Fly Away: representação feminina e o autismo

Fly Away: representação feminina e o autismo

O filme “Fly Away” é uma pequena produção que praticamente ninguém conhece. Com menos de 1h30, o longa vale por mil temporadas de séries como “Atypical“. A obra mostra o duro cotidiano de uma mãe solo e de sua filha adolescente Mandy, que sofre de um autismo severo. O filme é dirigido por Janet Grillo (“Huckabees – A Vida é uma Comédia”, “Jack of the Red Hearts”) e nos papéis, a atriz Beth Broderick (“Two Step”, “Sabrina, Aprendiz de Feiticeira”) interpreta a mãe, e Ashley Rickards (“Inatividade Paranormal 2”, “Gamer”) interpreta a filha. Fly Away” é uma história emocionante sobre relacionamento entre mãe e filha, abandono parental, esgotamento nevoso e a dificuldade da sociedade de lidar com pessoas autistas.

Representação feminina e o autismo

Fly Away
Cena de “Fly Away”

Muitas de nós, talvez, nunca paramos para refletir que é extremamente raro vermos uma personagem feminina com autismo em séries ou filmes. Não que a representação masculina seja algo comum nos últimos tempos, mas o autismo costuma ser representado com frequência a partir de jovens garotos brancos. Podemos citar além de “Atypical“, a excelente “The Good Doctor”, com Freddie Highmore, e “The A Word”, da BBC.

Durante muito tempo o autismo era considerado um distúrbio “masculino”, mas pesquisas recentes sugerem que os critérios dos diagnósticos atuais deixam passar muitas mulheres que manifestam o distúrbio de maneira diferente dos categorizados, portanto, muitas acabam sendo subdiagnosticadas e só mais tarde que recebem o diagnóstico correto. Nesse sentido, diversas mulheres com asperger ou autismo, por exemplo, que buscam representações de si mesmas no entretenimento, geralmente acabam se sentindo frustradas.

Se olharmos com uma lupa, encontramos pouquíssimos exemplos de personagens femininas que parecem ter o Transtorno do Espectro Autista, mas que raramente tem essa questão explorada na obra. Podemos nos lembrar de Lisbeth Salander, heroína de “Millennium“, e a Dra. Temperance “Bones” Brennan, a personagem principal da série “Bones”. É importante frisar que nenhuma dessas representações citadas anteriormente dizem a respeito de personagens com autismo de baixo funcionamento, provavelmente os produtores preferem permanecer numa zona de conforto, pois dificilmente escolhem retratar um personagem com autismo severo, por medo, talvez, de causar certo desconforto ao público. Por isso, o longa-metragem “Fly Away” chama atenção, pois a protagonista da história é uma menina autista.

O filme

Fly Away

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The A Word” é muito ousada nesse ponto, pois sua sensibilidade assemelha-se com a proposta de “Fly Away”. Mas diferente da série, o filme aborda a vida de uma menina com autismo severo, que aos 15 anos de idade tem uma linguagem atrasada. O seu desenvolvimento socioambiental também é bastante comprometido e ela tem terrores noturnos e mudanças extremas de humor. O trabalho da atriz Ashley Rickards é fenomenal, não há dúvidas em nenhum momento que ela não tenha autismo. Contudo, o filme não explora exclusivamente a jornada da protagonista, as câmeras também são viradas para sua mãe.

Para Jeanne (Beth Broderick), mãe de Mandy, cada dia é uma luta cansativa. Em nenhum momento do filme seu amor pela filha é questionável, mas podemos notar o quanto ela está esgotada fisicamente e emocionalmente. Sua capacidade de trabalhar como consultora de negócios freelancer está extremamente comprometida, além da sua dificuldade de construir relacionamentos amorosos por causa da dinâmica com a filha. Fica nítido, em uma passagem do filme, que Jeanne está sacrificando tudo pela sua filha e, por isso, acaba sofrendo pressão de todos os lados.

Já seu ex-marido (JR Bourne), claramente é um pai ausente. Ele não foi totalmente embora da vida das duas. Faz uma ou outra visita e tenta levar Mandy para passear algumas vezes. Em um desses passeios a menina sofre um ataque e a primeira coisa que ele faz é chamar Jeanne. Posteriormente, o pai pressiona a mãe para resolver o “problema” através da internação; e nisso ele se assemelha com a diretora da escola de Mandy, que não consegue lidar com as manifestações corriqueiras da garota, pressionando ainda mais Jeanne para que ela considere a internação de Mandy. 

Fly Away

Em todo momento do filme existe uma dicotomia entre a sociedade e Jeanne. O mundo vê Mandy como um problema a ser resolvido, Jeanne enxerga a filha como uma pessoa. A crueldade e falta de empatia da sociedade é retratada em vários momentos do longa. Em uma das cenas, uma senhora pede que Jeanne controle sua filha, pois ela está fazendo barulho. Já em outra cena, a colega de trabalho de Jeanne insiste que ela cumpra os prazos mesmo sabendo de suas dificuldades.

Sem exageros, a roteirista e diretora Janet Grillo faz quase um estudo antropológico sobre o autismo e suas consequências familiares. Ao longo de “Fly Away” percebemos que Mandy, mesmo com o crescimento de suas habilidades sociais comprometidas e o seu interesse pelo sexo oposto, o comportamento agressivo está cada vez mais corriqueiro, o que torna-se cada vez mais difícil para que Jeanne administre a situação. O filme é muito realista nesse ponto, pois não é somente com amor e sacrifício materno que a situação será controlada. Portanto, não é culpa de Jeanne, pois está claro que sua filha precisa de ajuda especializada. Mas por que toda a carga emocional e responsabilidade é refletida e cobrada apenas pela mãe? Onde está a responsabilidade da sociedade e do pai da garota? Por isso “Fly Away” é tão necessário e merece ser visto.

“Fly Away” foi o primeiro filme da diretora Janet Grillo. Em seu segundo filme, de 2015, chamado “Jack of the Red Hearts”, ela retorna com o tema do autismo, mostrado através da relação de uma jovem delinquente que engana uma mãe desesperada para contratá-la como babá de sua filha autista. Contudo, no decorrer da obra, ela acaba criando uma relação de carinho com a menina.

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Graduada em Ciências Sociais. Cineasta amadora. Viciada em livros, séries e K-dramas. Mediadora do Leia Mulheres de Niterói (RJ).
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