Lívia Cruz e Meire D’Origem: um papo reto sobre misoginia, empoderamento e legado na cena do rap nacional

Lívia Cruz e Meire D’Origem: um papo reto sobre misoginia, empoderamento e legado na cena do rap nacional

Uma é nordestina, a outra é negra. Mulheres que enfrentaram e enfrentam preconceitos, machismos e muito desaforo de quem ainda torce o nariz quando ouve uma voz feminina no comando das rimas. Vindas de regiões diferentes, as rappers Lívia Cruz e Meire D’Origem sabem muito bem que “rap é compromisso” e estão fazendo essas e as próximas gerações respeitarem as mulheres dentro e fora das batalhas.

Nascida em Recife, Lívia Cruz está no corre do hip hop há mais de 10 anos. Com uma carreira de respeito, é dona de sucessos afiados como “Eu tava lá”, “Ordem na Classe” e “#TAMOTRANSANDODEFATO”, em parceria com o rapper Djonga. Autêntica, ela também mantém um canal no youtube, contando com uma série de entrevistas denominada “Teste do Sofá”.

Dando voz às mulheres de periferia da região do Vale do Paraíba Paulista, Meire D’Origem mostra que não está para brincadeira. Ao lado da rapper Preta Ary, é uma das idealizadoras do grupo D’Origem. Além disso, a paulista participa da Frente Nacional de Mulheres no Hip Hop e do coletivo “Na Caneta ou no Batom”, primeira batalha feminina da região do Vale Paulista.  

Para além do rap, o que liga Lívia Cruz e Meire D’Origem é a vontade de transformar a força feminina em transformação. Durante a primeira semana de Outubro, as duas decidiram unir suas vozes em uma rápida tour pelo sul do país. Nós do Delirium Nerd estávamos lá e conversamos com as duas sobre representatividade, empoderamento feminino, misoginia e os desafios que as mulheres que encaram o corre no rap nacional enfrentam. Confere aí: 

DN: Meire, essa pergunta é para ti. Já nos trabalhos do D’Origem e agora nesse trabalho solo, dá para perceber que além de falar sobre várias pautas da mulheres, tu falas sobre a questão da mulher negra. Isso está na tua estética, nas tuas rimas, na tua postura. Por que tu achas que é importante falar sobre a vivência de mulher negra no hip hop?

Meire: Justamente pelo hip hop ser uma cultura de periferia que a gente tem que ter um recorte étnico racial, porque, obviamente, a grande parte da população de periferia se consiste em pessoas negras. Logo, o hip hop é um ritmo, teoricamente, com a sua maioria de pessoas negras. Mas, mesmo assim, a gente sabe que às vezes as coisas não acontecem como elas deveriam acontecer. A gente tem que se autoafirmar a todo o momento, isso é muito importante.

E sobre a invisibilidade da mulher, independente de cor e independente da etnia, é algo não acontece só no rap ou só no hip hop. Acontece no mundo, e no hip hop não seria diferente. O recorte de etnia é muito importante não só por essa questão [da invisibilidade], mas porque são muitos os assuntos e problemáticas que a mulher negra enfrenta. É só pegar o recorte do feminismo negro. E sobre isso que nós do D’Origem quisemos discutir, inclusive com a nossa música chamada ‘D’Origem Aficana’, que deu início a tudo. A gente quis pegar esse recorte de autoafirmação e da visibilidade mesmo. Trazer esse poder e esse espaço de fala para nos sentirmos mais aceitas, para que as pretinhas de periferia se sintam mais aceitas, para que elas saibam que existem caminhos. O hip hop pode ser um deles.    

Lívia Cruz
Foto: Maria Eduarda Nectoux/Madu Fotografia

DN: Lívia, também dá para perceber o quanto tu falas de si e sobre as tuas vivências nas tuas rimas, sempre com muita autenticidade. Tu és uma mulher que fala sobre misoginia no hip hop, sobre empoderamento, sobre sexualidade. É um processo difícil para ti emprestar tanto da tua intimidade para os teus versos?

Lívia Cruz: É complexo, mas é natural. Às vezes a gente não sabe a proporção que isso vai levar, de como as pessoas vão interpretar. O que eu quero transmitir nem sempre é o que você vai entender. E essas diferenças, às vezes, são difíceis de lidar. Mas é super natural, esse é o meu jeito de escrever. Eu acho que, tipo, se eu for resumir em um estilo [de compor], seria contar histórias. É mais fácil eu contar a história do ponto de vista do que eu vi. Eu já tentei escrever histórias em terceira pessoa, me inspirar na vida de outras pessoas ou escrever sobre histórias que eu conheço. Mas o que sai mais naturalmente são as minhas mesmos. O que é legal da música que a gente faz e da minha história é que a minha história, ela é muito a história da Meire, e pode ser a sua, entendeu? Às vezes a gente recebe muitas críticas do tipo ‘ah, as mulheres só falam do mesmo tema’. Não. Na verdade, esse público de meninos, de garotos que declaram isso, são aqueles que simplesmente não querem nos ouvir. É uma questão estrutural que vai se reproduzindo através de várias formas. Mas, assim, o que eu acho muito legal quando eu encontro com outras mulheres é que a minha história também é a delas. E isso precisa de um registro, precisa ser ouvido. Se não vai ser de imediato, se não vai ser por tais e tais pessoas…. eu tenho que entender a importância  e aprender a lidar com isso. Como você falou, o meu desprendimento na verdade é  a minha conexão com as outras pessoas. E antes de você falar com a Meire, sobre sermos mulheres, acima de tudo, a gente é ser humano. A gente, para além dos direitos trabalhistas, de reconhecimento histórico, e de tantas outras pautas que a gente pode estar lutando, eu acho que o fundamento básico da nossa luta é de ser reconhecido como ser humano.

