Scott Pilgrim é um nome familiar para os fãs de cultura pop dos anos 2000. A série de quadrinhos de Bryan Lee O’Malley estreou em 2004 com Scott Pilgrim contra o Mundo e teve mais cinco volumes lançados em seis anos. Em 2010, Edgar Wright dirigiu a adaptação cinematográfica, que fez sucesso entre as 200 maiores bilheterias do ano, marcando a cultura pop.
Treze anos depois, a saga ganhou uma animação de oito episódios na Netflix: Scott Pilgrim Takes Off. A produção contou com o elenco original, a criatividade do autor e a produção de Edgar Wright.
Em meio à onda de nostalgia e adaptações, vale refletir: Por que Scott Pilgrim e por que agora? Qual o legado da criação original de Lee O’Malley e como essa nova série se encaixa nessa conversa?
A sinopse original de Scott Pilgrim contra o Mundo
Scott tem um sonho com uma garota de cabelos coloridos e patins, que mais tarde descobrimos ser Ramona Flowers (Mary Elizabeth Winstead). Ela existe na vida real e passa patinando pela mente de Scott, porque lá tem um atalho vantajoso que usa para reduzir o tempo de jornada no seu trabalho.
Entregadora da Amazon, ela é uma estadunidense que acabou de se mudar para Toronto. Quando a encontra na vida real, Scott Pilgrim faz o possível para conseguir um encontro e começar uma relação com a garota de seus sonhos. Por um breve momento, ele sai com Ramona ao mesmo tempo em que namora Knives, a colegial.
O que o protagonista não espera é ser convocado para uma batalha pelo “direito” de se relacionar com Ramona. A Liga de Sete Ex do Mal o localiza para travar uma série de batalhas cada vez mais difíceis, cada oponente de um período da vida de Flowers.
Desde o ficante da época da escola, passando por sua fase “bi-curiosa” até o ex mais atual e maligno, Scott passa por diversas provações para mostrar que merece estar com Ramona.
Lutas estilizadas e uma linha cômica marcam tanto a adaptação cinematográfica quanto o quadrinho, onde gradualmente somos apresentadas às questões da vida de Scott.
Traumatizado pela ex que se torna cantora de sucesso, incapaz de lidar com os próprios erros e relações passadas, e agora apaixonado por uma garota que notadamente foge de relacionamentos mais sérios. Além disso, a bagagem emocional dela está literalmente tentando matá-lo.
Essa é a história de Scott Pilgrim contra o Mundo.
A mulher dos sonhos retratada no filme
O filme lançado em 2010 foi um grande marco na cultura pop, com atuações divertidas e icônicas que vão além dos protagonistas.
Chris Evans brilhou no papel de Lucas Lee, o ex número 2 de Ramona, enquanto Brie Larson encarnou Envy Adams, ex de Scott Pilgrim e cantora da banda Clash at Demonhead.
A direção altamente estilística de Edgar Wright faz do filme um quadrinho encenado na vida real, construindo um espetáculo visual com um elenco muito bem alocado.
Apesar dos méritos do filme, há muitos pontos para discussão. Um dos principais é a abordagem da personagem de Ramona Flowers, que se torna uma clássica manic pixie dream girl.
Mudando a cor do cabelo toda semana, distante e puxando o protagonista para um mundo de aventuras – a cool girl que irá apimentar a vida de Scott Pilgrim. Temos apenas um vislumbre de sua relação com seu passado, o que ela vê em Scott ou a evolução do seu personagem. Sua existência no filme é quase 100% em função do seu interesse amoroso.
Scott tem um papel mais tridimensional, e suas falhas são retratadas explicitamente durante o filme. Sua relação com uma jovem de dezessete anos nunca é aprovada por nenhum dos personagens, por exemplo.
O herói da saga é retratado como alguém que não confronta seus erros, busca obsessivamente zonas de conforto, e parte do clímax tem a ver com a revisão da sua relação consigo mesmo e seus relacionamentos passados. Ele começa como um zero à esquerda, e através da batalha com os ex do mal e sua relação com Ramona, enxergamos seu crescimento.
