As personagens femininas da Ghibli: Kaguya, Haru, Satsuki e Mei

As personagens femininas da Ghibli: Kaguya, Haru, Satsuki e Mei

Dando continuidade ao Especial Ghibli, que reflete sobre a representação feminina dentro do estúdio Ghibli, fundado por Hayao Miyazaki e Isao Takahata em 1985, as personagens principais de suas animações são consideradas uma representação mais justa e real das mulheres. Ao longo de suas histórias, essas personagens se destacam como donas de si mesmas, capazes e relevantes.

O estúdio foi o expoente na onda de animações com protagonismo feminino forte, inteligente e complexo. Em quase todos os seus longas-metragens, as protagonistas são garotas que estão construindo suas identidades. Como Miyazaki comenta: “São garotas corajosas e autossuficientes que não hesitam em lutar pelo que acreditam com todo o coração.

A fim de ilustrar a relevância das animações do estúdio, realizaremos uma análise mais detalhada de algumas das mais famosas personagens femininas da Ghibli.

Kaguya, de “O Conto da Princesa Kaguya” (Isao Takahata, 2013)

Ghibli

O Conto da Princesa Kaguya” foi o último longa dirigido por Isao Takahata antes de seu triste falecimento em 2018. Este filme, indicado ao Oscar de Melhor Animação em 2015, é uma adaptação da fábula clássica da cultura japonesa, conhecida como “O Conto do Cortador de Bambu”. Apesar de algumas diferenças em relação à história original, o diretor optou por criticar a cultura patriarcal ainda presente no Japão.

A trama narra a história de um humilde cortador de bambu que vive em uma pequena casa no interior do Japão. Em um belo dia, ele encontra uma garota dentro de um bambu, uma criança que brilha e se destaca entre os demais. Acreditando que ela seja um ser divino, ele a leva para casa, onde ele e sua esposa decidem criá-la como se fosse sua filha.

A menina logo deixa sua forma diminuta e se transforma em um bebê humano, mas fica claro que ela não é uma criança comum, pois possui algum traço místico que a faz crescer muito mais rápido do que as outras crianças.

O pai da menina fica encantado com sua beleza e habilidades, e começa a chamá-la de “princesa”, enquanto as outras crianças da aldeia a apelidam de “Pequeno Bambu”. Ela faz amizade com as crianças locais e explora a floresta, colhendo alimentos e desfrutando de sua liberdade em contato com a natureza e seus amigos.

A garota demonstra uma felicidade evidente nessas situações, o que inclui cenas como tomar banho no rio junto com seus amigos, destacando sua liberdade. Isso também se reflete quando seu pai questiona sua mãe sobre sua amizade com os meninos, e a mãe assegura que ela está segura com eles, sinalizando a crítica à cultura patriarcal proposta por Takahata ao questionar por que ela não poderia ser amiga dos meninos e gozar de sua liberdade como eles.

personagens femininas da Ghibli

Entretanto, o pai da garota, ao retornar ao local onde a encontrou no bambu, depara-se com uma grande quantidade de ouro e tecidos valiosos. Ele interpreta isso como um sinal divino de que sua filha deveria levar uma vida nobre e luxuosa na capital. Contra a vontade de sua esposa e da própria garota, ele decide mudar a família para a capital.

Com o dinheiro obtido do bambu, ele compra uma mansão suntuosa e passa a tratar sua filha como uma verdadeira princesa. Contrata uma professora para ensiná-la a se comportar como uma nobre e, de certa forma, como uma “mulher respeitável” na sociedade. A garota, ao contrário de quando vivia no campo, não se sente feliz na capital.

Ela se sente constantemente aprisionada, cercada de falsidades e submetida a cobranças absurdas, ansiando pelo retorno ao campo, onde era verdadeiramente feliz e livre. No entanto, seu pai não compreende seus sentimentos e acredita firmemente que o caminho correto é o da nobreza e do luxo.

Nessa narrativa, o diretor questiona claramente as imposições que a sociedade japonesa e, de modo mais amplo, todas as sociedades, colocam sobre as mulheres. Um destaque notável é a personagem Senhorita Sagami, a professora de etiqueta contratada para ensinar a Kaguya como ser uma jovem estimada naquela sociedade.

Enquanto antes sua vida era repleta de liberdade, amizades e aventuras no campo, agora ela se via presa a rigorosas regras de etiqueta e aos costumes da nobreza. A todo momento, Kaguya era instruída sobre como se comportar como uma “verdadeira dama”, a ser graciosa o tempo todo e a falar com outras pessoas somente em ocasiões raras. Ela tinha que usar roupas específicas, depilar as sobrancelhas, pintar os dentes e permanecer reclusa no palácio, tudo para manter sua beleza como um mistério.

personagens femininas da Ghibli

Além disso, persiste a pressão para que as mulheres se casem e formem uma família. A Senhorita Sagami, por exemplo, não entende o fato de Kaguya não desejar casar, argumentando que o casamento é a maior fonte de felicidade para uma mulher.

