Only Yesterday: as memórias e o amadurecimento de uma mulher

Only Yesterday: as memórias e o amadurecimento de uma mulher

Um dos menos conhecidos filmes do estúdio, mas tão encantador quanto os demais, Only Yesterday (no original “Omohide Poro Poro” – disponível na Netflix) é um filme simples e reflexivo na medida. E no final do ano passado, ao completar 25 anos, finalmente os amantes do Estúdio Ghibli foram presenteados pela Universal com uma dublagem em inglês do filme que contou com Dev Patel (indicado ao Oscar por Lion) e Daisy Ridley (Rey da franquia “Star Wars“‘) no elenco. O que facilita também o acesso do filme, que até então só contava com o áudio no original.

Nascida e criada em Tóquio, Taeko é uma mulher de 27 anos, solteira e bem-sucedida no trabalho que decide fazer uma viagem para o interior para visitar parentes distantes. Enquanto acompanhamos o decorrer da viagem, somos remetidos às memórias de infância da personagem principal simultaneamente. O que permite traçar um paralelo sobre a vida estressante que leva e a que almejava quando criança.

A narrativa não-linear e com tantos detalhes do cotidiano, poderiam tornar o filme facilmente maçante, mas aproximam o espectador da personagem principal. É quase como ouvir o desabafo de um amigo próximo ou ler o diário de alguém. O intimismo do filme é construído por Isao Takahata nos mínimos detalhes. Tudo harmoniza para transmitir os sentimentos e sensações de Taeko: a escolha de aquarelas para retratar o passado, a narração em primeira pessoa e a trilha sonora.

O traçado mais realista adotado dá incrível humanidade à animação. Taeko tem rugas, covinhas, sua pele não é perfeita. A coloração aqui escolhida é mais vívida e intensa, um tom mais palpável. É fácil se identificar com alguém imperfeito, com fragilidades e indecisões. Por essas razões também, o filme cria maior empatia com o público adulto. Perceber que alguns sonhos antigos já parecem sem sentido e ultrapassados, e reconhecer desejos que crescem ao mesmo passo em que amadurecemos, existe algo mais humano que isso?

Presente e passado se conversam perfeitamente sem soar confuso ou complexo de se situar. As lembranças de infância de Taeko vêm ao encontro do presente pelo desejo (quase árcade) que a personagem sempre possuiu de ter um contato com a natureza. E ao realizar uma vontade tão profunda, Taeko parece se entender. Mostrando como acontecimentos tão corriqueiros, como comer uma fruta “exótica” primeira vez,  influenciam em nossos caracteres e anseios pela vida toda.

Nem só de nostalgia e amenidades a narrativa é construída. O filme também apresenta críticas à sociedade japonesa, principalmente à rigidez das famílias tradicionalmente patriarcais. Uma das cenas mais marcantes é de uma agressão física, que mesmo com baixo impacto físico, apresenta grande peso psicológico. É fácil lembrar-se de centenas de cenas com violência física excessiva, cheias de sangue.

Porém, que não conseguem passar ao telespectador tamanha tirania de todo um sistema. Afinal de contas, o Japão é até hoje um país em que a figura feminina é sempre subjugada. Culturalmente, a mulher deve obediência ao marido e ao pai. A presença de hierarquias, até mesmo em antro familiar, denunciam a estruturas opressivas da cultura nipônica.

Only Yesterday
Only Yesterday (1991), Isao Takahata

E com a mesma sutileza que fala sobre a misoginia japonesa, a obra de Takahata comenta o modo de produção e consumo das sociedades modernas. Principalmente através da figura de Toshio, o interesse romântico de Taeko já adulta. Apesar de não serem aparentemente compatíveis, na verdade, o casal é perfeitamente encaixado no contexto atual da protagonista.

Um agricultor de produtos orgânicos, muito atento e cuidadoso com toda a produção de sua mercadoria, algo que se contrapõe com aos padrões típicos de metrópoles, como Tókio. A lógica de produção sistêmica e consumo imprudentes afloram os desejos de êxodo urbano.  

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E Toshio representa a carência de Taeko em relações mais orgânicas e leves. Uma naturalidade qual jamais vivenciou em Tóquio, um estilo de vida mais ameno. Ele se encanta pelas histórias contadas pela moça. Ela se encanta pelo companheiro que encontra seu modo de ver e viver a vida. Por isso a interação entre os personagens é interessante: complementar, fluida; não é difícil se cativar por uma relação tão genuína.

Only Yesterday

No final, delicadeza, tal como em outros filmes do Estúdio Ghibli, acaba sendo uma das palavras-chave. É essa brincadeira com as subjetividades que traz beleza ao filme, como os pontuais momentos oníricos para intensificar as emoções da personagem principal. Ao mesmo tempo em que leva o espectador à refletir sobre questões essencialmente identitárias e de autoconhecimento; é um agradável convite para se pensar sobre a atual dinâmica homem-natureza e qual seria o real significado de “progresso”.

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Futura estudante de cinema, obcecada por filmes do Estúdio Ghibli. Ama falar de filmes, séries, músicas e livros sobre os quais as pessoas não se importam, mas jura terem qualidade. Ama escrever mais que tudo e mostrar seu lado chato...Quer dizer crítico.Vegetariana, feminista interssecional e hater profissional do capitalismo.
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