Entre os quadrinhos e o filme de Scott Pilgrim
A série de quadrinhos é outra história: com um formato seriado, o autor teve espaço para desenvolver diversas histórias paralelas e nos dar uma visão maior da relação entre Scott Pilgrim e Ramona Flowers.
Durante uma janela de tempo maior na vida dos personagens, conseguimos acompanhá-los se conhecendo e as dinâmicas que surgem daí. Os arcos se estendem para além dos personagens principais, com uma exploração interessante e divertida de todo o ecossistema do grupo.
Ramona consegue sair um pouco do lugar de manic pixie dream girl – entendemos seu passado, sua tendência à fuga e como se sente com alguns de seus ex.
A própria narrativa zomba da visão rasa que o protagonista às vezes tem da namorada: em um diálogo, Ramona descreve as coisas que gosta em Scott, e ele responde que gosta do fato dela ser “misteriosa”. A reação dela, obviamente, é de descrença. Conseguimos observar os personagens se conhecendo, nos aprofundando em cada um deles no processo.
O filme é muito divertido, mas nos quadrinhos temos um olhar profundo e humano sobre as relações do grupo. Com espaço para desenvolvê-los, o autor nos leva para além dos estereótipos que marcaram a adaptação cinematográfica. Ainda assim, muito dos tropos utilizados na história são reflexo da sua época: a redenção de um cara imaturo através de uma relação amorosa. Nesse caso, literalmente, com a mulher dos seus sonhos.
A adaptação para uma nova década
Scott Pilgrim contra o Mundo é um exemplo do seu tempo. Os anos 2000 foram marcados pelo protagonismo de nice guys e sad boys – que podem ser traduzidos como “caras legais” românticos, às vezes meio tristes e emotivos, sempre protagonistas.
Tom (Joseph Gordon-Levitt), apaixonado por Summer (Zooey Deschanel) em 500 dias com ela; Mark (Andrew Lincoln) apaixonado pela esposa do melhor amigo (Keira Knightley) em Simplesmente Amor; Chris (Ryan Reynolds), apaixonado e ressentido com a amiga de infância (Amy Smart) em Apenas Amigos.
Às mulheres, foi relegado o papel de interesse romântico – quando muito, a caracterização rasa da manic pixie dream girl.
A animação da Netflix surge em um momento bem diferente. Scott Pilgrim Takes Off é feita treze anos depois do sucesso cinematográfico, e quase vinte anos após a primeira edição do quadrinho.
Inicialmente, parece um remake do filme/HQ, com o elenco original na dublagem. O primeiro episódio é uma réplica quase exata do filme até a primeira batalha, com o Matthew Pattel (Satya Bhabba). No entanto, inesperadamente, o ex número 1 vence a luta. Scott, aparentemente, morre.
A virada no roteiro, que acontece no primeiro episódio, nos diz duas coisas: esse não é apenas um remake, e a personagem principal dessa história não é Scott Pilgrim. A partir daí, acompanhamos a jornada de Ramona Flowers lidando com o próprio passado, lutando suas batalhas, e se tornando a protagonista na história e no relacionamento.
A animação se distancia consideravelmente da trama original. Temos uma visão do futuro dos dois, e Scott é ainda menos romantizado do que foi nos quadrinhos. Sua dificuldade de lidar com os próprios erros persiste, mas agora o enxergamos através do olhar de Ramona. Nossa protagonista tem espaço para ir além, e nos convida a entender o que exatamente ela vê nesse menino que acabou de conhecer.
Vale a pena assistir à nova série Scott Pilgrim Takes Off?
Os oito episódios de Scott Pilgrim Takes Off exploram bem o formato animação, sendo uma ótima escolha para os entusiastas dessa mídia.
A voz original, por vezes, deixa a desejar, com o elenco composto por atores do filme e não dubladores treinados, mas isso não chega a prejudicar a obra. A série funciona dentro do contexto das adaptações de Scott Pilgrim, mas também pode ser apreciada por quem não acompanhou os quadrinhos ou o filme.