Um dos grandes méritos da escritora chinesa Xinran foi não somente ter apresentado a milhões de pessoas um retrato da China e suas contradições entre o antes e o depois da sua abertura econômica -entre o mundo urbano e o rural e a complexidade da convivência entre a herança comunista e a ambição capitalista dos dias atuais. Xinran é também uma cronista e testemunha da vida das mulheres chinesas, e, com ela, as história de meninas e mulheres tidas como cidadãs de segunda classe ganharam um rosto e um nome e deixaram de ser apenas estatísticas a figurar em relatórios de denúncias sobre o infanticídio de meninas ou em reportagens que retratam a China como um lugar exótico, primitivo ou pitoresco.
Obras como As boas mulheres da China e Mensagem de uma mãe chinesa desconhecida permitiram a mulheres de todo o mundo conhecer, entender e se identificar com a vida e a opressão vivida pela população feminina chinesa, que em certo sentido se comunica com questões presentes em qualquer país: o desprezo pelo feminino e pelas meninas quando estas ainda se encontram no útero de suas mães, a violência cometida contra a maternidade, os casamentos forçados (a falta de mulheres em idade fértil faz com que muitos homens raptem mulheres e as obriguem a se casar com eles), a feminilização da pobreza, o impacto da ditadura comunista na vida das mulheres, com suas torturas e violações e a vida difícil das camponesas numa cidade grande são temas muito caros à escritora.
Neste sentido, As filhas sem nome é uma obra que dialoga fortemente com as duas obras acima citadas. É a história de Três, Cinco e Seis, nascidas na área rural da China, filhas de um camponês que se envergonha de ter tido seis filhas e nenhum filho – ele anda de cabeça abaixada na sua localidade, tamanha a vergonha.
Por conta dessa desvalorização de quem nasce mulher, o pai sequer deu nome a elas, apenas as identificou de acordo com a ordem de seus nascimentos. A humanidade negada às mulheres é denunciada sutilmente por Xinran, que dá nome apenas ao pai, Li Zhongguo, enquanto que a mãe é identificada “apenas” como mãe. As meninas são apelidadas de “palitinhos”, incapazes de segurar um telhado, enquanto que os meninos são cumeeiras (que dão sustentação ao telhado).
Ao longo de quase 300 páginas, Xinran descreve a luta e a persistência das três irmãs, que decidem ir embora da casa dos pais para trabalhar na cidade de Nanjing, visando a um dia retornar à sua aldeia com dinheiro para amparar a família e mostrar que são capazes de sustentar o telhado.
Três, que passou alguns poucos anos na escola, emprega-se em um restaurante; Cinco, que é analfabeta, em um centro de medicina milenar, e Seis, a mais escolarizada e intelectualizada, em um café que serve também como espaço de leitura. A introdução e posfácio da autora, assim como a nota da tradutora do livro para o inglês e informações adicionais sobre a cultura chinesa enriquecem o livro e aproximam a leitora da história.
“Ao longo do meu trabalho como jornalista, encontrei muitos “palitinhos” – garotas de aldeias pobres que viviam de trabalho árduo em casamentos arranjados. De início, meus encontros com elas costumavam se limitar às minhas visitas ao interior. Entretanto, à medida que a China começou a reformar sua economia, durante os anos 80, e os camponeses foram autorizados a buscar trabalho nas cidades, essas garotas “palitinhos” passaram a trabalhar como garçonetes e faxineiras em restaurantes, lojas e hotéis de grandes centros urbanos. As pessoas das cidades muitas vezes sequer as enxergavam, quase como se elas não estivessem lá, mas eu sempre tentava entabular uma conversa e descobrir sus histórias. E pensei muito nelas quando cheguei a Londres pela primeira vez.
Para sobreviver financeiramente naqueles primeiros dias na Inglaterra, trabalhei por um curto período de tempo como faxineira de estabelecimento comercial e garçonete. Os ocidentais olhavam através de mim como se eu fosse transparente, do mesmo modo como as pessoas da cidade olhavam através das moças “palitinhos” na China, e pensei entender melhor como eram suas vidas. Fiquei tocada pela autoconfiança e pela determinação que as levavam a cavar um lugar para si longe de seus lares e familiares” – As filhas sem nome, p. 16.
Uma vez que Xinran se destacou por seus livro-reportagens, em que narrava ao um estilo jornalístico e mais ágil as histórias reais de pobreza, violência e solidão de mulheres que conheceu enquanto apresentou um programa de rádio – chamado “Palavras na brisa noturna”, e que lhe obrigou a se exilar na Inglaterra -, as histórias baseadas em mulheres reais, mas ficcionalizadas e dramatizadas de As filhas sem nome podem não parecer ter a mesma força.
A descrição de fatos muito comezinhos e a ausência de grandes conflitos e de um clímax narrativo – as meninas, desde que chegam à cidade, só encontram homens e mulheres extremamente hospitaleiros e solícitos – por vezes dão a impressão de uma história ingênua e sem nuances e complexidades.
Como colocou a tradutora da obra para o inglês, a tarefa de traduzir qualquer coisa do mandarim para outra língua “é como capturar uma nuvem e colocá-la em uma caixa”. De fato, por vezes tem-se a impressão de que é impossível captar a essência dos provérbios e expressões narrados.
De toda forma, se a história e a narrativa por vezes parecem muito simples e pouco politizadas para quem está acostumada com as obras anteriores de Xinran que denunciam a opressão da mulher chinesa, por outro lado é possível se divertir, se assombrar e se deliciar com a descrição dos festivais chineses, da culinária, dos dialetos, do funcionalismo público e da mentalidade da polícia, da corrupção política e de como os chineses veem os “narizes grandes”, alcunha dada aos ocidentais.
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Em alguns momentos, embora a intenção anunciada do livro seja focar nas mulheres migrantes do campo chinês e essa escolha dê o tom no inicio da narrativa e na introdução e posfácio da obra, a impressão é de que a história é menos sobre a condição feminina na China e mais sobre o cotidiano da população do campo que migrou para as cidades, a superação da pobreza e de uma vida marcada pelo autoritarismo.
Para quem busca conhecer a inferiorização das meninas, ainda mais extremo da área rural, recomenda-se mais a obra Mensagem de uma mãe chinesa desconhecida. Para entender as violências que assombram as mulheres desde a época de Mao Tsé-Tung, o mais indicado é As boas mulheres da China.
Essa opção da autora, no entanto, não retira o mérito da obra, nem sua beleza e importância. A vontade de Três, Cinco e Seis de aprender e vencer os obstáculos impostos pelo choque cultural dentro do próprio país, o amor pela mãe humilde e calada e a superação do desprezo paterno também comovem e geram reflexões que talvez calem fundo justamente pela simplicidade e economia da linguagem. As impressões ao final da leitura são mesmo complexas e por vezes contraditórias. Como a própria China.
Autora: Xinran
290 páginas
Ano: 2010
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