tendo sendo responsável pela publicação de vários livros relacionados ao Movimento pelos Direitos Civis, nos Estados Unidos. Além disso, também lecionou cursos de escrita criativa na Columbia’s School of the Arts .
Carta Revolucionária #1 (Revolutionary Letter #1), traduzido por Miriam Adelman
Acabo de perceber que o que está em jogo sou eu
Não tenho outra moeda de resgate, nada para
quebrar ou trocar, a não ser minha vida
meu espírito parcelado, em fragmentos, esparramado sobre
a mesa de roulette, eu recupero o que posso
só isso para enfiar embaixo do nariz do maitre de jeu
só isso para jogar pela janela, nenhuma bandeira branca
só tenho minha pele para oferecer, para fazer minha jogada
com esta cabeça imediata, com aquilo que inventa, é a minha vez
enquanto deslizamos sobre o tabuleiro, e sempre pisando
(assim esperamos) nas entrelinhas
Elise Cowen
Nasceu em 1933, em Nova Iorque e cometeu suicídio em 1963, aos vinte e oito anos de idade. Frequentou o grupo da Geração Beat, meio em que conheceu o poeta Allen Ginsberg, com quem teve uma relação conturbada. A maior parte de sua produção poética foi destruída após a sua morte. Posteriormente, parte de seus poemas foi resgatada por um amigo, Leo Skir, e foram publicados em revistas e antologias. Da mesma forma como outras autoras que participaram desse movimento, seu nome é frequentemente associado aos escritores ou intelectuais com quem se relacionou. De um tempo pra cá, tem-se resgatado tanto a sua produção literária quanto a importância de sua participação no movimento beat.
Morte, estou chegando (Death, I’m coming), traduzido por Manu Siqueira
Morte, estou chegando
espere por mim.
Sei que estará
Na estação de metrô
Equipada com galochas, capas, guarda-chuva, lenço
e sua única e simples resposta
para cada sentido
Instituição incorruptível
Desmancha-prazeres cautelosa de sinais
Ouça o que ela diz
“Há uma passagem através dos repolhos brancos”
Diane Wakoski
Nasceu em 1937, na cidade de Whittier. Estudou Artes na Universidade de California. Após terminar sua graduação, mudou-se para Nova Iorque, onde começou a escrever e a participar ativamente da cena literária da cidade. Ela é autora de mais de sessenta volumes de poesia e de prosa.
Dança do Ventre (Belly Dancer), traduzido por Miriam Adelman
Podem estes movimentos que se impulsionam
ser a substância da minha atração?
De onde vem esta fina seda verde que cobre meu corpo?
Certeza qualquer mulher que vestisse semelhante tecido
movimentaria seu corpo só para senti-lo tocar cada parte dela
Mas as mulheres aqui franzem a testa, desviam o olhar, dão risada nervosa.
Elas têm medo dos materiais e dos movimentos
por algum motivo.
Os psicólogos diriam que têm medo delas mesmas, de alguma maneira.
Talvez por despertar desejo em excesso –
algo que seus homens nunca poderão satisfazer?
Por isso se cobrem e se abotoam e mantém a pose
torcendo que o modelo as impeça de sentir
o registro completo.
torcendo que não terão que experimentar aquele insaciável
desejo de ritmo e de toque.
Se neste momento uma cobra deslizasse pelo chão
elas, na maioria, desmaiaria ou se encolheria
Mas esse mesmo movimento poderia ser delas
Aquele movimento suave que as assusta,
acordando seus ancestrais, seus parentes até a ponta do braços e os dedos dos pés.
É por isso que meus pés descalços
e minha fina seda verde
meus sinos e minhas castanholas
as ofendem, assustam seus jovens corpos velhos
Enquanto os homens sorriem e babam –
gratos pela experiência e o exercício vicário.
Eles não percebem o quanto os desprezo
nem como eu danço para suas
doces, desacordadas
mulheres.
Felizmente, as escritoras/poetas da geração beat têm recebido cada vez mais atenção e vários bons artigos já foram escritos sobre o tema. Você pode conferir o artigo super completo da Mariana Pereira Pires lá no Nó de Oito. A lista de recomendações, no final do texto, vale ouro!
Esse outro texto aqui, da Bia Varanis, traz mais algumas peças desse quebra-cabeça, além de outros poemas traduzidos. E, finalmente, esse ótimo artigo da Manu Siqueira, no Deriva, também nos dá uma série de informações sobre essas autoras e poetas incríveis.
Memórias de uma Beatnik
Autora: Diane di Prima
216 páginas