Às vezes em meio a correria do dia a dia, sequer percebemos elementos mágicos que se apresentam ao longo de nossas vidas. Lendas e folclores que nos fascinavam na infância são deixados de lado, frente ao estresse da vida “real”, porém, como é mostrado em Repeteco, por vezes esses elementos retornam à nossa história sem que tenhamos o que fazer sobre isso.
Confira a sinopse do quadrinho:
“A vida de Katie vai muito bem. Ela é uma chef talentosa, dona de um restaurante de sucesso e com grandes planos para a vida. De repente, em um único dia ela perde uma grande chance de negócios, sua paquera com um jovem chef azeda, sua melhor garçonete se machuca e um ex-namorado charmoso aparece para complicar ainda mais a situação.
Quando tudo parece perdido e Katie já não enxerga mais uma solução, uma misteriosa garota aparece no meio da noite com a receita perfeita para uma segunda chance. E assim, Katie ganha um repeteco na vida e precisará lidar com as consequências de suas melhores intenções. ”
A premissa da história parece ser exatamente aquilo que muitas de nós já desejamos uma vez ou outra na vida: uma segunda chance. Quantas vezes cometemos um erro – ou mesmo passamos por uma coisa que poderíamos ter mudado por uma simples troca no caminho de casa – e desejamos poder voltar atrás? Para Katie, essa segunda chance se revela quando a personagem principal se encontra – ou melhor, é encontrada – pelo elemento extraordinário da história, Lis. E é justamente a partir desse momento que a história realmente começa, com a inclusão de uma série de loopings – chamados retificações – que vão se intensificando até atingirem o clímax da narrativa.
Além do óbvio aspecto extraordinário presente na história, talvez o que mais nos chama a atenção, nos prendendo totalmente ao enredo, seja, curiosamente, a faceta comum do quadrinho. É praticamente impossível que nós, como leitoras adultas, não nos identifiquemos com os pensamentos da Katie. Ela vê sua vida profissional estagnada e as complicações da pessoal aumentando a cada dia, logo, a rapidez com que Katie embarca na chance de mudar sua situação é bastante relacionável e entendível.
Vivemos uma época em que o sucesso absoluto até os 30 anos de idade é o único aceitável e a mínima falha nesse ideal é julgada como incompetência, sendo que, por recebermos essa pressão de sucesso desde a juventude, nos moldamos para alcança-la de tal forma que até um pequeno atraso é criticado. Diante dessa sensação, é que Katie faz a sua escolha.
Além desse sentimento, arriscamos dizer, universal, Repeteco consegue tratar com singular leveza a sexualidade de uma de suas personagens. Mesmo já possuindo um personagem LGBTQ+ entre seu elenco, e por tratá-lo sem nenhuma particularidade estereotipada ou sequer especial, assim diferenciando-o dos demais, ao tratar da fase de descoberta sexual passada por muitos jovens, Brian Lee O’Malley, autor do quadrinho, reconhece que tal período é particular de cada pessoa e que deve ser respeitado.
Além disso, a sexualidade, ao mesmo tempo em que não é tratada como um tabu, não é vista como algo sequer importante para a história em si ou para quaisquer personagens. Cada um é visto por suas singularidades pessoais e não por esse elemento, ou qualquer outro como raça ou classe, já que o mesmo não é, de nenhuma forma, determinador em suas construções como personagens.
A propósito, há uma representação étnica interessante em Repeteco. Há mais de um personagem negro, não recaindo em estereótipos raciais, com papeis importantes na história. Entretanto, a maioria dos personagens ainda são brancos, e não parece haver nenhum personagem asiático, indígena, latino, etc, na trama, o que diminui o potencial de diversidade não apenas na coloração do quadrinho, mas nos pontos de vista apresentados na narrativa.
Falando em coloração, a do quadrinho é excelente. As cores são vivas e os detalhes das ilustrações aparentam ser perfeitos para a história de Katie. A narrativa é feita através de diálogos rápidos, com quadros dinâmicos e completamente ligados entre si. Parece que Katie está, realmente, nos contando sua história em um café no fim da tarde e não que estamos lendo-a das páginas de um livro.
Repeteco é, portanto, uma pérola de Brian Lee O’Malley que, felizmente, chegou ao Brasil para podermos desfrutar dessa história que, apesar de não trazer uma premissa extraordinária particularmente nova, nos passa essa sensação ao apresentar uma narrativa tão contemporânea e, no geral, respeitável. São válidas as críticas de falta de diversidade na trama, de vocabulário machista – “vadia” – e até de fazer a história de Katie se mostrar, por 90% do tempo, como direcionada apenas para um homem.
O jeito que a história é construída, porém, e até o final do livro nos faz analisar isso com maior profundidade. A história questiona não apenas o desejo de mudança de Katie, mas a maneira que ela mesma, e que muitas de nós, estava levando sua vida, apresentando, assim, que (talvez) devamos ter mais fé em nossas escolhas. Como dissemos antes, é impossível ler Repeteco e não se identificar com as dúvidas e propriamente com a história de Katie. Tudo converge para que isso aconteça, tamanha é a impecável construção do fator “normal” da história.
É divertido e até iluminador ler Repeteco, em algumas formas. Ele pode não possuir os superpoderes do universo de Scott Pilgrim VS. the World, mas nos conquista da mesma forma e é justamente o fator comum de Katie que o faz. Dito isso, vale a leitura!
Repeteco
Brian Lee O’Malley
336 páginas