Uma das tarefas mais difíceis a serem encaradas por um cineasta é ser contundente e despretensioso a um só tempo. Construir uma narrativa que pareça completamente acessível, convidativa a um profundo mergulho, e que ainda assim seja capaz de traçar um retrato crítico e duro de uma realidade social, ou falar com propriedade de um dado aspecto da condição humana. Pois Sean Baker é inteiramente bem-sucedido nessa intricada tarefa com seu mais novo filme, a pérola Projeto Flórida (The Florida Project), que faz parte da programação deste ano do Festival do Rio. Baker já havia sido aclamado anteriormente no festival: em 2015, o filme “Tangerina” recebeu o Prêmio Félix, dedicado a títulos de temática LGBT.
Projeto Flórida narra o cotidiano de Moonee (Brooklynn Prince), uma esperta garotinha de 6 anos, e sua mãe Halley (Bria Vinaite), que dividem um quarto numa espécie de motel-residência, localizado nas proximidades da Disney World, na Flórida. Nessa espécie de não-lugar, esquecido ao lado de um dos pontos turísticos mais visitados do planeta, o parque-símbolo da histeria do ideal capitalista daquilo que seria a perfeita felicidade da infância, Moonee vive um dia a dia sem qualquer estrutura familiar ou amparo por parte do Estado, mas com uma intensa liberdade de descobrimentos que justifica sua postura bastante madura com relação ao mundo exterior.
Essa liberdade é também (e eis a beleza do filme) a total falta de proteção, e mesmo numa narrativa de pendor cômico, a tensão permanente do abandono da protagonista e dos seus amiguinhos de mesma idade toca o espectador como um pressentimento atroz. Não vemos escola ou qualquer outra forma de presença institucional, salvo uma ação de caridade, que doa pães para os moradores do local. Assim, a garotinha tem apenas a sua mãe, bastante jovem, possivelmente recém-saída da adolescência e completamente inapta para cuidar de uma criança. A infantilidade de Halley acaba sendo o campo comum em que mãe e filha se afinam, com ambas as atrizes em atuações excelentes e que primam pela espontaneidade, com destaque para Brooklynn Prince, numa das melhores e mais multifacetadas interpretações de uma criança nos últimos anos.
Um outro ponto interessante em Projeto Flórida é que a narrativa jamais se preocupa em explicar a ausência dos pais – não só o de Moonee, mas de dois de seus fiéis escudeiros. O afastamento dessas figuras é tratado com absoluta naturalidade pelos personagens, o que em si já ajuda a delinear o contexto em que eles se encontram. Trata-se de uma escolha potente: ao simplesmente não falar sobre essas figuras, o filme consegue estabelecer uma crítica ao abandono paterno ao refletir essa desaparição no bojo da estrutura narrativa. De fato, a história se atém mais fortemente à perspectiva das mulheres.
Os dois personagens masculinos de destaque são o menininho Scooty e Bobby, o gerente do estabelecimento em que as protagonistas vivem, esse último belamente interpretado por Willem Dafoe, num papel em que ele é pouquíssimo visto: o de homem comum – decente, comprometido, empático, mas longe de possuir características extraordinárias que o apartem do ambiente duro em que se desenrola a trama.
A fotografia fluida, que prima pelo plano próximo e por movimentos de câmera que aos poucos vão construindo uma intensa familiaridade com o ambiente do motel e seus entornos, amplia a sensação de apartamento e de convivência obrigatória entre os tipos humanos distintos que habitam essa espécie de cortiço (os atores coadjuvantes estão todos ótimos). Numa sequência-chave, as três crianças adentram um condomínio de casas abandonadas da região, e vemos esses espaços representarem perfeitamente a dimensão do desamparo que eles experimentam diariamente, assim como seu desejo e sua coragem de explorar o mundo (quase que) inteiramente sós.
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À medida que a trama se desenrola, a tensão pressentida desde as primeiras sequências vai aos poucos emergindo de forma paulatina e inteligente, com Halley progressivamente se isolando e precisando recorrer a toda sorte de artimanhas e percalços para conseguir o sustento da filha, até culminar num desfecho brutal, mas que cede espaço para esperança e mantém um quê de fábula, aspecto não de todo ausente do filme, que trabalha com essas ambiguidades, sempre caminhando entre a doçura e dureza.
Riquíssimo em sua construção, Projeto Flórida é um vigoroso ensaio social, um belo filme de formação, uma aula de direção de atores. E ele é tudo isso sem pretensão ou rigidez de discurso. É o filme pelo qual um bom cinéfilo vai aos festivais, essa pequena pérola que esperamos encontrar nas nossas melhores explorações.