Quando o Imperador a convida para se tornar uma das damas da corte, seu pai fica extasiado, afirmando que não há alegria maior para uma mulher do que se tornar esposa e objeto de devoção de um homem. Enquanto a narrativa avança na direção de torná-la uma dama da corte, o Imperador proclama que a felicidade de Kaguya reside em ser sua.

Apesar de toda a pressão para se tornar uma esposa exemplar e nobre, Kaguya constantemente se rebela contra as convenções que lhe são impostas. Ela se recusa a depilar suas sobrancelhas, zomba dos homens que a cortejam, rejeita o pedido de casamento do Imperador, afirmando que nunca será sua mulher, e expressa sua raiva por ser considerada propriedade de alguém. Na verdade, tudo o que ela deseja é a liberdade.

personagens femininas da Ghibli

Com seus traços que mais parecem fazer parte de uma obra de arte, Takahata traça uma crítica silenciosa e poética sobre o tratamento das mulheres em nossa sociedade, em especial no Japão. Ele torna O Conto da Princesa Kaguya um dos filmes mais destacados de todo o estúdio Ghibli, ao abordar de forma profunda o papel da mulher em nossa sociedade.

Haru, de “O Reino dos Gatos” (Hiroyuki Morita, 2004)

personagens femininas da Ghibli

O Reino dos Gatos” narra a jornada de Haru, uma estudante japonesa aparentemente comum. No entanto, tudo muda quando, um dia, ela resgata um gato prestes a ser atropelado. Para sua surpresa, o gato se levanta sobre duas patas e a agradece por tê-lo salvado.

Naquela mesma noite, um grupo de gatos aparece em frente à sua casa e revela que faz parte do Reino dos Gatos. O rei dos gatos explica que o gato que Haru salvou era o príncipe do reino e promete recompensá-la com presentes peculiares, como ratos e ervas de gato.

Quando Haru explica que esses presentes não têm utilidade para ela, o rei propõe um casamento entre ela e o príncipe, considerando-o a maior felicidade que poderia ocorrer em sua vida. Acidentalmente, Haru concorda e é sequestrada, levada para o Reino dos Gatos, onde gradualmente começa a se transformar em uma gata.

Felizmente, Haru encontra aliados dispostos a ajudá-la, incluindo o gato Barão, Muta, um felino grande e rechonchudo, e Toto, uma estátua de corvo que ganhou vida. Juntos, eles tentam escapar das garras do rei e trazer Haru de volta para casa.

Você pode se lembrar dos personagens Barão e Muta do filme Sussurros do Coração, que já foi mencionado aqui no especial. Muitos consideram O Reino dos Gatos como uma espécie de spin-off dessa animação. Este longa é baseado em um mangá de Aoi Hiiragi, a mesma mangaká que escreveu o mangá que inspirou Sussurros do Coração.

Devido ao sucesso do personagem Barão no primeiro trabalho, ela decidiu criar a segunda história. A relação entre os dois filmes é o que deu origem ao título deste segundo filme em inglês, The Cat Returns (O Gato Retorna). No entanto, apesar dos personagens em comum, os dois filmes se passam em universos muito diferentes.

personagens femininas da Ghibli

Leia também:

>> O complexo universo feminino nas animações de Satoshi Kon

>> “Crianças Lobo” e as comuns peculiaridades da maternidade

>> As personagens femininas da Ghibli: Mononoke, Lady Ebochi, Anna, Umi e Sophie

Diferentemente de Sussurros do Coração, a personagem Haru é menos perspicaz e forte em comparação a Shizuku. Embora o enredo siga uma jornada de crescimento, semelhante às outras protagonistas mencionadas, esta trajetória carece dos detalhes “feministas” presentes em outras obras do estúdio.

Parece que o autor tenta forçar um pouco essa transformação, passando Haru de uma menina medrosa e insegura para uma garota independente. Os eventos fantásticos, comuns em outros filmes do estúdio, contribuem para fortalecer sua resolução, mas o roteiro deixa a desejar ao não explorar minuciosamente como sua identidade está sendo transformada por esses eventos.

Apesar de algumas críticas, o filme ainda é visto como uma história leve e divertida dentro do catálogo do estúdio Ghibli. No entanto, não é considerado uma referência forte e inteligente em termos de protagonismo feminino.

