As personagens femininas da Ghibli: Mononoke, Lady Ebochi, Anna, Umi e Sophie

As personagens femininas da Ghibli: Mononoke, Lady Ebochi, Anna, Umi e Sophie

Como já vimos na primeira parte do Especial Ghibli, ainda que predominantemente dirigido por homens, há um espaço em seus roteiros e histórias para protagonistas mulheres, com que mulheres reais poderão se relacionar, o que normalmente a indústria cinematográfica não produz. Isto faz com que, na maioria das vezes, meninas cresçam e construam suas identidades a partir da incorporação de valores que reproduzem a condição de sujeitas subordinadas, reforçando uma ideia de falsa natureza de que são fracas, sensíveis e que não podem ser líderes. E assim, o estúdio Ghibli, ao longo de sua história, vem para questionar a forma como meninas e mulheres são retratadas no audiovisual. Desse modo, vamos conhecer as trajetórias de “Princesa Mononoke“, “As Memórias de Marnie“, “A colina Kokuriko” e “O Castelo Animado“.

 

San e Lady Eboshi, de “Princesa Mononoke” (Hayao Miyazaki, 1997)

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Princesa Mononoke” talvez seja a animação mais adulta e violenta de todo o estúdio, e talvez por isso se torne um dos mais extraordinários em termos de narrativa. Em um tom mais sombrio, o diretor Miyazaki conta a história de Ashitaka, o príncipe de um povoado que é atacado por um demônio que deixa um rastro negro por onde passa. Ao lutar contra essa criatura, ele é infectado por uma maldição mortal, e tem conhecimento de que irá morrer a qualquer momento, a menos que encontre a cura. Sendo esta a sua última esperança, segue para o leste procurando o único jeito de ser curado, o encontro com o Deus Cervo, protetor da floresta. Logo, o garoto parte em sua jornada e, durante o caminho, acaba descobrindo um novo povoado, mais moderno e estruturado que o seu, chamado de Ilha de Ferro. A ilha, sendo comandada pela Lady Eboshi, é chamada assim devido ao ferro que é produzido ali e que sustenta toda a comunidade.

Para que possam progredir com o seu sustento a partir da exploração do ferro, Lady Eboshi e a população da Ilha poluem e desmatam cada vez mais a natureza, assim, desagradando os Deuses da Floresta. Assim, estes organizam-se sobre a figura de San, a Princesa Mononoke, e formam, então, uma guerra entre os humanos e a natureza.

A Princesa Mononoke fora criada por lobos e fará qualquer coisa para impedir que os humanos acabem com a floresta, estabelecendo, desse modo, uma discussão competente, séria e obscura sobre a relação dos humanos com a natureza, e como o nosso “progresso” afeta diretamente o meio ambiente. No filme, ao invés de um clássico embate maniqueísta entre vilão e herói, há dois grupos organizados, de visões diferentes, não sendo um deles dotado de toda a sabedoria e luz e o outro dotado de mal. Estes estão brigando entre si, porém, com os dois lados da história sendo desenvolvidos e expostos ao público.

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A antagonista da história, Lady Eboshi, é extremamente engenhosa, hábil e forte. E isso desencadeia algumas considerações. Por exemplo, como as personagens femininas podem ser antagonistas sem aquela áurea de bruxa invejosa e má, mas que estas podem ser mulheres inteligentes, dotadas de ideologias e interesses, sendo grandes líderes. Tal fato quebra a perspectiva de que personagens coadjuvantes serão colocadas somente para fazer com que o protagonista tenha seu clímax.

Apesar de seus meios errados de abordar a natureza para alcançar o seu objetivo de dar conforto e uma vida melhor para o seu povo, a personagem tem diversas qualidades que a destaca. É perceptível isso através da maneira como ela é tratada e respeitada pelos habitantes da ilha. Tratando-se das mulheres do local, Eboshi trata elas com respeito e não as vê como inferiores aos homens, mas sim como igualmente importantes para a sociedade. No fim, tudo o que ela quer é o melhor para a sua sociedade, o problema está em como ela age para atingir seu objetivo.

