Muitos já conhecem a história de “Solaris” através dos filmes, seja pelo clássico de Andrei Tarkovski (1972, ganhador do grand prix spécial du jury de Cannes) ou pelo fiasco (de 2002) dirigido por Soderbergh e estrelado por George Clooney. No entanto, só agora temos em mãos a obra que originou tudo isso: o livro escrito pelo polonês Stanislaw Lem.
Sinopse de Solaris: Quando o psicólogo Kris Kelvin chega em Solaris para estudar o oceano vivo – e possivelmente inteligente – que cobre a superfície do planeta, ele encontra colegas de trabalho hostis e amedrontados. Logo Kelvin descobre que esses respeitados cientistas estão sendo perturbados por estranhas aparições, que também começam a afetar sua própria percepção. O que ele vê são suas memórias mais obscuras e reprimidas, materializadas por obra de alguma misteriosa força atuante no planeta. Publicado pela primeira vez em 1961, este clássico da ficção científica, aqui traduzido diretamente do polonês, ganhou três adaptações cinematográficas, sendo que a versão dirigida por Andrei Tarkovsky em 1972, recebeu o Grand Prix no Festival de Cannes.
Uma obra sobre ciência e psicologia
Ainda que as partes dedicadas à ciência (ficção científica em si) sejam as mais extensas e detalhadas, o livro também aborda aspectos psicológicos dos personagens, já que o ponto focal da história se dá com base nisso.
Neste sentido, a sinopse já entrega boa parte da trama, ao falar que as aparições em Solaris derivam de ”memórias mais obscuras e reprimidas, materializadas por obra de alguma misteriosa força atuante no planeta”.
Acompanhamos o psicólogo Kris Kelvin desde sua chegada em Solaris. Assim que entra na estação, ele se depara com um perturbado cientista, que diz que seu amigo cometeu suicídio. O cientista não explica os motivos, apensa avisa para que Kelvin tenha cuidado. Pouco tempo depois Kelvin vê uma aparição e, no dia seguinte, outra: se depara com um antigo amor que cometeu suicídio há dez anos.
As aparições têm corpo físico e conversam, ainda que de maneira confusa. São projeções de lembranças, de coisas reprimidas e guardadas na mente dos cientistas da estação. Portanto, cada um tem uma aparição ligada à sua própria história. Apesar de todo o mistério, a única aparição que conhecemos de fato é a da antiga namorada de Kris, chamada Harey.
Sobre a ficção científica em si, Solaris tem passagens que podem ser de puro deleite para alguns e de muita prolixidade para outros. Isso acontece nos muitos momentos dedicados às explicações dos fenômenos que ocorrem em Solaris.
Daí entram dados de física, química, astrofísica, geografia e até mesmo de engenharia. Algumas partes são transcrições de artigos acadêmicos de estudiosos da Solarística, nome dado ao ramo de estudos acerca do planeta. Como todos os personagens são cientistas, nada mais natural do que nos depararmos com partes assim. Contudo, o aspecto psicológico e filosófico de Solaris é igualmente rico.
A começar pelos cientistas: cada um lida de um modo com as aparições e com a morte do colega. A insanidade está sempre à espreita e os limites entre realidade e as criações de Solaris são tênues. A própria Harey, depois de algum tempo, atormenta-se com questões existenciais acerca de sua essência, da origem de suas lembranças e de seu Ser, enquanto Kelvin não entende se a aparição de seu amor morto há tanto tempo seja uma benção ou uma maldição. A racionalidade científica lida, então, com emoções incontroláveis.
Interessante notar que, ainda que as aparições sejam feitas pelo oceano vivo do planeta Solaris, elas não comportam uma consciência do planeta em si. Em determinado momento, um cientista chama a atenção para o fato de que não se pode tratar Solaris de uma maneira antropomórfica, apesar de tudo. Portanto, não há comunicação possível entre planeta e cientistas.
A situação se torna limítrofe em pouco tempo. A tensão cresce e os cientistas procuram um desfecho – mesmo que isso possa significar seu próprio fim.
Leia Também:
[LIVRO] Nós: A Primeira Distopia da Ficção Científica (Resenha)
[LIVROS] Um Estranho Numa Terra Estranha: A construção mútua de conhecimento (Resenha)
[LIVROS] Robô Selvagem: Literatura infanto-juvenil para qualquer idade (Resenha)
A representação feminina em “Solaris”
Os personagens principais são todos homens. Enquanto as aparições que conhecemos são de mulheres. Portanto, não há uma representação humana de uma mulher – e tampouco uma representação humanizada. Enquanto Harey se apresenta um construto confuso e perdido, a outra aparição protagoniza um momento problemático.
Assim que começa a caminhar pela estação, Kelvin vê a figura de uma mulher negra e gorda. O modo como ela é retratada/como o cientista a percebe é racista e não dá para ser ignorado. Tanto que é algo que continua a incomodar mesmo após o fim da leitura. E este é o aspecto mais negativo do livro. E lembramos que outra obra de ficção científica apresenta problema semelhante: Nós, que resenhamos AQUI.
Conclusão
Solaris nos presenteia com um tipo de história que pode ser desenvolvida e debatida em seus mais diversos aspectos, sejam eles científicos, psicológicos ou filosóficos. É um clássico sci-fi que inspirou pelo menos um grande filme e que merece ser lido (de maneira crítica e com consciência de sua representação racista mencionada acima).
A Edição da Aleph é primorosa: apresenta capa dura e páginas com bordas amarelas. A Editora vem caprichando cada vez mais no aspecto físico de seus lançamentos. É o tipo de livro que enfeita qualquer estante.
Solaris
Autor: Stanislaw Lem
320 páginas
Este livro foi cedido pela editora para resenha