Satsuki e Mei, de “Meu Amigo Totoro” (Hayao Miyazaki, 1995)

personagens femininas da Ghibli

Meu Amigo Totoro” conta a história de duas irmãs, Satsuki e Mei, que moram com seu pai, um professor, enquanto sua mãe está doente e internada em um hospital. No início, a família se muda para uma cidade rural cercada pela natureza e passa a residir em uma tradicional casa japonesa.

Rapidamente, as meninas percebem que aquele lugar não é comum, pois está repleto de criaturas fantásticas. Um dia, enquanto exploram a floresta, Mei, a irmã mais nova, cai em um buraco e se depara com um enorme animal, que ela nomeia de Totoro, mas que é, na realidade, um espírito protetor da floresta.

Durante todo o filme, Totoro é visível apenas para as duas meninas, o que leva a questionamentos sobre se essas criaturas fantásticas são reais ou produtos da imaginação das crianças. Isso sugere que talvez a inocência e criatividade de uma criança sejam necessárias para vê-lo. Totoro se torna uma companhia para as meninas, trazendo conforto e servindo como uma distração enquanto lidam com a falta que sentem da mãe. Ele é como um elemento de interação entre as duas irmãs.

Com a capacidade de voar e um ônibus em forma de gato como companheiro, Totoro personifica a imaginação infantil. Em todo o contexto do filme, parece que a natureza, simbolizada por essa criatura, está protegendo e apoiando as meninas nos momentos mais difíceis de suas vidas.

Meu Amigo Totoro

O ponto alto do filme são as personagens que guiam o público por esse mundo único, fantástico e divertido, característico do diretor Hayao Miyazaki. É um mundo que, à primeira vista, parece desprovido de complexidades quando visto pelos olhos de duas crianças. O filme evoca lembranças da própria infância do público.

As meninas, que a princípio são retratadas como crianças comuns sem preocupações, se revelam personagens cheias de nuances e sentimentos complexos ao longo da história. Mesmo sendo um dos filmes mais voltados para o público infantil do estúdio, ele é como um suspiro de felicidade e inocência.

Em meio a um mundo onírico cheio de alegria, o filme também aborda o peso da situação da mãe das meninas estar internada e da mudança delas para uma cidade completamente nova. Enquanto a irmã mais nova expressa seus sentimentos e queixas em relação à falta que sente da mãe, a irmã mais velha assume o papel de suporte e responsabilidade, muitas vezes esquecendo de suas próprias fragilidades. Ela se coloca como a protetora da irmãzinha para que ela se sinta segura e protegida em sua companhia, quase forçando a si mesma a crescer para ajudar a irmã.

Meu Amigo Totoro

Com uma história emocionante e sensível, repleta de magia, imaginação e diversão, características típicas das brincadeiras infantis, mas também recheada de profundidade e dedicação, graças às duas garotinhas espertas, perspicazes e alegres, Meu Amigo Totoro merece seu posto como um dos filmes mais emblemáticos e conhecidos do estúdio Ghibli.

Conclusão

Conforme Miyazaki afirma, “elas precisam de um amigo ou um apoiador, mas nunca de um salvador.” O estúdio, mais uma vez, por meio dessas personagens, proporciona uma plataforma para o surgimento de heroínas inspiradoras.

Seja por meio de garotinhas que, juntas, precisam aprender a lidar com os desafios da vida, uma princesa que enfrenta o patriarcado imposto diretamente em sua vida, ou uma menina que descobre um mundo completamente novo com o apoio de seus amigos, o estúdio Ghibli tem o poder de criar histórias comoventes, cativantes e, acima de tudo, que apresentam traços realistas, mesmo tratando-se de personagens tão jovens que exploram mundos fantásticos.

Seja Kaguya, Haru, Satsuki ou Mei, devemos celebrar esses papéis que rompem fundamentalmente com o estereótipo feminino imposto sobre nós. Ao mesmo tempo, devemos usar essas histórias como referência em nossa luta por uma representação mais ampla das mulheres, que não se limite ao padrão que tentam nos impor. Como disse Rupi Kaur: “A representatividade é vital, pois sem ela, a borboleta, cercada por um grupo de mariposas e incapaz de ver a si mesma, continuará tentando ser uma mariposa.”

Escrito por:

21 Textos

Estudante de Direito, nordestina, pode falar sobre Studio Ghibli e feminismo por horas sem parar, amante de cinema e literatura (ainda mais se feito por mulheres), pesquisadora, acumuladora de livros e passa mais tempo criando listas inúteis do que gostaria.
Veja todos os textos
Follow Me :