GLOW: o tabu da discussão sobre o aborto

GLOW: o tabu da discussão sobre o aborto

GLOW chama a atenção, visualmente, pelo excesso de brilho. Quem olha essa imagem, pode pensar que nada tem a oferecer de substancial. Quem assiste, constata que o pensamento anterior é apenas um julgamento com base em estereótipos. A série criada por Liz Flahive e Carly Mensch e produzida pela Netflix, conquista pelo enredo levemente cômico. Conquista mais, porém, pelas problematizações que sutilmente levanta, através de mulheres em uma série de luta livre. [Contém spoilers]

Entre questões de gênero e de autoestima, o aborto aparece timidamente. Parece que será pouco abordado. Revela-se uma faceta da discussão logo no segundo episódio. O tema é guardado para até que seja oportuno discuti-lo com seriedade. No oitavo episódio, o momento aparece. O que fora discutido sob a forma de piada em um prelúdio, agora se discute como reflexão acerca de uma opção. A biologia, o sentimento e a percepção cultural feminina são elementos que se inserem nessa perspectiva.

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O aborto espontâneo e a frustração à maternidade

Aborto e maternidade são conceitos que se acompanham. De um lado, a ideia de que toda mulher possui o “dom” da maternidade. De outro, a forma que se coloca como impedimento à concretização desse destino. Em uma realidade que impõe a maternidade à mulher, o aborto é visto sob duas óticas.

No segundo episódio da série, o aborto é abordado pelo viés natural. Em GLOW, atrizes desconhecidas interpretam lutadoras em falsas lutas. Para tanto, precisam treinar. E em um dos treinamentos, a personagem Melanie (Jackie) finge um aborto para ferir Cherry (Sydelle Noel).

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Cherry (Sydelle Noel) e Keith (Bashir Salahuddin)

Cherry é a mulher negra que precisou passar a imagem de força para alcançar suas metas diante do preconceito. Quando o papel de liderança do grupo lhe é conferido, uma mágoa do passado é utilizada contra ela. No início do episódio, Cherry tem uma conversa com o diretor Sam (Marc Maron) sobre a direção da série fictícia. Durante o diálogo, Sam menciona não falar com Cherry e seu marido, Keith (Bashir Salahuddin) desde o que ele denomina “gafe do útero”.

Embora Cherry tenha dito estar bem com o aborto espontâneo, sua reação revela uma realidade diferente. A recusa de Sam em falar “aborto” e a brincadeira de Melanie, demonstram que houve uma frustração aos desejos de Cherry. Isto é compreensível. Mulheres podem desejar ser mães e se sentirem frustradas quando a natureza biológica interfere no anseio.

Aborto: a punição da liberdade

Nem toda mulher, contudo, possui esse desejo. E isto também deveria ser aceitável. O que ocorre é que a sociedade pune as mulheres que não acordam com a imposição cultural. Não ter filhos, somente é aceitável quando a escolha de não os ter está além da mulher. Os direitos sobre o corpo são retirados daquela que carrega algo que pode vir a constituir um ser humano com vida. Espera-se, assim, que todas as mulheres sigam o padrão da personagem Debbie (Betty Gilpin): bela e mãe.

Ruth (Alison Brie) não poderia se opor ainda mais a Debbie. O antagonismo entre elas é caracterizado por contrastes. Debbie largou a promissora carreira pelo casamento e ainda não era divorciada quando engravidou. Ruth, não bastasse não ser tão bela quanto, envolveu-se, apenas sexualmente, com o marido da melhor amiga, engravidou dele e colocou sua profissão antes da maternidade.

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Ruth (Alison Brie)

Não é o momento certo. Não é o bebê certo“, Ruth responde quando perguntada se o aborto é o que ela deseja. Ruth nunca critica a escolha daquelas que optam por ser mães. Tampouco nega que um dia queira ser. Ela apenas compreende que aquela gravidez não é desejável para ela. Dispõe, portanto, do seu corpo da forma como deseja, amparada por um sistema que não nega seus direitos sobre ele. E não sem reflexão. Sua decisão não é insensível.

Ainda assim, o julgamento acompanha a liberdade de dispor sobre seu corpo. Ruth pede para Sam acompanhá-la no procedimento, parcialmente mostrado. Para diminuir o julgamento, ele tem que afirmar ser seu marido e justificar que o feto é indesejado, por ser proveniente de um descuido do casal. Destarte, mesmo quando legalizado, o aborto é condicionado pela figura masculina. Uma mulher será menos julgada se houver um marido e ele concordar com a decisão.

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Aborto versus abandono

No mundo real, homens protagonizam uma escolha que deveria ser feminina. Enquanto o corpo pertence às mulheres, também deveria pertencer a elas a escolha de manter ou não uma gravidez. Ocorre que a maior parte dos indivíduos em posições políticas são homens. E a maioria nega o direito das mulheres.

Os mesmos homens que decidem pela criminalização do aborto, omitem-se quanto à figura paterna. Enquanto isso, pais abandonam filhos aos cuidados majoritários das mães, por entenderem que a criação é papel da mulher. E, não, eles não abortam. Abortar significa impedir que um feto venha a constituir um ser humano. Abandonar significa negligenciar os cuidados com um ser humano, o que pode ter consequências de diferentes níveis.

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Justine (Britt Baron)

Em GLOW, essa realidade é mostrada. Justine (Britt Baron) junta-se à equipe da série fictícia para buscar o pai que nunca conheceu. Criada por uma mãe solteira, achava que o pai poderia fazer parte de sua vida. E encontrou um homem que não sentia remorso de não estar presente, embora estivesse disposto a aceitá-la.

O aborto divide cenário com uma série de abandonos. Mães são abandonadas por homens no papel de criação. Infantes são abandonados por pais no mesmo processo. Mulheres são abandonadas pela lei no exercício de direitos que deveriam ser preservados: o direito sobre seus corpos.

Na tentativa de exercê-lo, muitas apelam à clandestinidade e morrem. O aborto não é uma medida que, factualmente, só é possível após autorização. Assim como possui a perspectiva espontânea e a perspectiva induzida, possui a perspectiva legal. Esta última pretende se impor à forma induzida. Todavia, a indução pode ser feita a qualquer momento. Factualmente, a mulher dispõe como quer sobre seu corpo, ainda que não legalmente. Criminalizar o aborto, portanto, não resolve problemas; ignora alguns e cria alguns mais.


28 de setembro é o dia de Luta pela Descriminalização do Aborto na América Latina e no Caribe e o presente que o legislativo brasileiro quer dar às mulheres neste mês é a proibição do aborto até mesmo nos casos já permitidos em lei. No mesmo dia também é lembrada a Lei do Ventre Livre, que foi promulgada no dia 28 de setembro em 1871, e considerava livres todos os filhos de mulheres negras escravizadas no Brasil.

Visando ocupar as redes sociais para ampliar e aprofundar o debate, além de incentivar a mobilização feminista para atos de ruas em resposta ao ultraconservadorismo, durante todo o dia 27 de setembro ocorrerá a II Virada Feminista Online #PrecisamosFalarSobreAborto. Você pode acompanhar toda a programação neste link, onde ocorrerá, inclusive, transmissões ao vivo com convidadas de outros países. 

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Mestra em Teoria e História do Direito e redatora de conteúdo jurídico. Escritora de gaveta. Feminista. Sarcástica por natureza. Crítica por educação. Amante de livros, filmes, séries e tudo o que possa ser convertido em uma grande análise e reflexão.
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