“Princesa Mononoke” é um ótimo filme para discutir o equilíbrio através de líderes femininas inteligentes, complexas e admiradas, e propõe um questionamento sobre a sociedade e como a humanidade trata o meio ambiente, além das consequências diretas de tais ações humanas.

Anna, de “As Memórias de Marnie” (Hiromasa Yonebayashi, 2014)

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As Memórias de Marnie” conta a trajetória de Anna, uma menina órfã de 12 anos, tímida e introspectiva, que passa seus dias desenhando em seu caderno e vendo outras crianças brincando. Devido à uma crise de asma, a tia de Anna, sua tutora, decide enviá-la para a casa de parentes no interior, com a expectativa de que isso a ajude a melhorar, como também para que ela tenha a oportunidade de conhecer novas pessoas.

Ao longo da história, percebe-se que Anna tem um grande ressentimento por conta da perda de seus pais, chegando a falar que sabe que eles não morreram de propósito, mas que não os perdoa por terem a abandonado. Isso a afeta diretamente na sua relação com as pessoas ao seu redor, fazendo com que ela seja uma criança sem qualquer autoestima e que está sempre com o pensamento de que as pessoas a odeiam por ser “estúpida, feia e briguenta”. Vendo desse modo, a narrativa é bastante sensível ao retratar a perda dos pais, mas não somente isso, o filme aborda como essa idade é muito importante para que construamos nossas identidades, paixões e objetivos na vida.

Na tentativa de fugir de um festival com as pessoas da comunidade, a garota tropeça e cai em um pântano, em que faz vista a uma mansão. Em um primeiro momento, Anna percebe que o lugar está abandonado, entretanto, em uma segunda ocasião, a menina se depara com a mansão iluminada, bem cuidada e com pessoas dentro. A partir disso é que Anna e Marnie se encontram pela primeira vez.

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Marnie é uma garota tão solitária quanto ela e com quem cria um forte vínculo de amizade. E é graças a esta amizade que a protagonista começa a se libertar de seus problemas com a autoestima, permitindo-se novas relações e amizades com outras pessoas; como a pintora com quem se encontra quando sai para desenhar, e, também, a perceber como ela tem qualidades e que pode ser amada, não sendo sua culpa que sua família lhe abandonou. O crescimento da personagem principal é a parte mais importante do filme, e a amizade de Marnie mostra como é possível e importante a relação entre mulheres que se apoiam e possuem empatia consigo mesmas. É com esta sororidade, isto é, com este companheirismo feminino, que abandona-se o estereótipo da rivalidade entre mulheres. 

Umi, de “A Colina Kokuriko” (Gorō Miyazaki, 2011)

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O longa A Colina Kokurikose passa em 1963, em meio às preparações do Japão para os jogos olímpicos do ano seguinte. Umi, a personagem principal, é uma estudante do ensino médio que mora em uma cidade portuária. Toda manhã ela tem o hábito de erguer bandeiras, em respeito aos marinheiros daquele lugar e em respeito ao seu pai, antigo marinheiro que morreu na Guerra da Coreia. Sua mãe, professora universitária, está no exterior e a garota vive em uma casa com diversas tias e primas.

Shun é um garoto que estuda na mesma escola que ela, e ao passar de barco toda manhã em frente a casa dela, percebe as bandeiras que ela ergue todos os dias e acaba se apaixonando. Os dois se aproximam cada vez mais ao longo do filme, e seus sentimentos vão ficando mais fortes. Porém, os dois descobrem algo sobre o passado de suas famílias que pode atrapalhar o relacionamento.

Em meio ao drama romântico, há uma agitação dos alunos em relação a uma antiga casa de clubes da escola, em que estes se encontram para exercer atividades extracurriculares. Boa parte do corpo estudantil deseja a demolição daquele local, por o considerarem velho, estar sempre sujo e desorganizado, enquanto Shun e seus colegas advogam a permanência do lugar. Umi, desse modo, também se organiza e convence as meninas da escola a defenderem a permanência da casa.

