O título da animação de 2012, disponível atualmente no catálogo da Netflix, nos engana. Pensamos, em um primeiro momento, se tratar de uma trama fantástica sobre a história de duas crianças metade humanas e metade lobo, mas, na verdade, a história transcende essa impressão inicial. Mais do que qualquer coisa, a trama de “Crianças Lobo” retrata parte da vida de Hana, uma mulher humana, e sua relação com seus filhos e com o mundo ao qual ambos também pertencem, isto é, o mundo dos lobos. Os pouco mais de 12 anos retratados na trama nos trazem uma visão pessoal sobre a vida da família híbrida, mas, especialmente sobre Hana.
Após a morte de seu companheiro, Hana é deixada completamente sozinha para cuidar de dois bebês. Uma tarefa, em condições comuns, já árdua, se intensifica pelo fato das crianças serem parte lobo e, assim, não poderem conviver normalmente com as demais pessoas, visto que suas partes lobo poderiam ser descobertas. A preocupação e receio de Hana se misturam ao trato diferenciado necessário aos filhos. Afinal, os males que recaem sobre as crianças são, assim como eles, mistos e precisam de cuidados diferenciados, seja em um pediatra ou em um veterinário.
Da mesma forma que na vida real, as escolhas de Hana como mãe são constante e infinitamente questionadas. A necessidade dela em deixar o trabalho para se dedicar às crianças, bem como sua escolha de não as matricular, inicialmente, na pré escola são muito questionadas, retratando as dúvidas tão presentes nas vidas das mães – sejam solo ou não.
Talvez o ato de invasão à maternidade mais assustador do desenho seja a atuação do Conselho Tutelar. Sob a alegação de que as crianças não haviam tomado suas vacinas, agentes do Conselho tentam invadir a residência de Hana, bem como ameaçam a retirada de seus filhos de sua guarda.
Não estamos, é claro, sugerindo um posicionamento anti-vax – movimento anti-vacina que ganhou força atualmente – mas a atuação do Estado retratada é, no mínimo, truculenta. A tentativa agressiva de invasão com base, na verdade, em uma suposição não tem nenhuma legitimidade, só servindo para assustar e afastar Hana. A exposição decorrente da vida na cidade é praticamente fatal à sobrevivência das crianças e, não a toa, Hana decide sair.
Assim como na visão de uma mãe, vemos em “Crianças Lobo” o crescimento das crianças ao longo desses 12 anos retratados, bem como seus amadurecimentos e desenvolvimentos de personalidades. Inicialmente, pensávamos que, em uma posterior escolha entre os mundos humano e animal, estava definido qual criança iria para qual. Yuki sempre foi agitada e arteira, parecendo estar muito a vontade com sua condição de loba, enquanto Ame apresentava-se como tímido e distante do mundo não-humano.
A mudança das personalidades das crianças, principalmente após o contato mais aprofundado com as pessoas e os animais, é incrível. Todas nossas suposições são postas a prova e desafiadas a todo instante, assim como na maternidade, trazendo um elemento ainda mais crível à trama conjunta dos estúdios Chizu e Madhouse.
Hana faz de tudo para adaptar seus filhos à vida que ela conhece, mas, mesmo assim, observa suas necessidades como lobos. Estuda a fundo sobre lobos e seu folclore, visto que o único que podia ajudá-la se foi. Muda-se para o campo para [as crianças] estarem, além de longe dos olhares curiosos da cidade, perto do campo e da floresta. Apesar da nobreza de tantos atos direcionados aos filhos, porém, a dedicação à maternidade por parte de Hana é, não vamos negar, exaustiva.
Escolhemos acreditar que “Crianças Lobo” é uma homenagem à maternidade por parte de seu diretor e escritores, mas o incômodo gerado pelo retrato trazido de Hana ainda existe. Ora, Hana é retratada de uma maneira comum às mocinhas asiáticas, isto é, excessivamente alegre e aparentemente incapaz de emoções mais profundas (até mesmo um de seus vizinhos a indaga pela constante alegria), de forma que seu desenvolvimento como pessoa nos parece incompleto.
É claro que, por já adentrar a trama como adulta, não esperávamos mudanças dramáticas em sua personalidade – diferentemente das crianças – mas a forma como é retratada é incrivelmente rasa. Hana nunca é retratada como uma pessoa por si só, sempre funcionando ou em função de seu companheiro ou das crianças – se não dos dois – sendo apenas uma dona de casa. Ressaltamos que a questão – ou a problemática – não é o fato de a mesma ser uma dona de casa nem de se dedicar exclusivamente às crianças, mas sim ter sua existência como pessoa apagada e constantemente negada.
A personagem abandona a faculdade e, mais tarde, se emprega em um trabalho qualquer sem nenhuma relação com algum interesse que possa ter. Na verdade, o equivoco nessa afirmação é claro: sequer sabemos algum interesse de Hana para alegarmos que o emprego não é de seu interesse. Tudo o que sabemos sobre Hana se resume a sua relação e interação com seus filhos.
Esse tratamento de mães – seja em mídias ou na vida real – é incrivelmente cansativo. A visão de mulheres apenas como mães (em potencial ou não) e não também como pessoas, vem se repetindo ao longo dos anos e limita seus respectivos reconhecimentos como não mais do que incubadoras. O estado de mãe é, com certeza, nobre, mas é uma das inúmeras características que uma mulher pode ter. Infelizmente, no caso de Hana, suas características como pessoa separada são majoritariamente desconhecidas.
A história trazida na trama é, sem dúvidas, emocionante, mas ainda carrega suas falhas. O tratamento dado à Hana é retrógrado e preguiçoso, sendo ambíguo seu papel essencial à trama em contraponto a sua representação. Quanto às crianças, algo tão mundano como o crescimento é apimentado pelo seu aspecto híbrido, trazendo uma discussão interessante sobre pertencimento e ancestralidade. É curioso ver as diferenças entre Yuki e Ame, sendo o ponto final e mais importante representado pelo crescimento súbito do mais novo, as quais são tão essenciais à trama quanto os próprios personagens.
A animação, por outro lado, não decepciona. Cada detalhe foi cuidadosamente pensado e excelentemente retratado na tela, sendo o esperado da parceria entre o diretor Mamoru Hosoda e o designer Yoshiyuki Sadamoto (responsável por “Neon Genesis Evangelion”). A trilha sonora, cortesia de Masakatsu Takagi, embala e costura toda a trama, primordial ao seu desenvolvimento tanto emocional quanto factual.
De todo, “Crianças Lobo” é, sim, um bom filme. A história da vivência de duas crianças metade lobo já seria, por si só, interessante, bem como a aparente escolha em ter a mãe como protagonista – mesmo que da forma que foi – é uma nova e interessante visão a ser trazida aos filmes. O filme é, não podemos esquecer, de 2012, e talvez se houvesse sido feito agora seria de uma forma distinta, mas já é um começo.