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Apesar de ser um romance, nesse filme vemos que este – embora seja relevante para a história -, não faz parte de todo o roteiro. Em meio a paixão dos protagonistas, Umi passa a ser reconhecida como uma grande líder na escola, por ter organizado todas as meninas e meninos para reorganizar a antiga casa, sendo também responsável pelo convencimento do presidente para que este não destrua o espaço. Umi demonstra ter vontade de ser médica, assim como seu avô e sua tia, e isto leva também ao fato de que todas as mulheres do filme, apesar da época, estão insurgindo para serem grandes profissionais e atuarem diretamente em sua comunidade.

Sophie, de “O Castelo Animado” (Hayao Miyazaki, 2005)

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Baseado em um livro homônimo, “O Castelo Animado” retrata a personagem Sophie, uma chapeleira jovem e tímida, que mora em um reino onde, atualmente, se encontra em guerra com outro país. Nesse universo fantástico, um dia ela conhece um jovem feiticeiro que a acompanha até sua casa. Contudo, ela não sabe que o rapaz é o famoso Howl, um inimigo do governo que recusou a tomar parte na guerra.

Este encontro entre os dois personagens acaba chamando a atenção da Bruxa da Terra Abandonada, conhecida no reino por sua crueldade, com o objetivo de roubar o coração de Howl para se manter mais jovem e mais bonita. Ela aparece para Sophie uma noite, determinada por pensar que estes possuíam uma relação mais próxima. Após Sophie negar ajuda e pedir para que esta saia de sua casa, a Bruxa a transforma em uma idosa, com a condição de que ela não poderia falar sobre o feitiço com ninguém.

A protagonista decidida a buscar um certo tipo de ajuda, foge de sua casa, e enquanto caminha procurando um lugar para ficar, encontra um enorme castelo móvel. A senhora se estabelece ali, sem conhecer que aquele é o castelo de Howl. Quando o feiticeiro aparece, ela se apresenta como a nova faxineira do castelo, e passa a morar ali.

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Existem diversas interpretações para cada detalhe do filme, mas o que mais se destaca é a maneira como este dialoga sobre baixa autoestima e sobre a preocupação incessante com o mito da beleza. Diferentemente de sua mãe e irmã, que exibem uma beleza extravagante e que acolhem para si grande interesse por parte dos homens da história, Sophie é considerada “feia” ou apenas uma beleza regular, sendo invisível no seu trabalho e comunidade. Por conta disso, essa personagem acaba por ser muito passiva às coisas ao seu redor, contraindo a sua personalidade e não se valorizando como ela é.

Ao se tornar uma idosa, Sophie, a partir daí, passa a desenvolver a sua identidade, seus interesses e gostos por parar de se preocupar a todo momento com sua beleza. Ela para de se esconder e questiona, indiretamente, sobre o que é a “beleza”. E não somente Sophie, mas Howl e a Bruxa da Terra Abandonada também possuem uma relação abusiva em relação a beleza, demonstrando a preocupação excessiva da sociedade em uma coisa tão efêmera e passageira.

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Conclusão

Com o crescimento da representatividade de meninas e mulheres nas produções cinematográficas, é latente como a história das animações produzidas pelo estúdio Ghibli teve um papel essencial para que se revolucionasse a forma de como as identidades femininas passaram a ser construídas enquanto mulheres complexas, relevantes e inteligentes. Ainda que seja num mundo fantástico, visto em “O Castelo Animado“, ou num mundo real, visto em “A Colina Kokuriko“, personagens desde San até a Bruxa da Terra Abandonada foram importantes para que hoje se reivindique que meninas sejam bem representadas. Mesmo que em passos lentos, é relevante celebrar os ganhos, desse modo, nós só temos que agradecer ao estúdio Ghibli!

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Estudante de Direito, nordestina, pode falar sobre Studio Ghibli e feminismo por horas sem parar, amante de cinema e literatura (ainda mais se feito por mulheres), pesquisadora, acumuladora de livros e passa mais tempo criando listas inúteis do que gostaria.
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