Meire: Isso tudo é a representatividade. Quando uma outra mulher se identifica com a nossa história, com o que as nossas histórias contam, é porque ela está se sentindo representada. É porque está se vendo e é muito importante a gente se ver. Antes, nós não nos víamos nos palcos, nas tevês, na grande mídia. Hoje, a gente pode se ver. Então, de repente, é por isso que esse público acaba ficando tão próximo assim, tão ligadas e conectadas, porque é uma história só. E isso é muito louco.

DN: E falando sobre representatividade, assistimos ao ‘Teste do Sofá’ que vocês fizeram juntas, conversando sobre isso. Tem um momento em que tu, Lívia, falas sobre o quão foi importante para ti ver mulheres no palco.  E agora que vocês são essas mulheres no palco, o que muda? Como vocês se sentem?

Lívia Cruz: Eu acho muito legal. No caso da gente como artista, a gente pensa ‘nossa, também posso estar lá’ no mesmo espaço. Mas eu acho que, para além disso, quando as outras meninas nos veem, elas se sentem capazes de fazer tudo. Porque a gente consegue estar ali, num ambiente hostil. E não é hostil porque a gente sabe que é hostil- qualquer pessoa que tenha o mínimo de sensibilidade e de senso crítico vai saber que o que a gente faz ainda é tratado com hostilidade, ainda é visto como menos. E eu recebo esse feedback positivo de crianças, de meninas, de adolescentes. Elas se sentem capazes de tudo. Isso é a melhor coisa que existe, não tem dinheiro que pague.

Meire: A música, a arte, elas curam, transformam e capacitam. Eu sempre faço essa comparação: quando você vai a um restaurante, um lugar que te agrada e que agrada o seu paladar, você quer que todo o mundo saiba. Você sai de lá falando ‘nossa, comi uma comida maravilhosa então lugar! Vai lá!’ E é mais ou menos isso. [O rap] Serviu tanto para a gente, foi tão importante para a nossa formação enquanto ser humano, que a gente quer passar isso para as outras pessoas. E é muito louco isso que você falou, as pessoas dão esse feedback para a gente, do tipo ‘pô, eu escuto a sua música’ ou ‘[a música] foi importante para mim em tal momento’. Cara, isso é uma responsabilidade! É por isso que as pessoas, de um modo geral, os manos e muitas minas também, precisam entender a importância do que a gente está fazendo aqui. Porque a gente está fazendo rap, a gente está fazendo música, mas a gente está fazendo revolução, transformação. Vai além da música, vai além do rap – é tocar corações mesmo, é mais do que tocar na balada. Então, é preciso ser compreendido dessa forma mesmo. É um legado.

DN: Outra coisa que eu percebo que é muito forte no discurso de vocês é que além do surgimento de minas no rap, vocês realçam a importância de que elas se reúnam, que elas estejam juntas. Mas a gente sabe que o hip hop, além de ser um cenário muitas vezes hostil para as mulheres, incita essa rivalidade (pelas batalhas de rimas, por exemplo).

Meire: O mundo incita essa rivalidade. É histórico. Nós fomos lapidadas e forjadas para sermos rivais, historicamente falando. Se a gente for estudar e pesquisar, é isso. Porque o que acontece, você pode ver que até hoje isso não está só dentro do rap, não só no hip hop. Isso é no mundo, é geral. E a gente tá pregando isso dentro do hip hop, mas para fora dele, entendeu? Que juntas, a gente é mais forte. Mas isso é uma coisa difícil, porque é difícil você desconstruir para construir algo novo. Mas esse é o nosso papel. Desconstruir tudo isso que foi colocado para a gente, toda essa mentira que foi plantada para a gente, de que a gente é rival. A gente não é rival. Quem falou?

Lívia Cruz: Então, sobre isso que a Meire tá falando, concordo total, nós estamos falando isso de dentro do hip hop para fora. E a questão das mulheres estarem juntas é importante até para a nossa segurança e para sermos credibilizadas. Por muitas vezes, a gente passa situações de risco de vida. Uma das pautas mais importantes nossas é essa violência desenfreada que a gente vive só por ser mulher. E pelo fato da gente estar isolada, sozinha, essa credibilidade não vem. Então, é importante que a gente esteja junto tanto nessas questões extremas [de violência], quanto dentro de um mercado, de uma cultura. Se as minas não se tocarem – oi migas – que a gente tem que colaborar, nenhuma de nós vai. Se não for todo mundo, nenhuma de nós vai. Porque vai ser sempre assim. Se for uma sozinha, ela vai ser atacada até ser tirada, tá ligado? Se a gente não se juntar, se a gente não for de bloco, vai ser sempre assim. E, infelizmente, ainda tá faltando esse entendimento.  

Lívia Cruz
Maria Eduarda Nectoux/ Madu Fotografia

DN: Existe uma certa polêmica: quando o assunto é arte, tem gente que defende que nós temos que separar o artista da sua obra. Por exemplo, o artista pode ter algumas rimas machistas ou ele pode ter condutas machistas, até relatos de abuso, agressão, mas a gente continua consumindo a obra dele. O que vocês pensam disso? Dá para separar o artista e a sua obra?

Lívia Cruz: Eu acho que quando o cara é machista na arte, ele também é na vida real. Não tem como não ser. Quando ele não é na arte, mas é na vida real, a gente tem que tomar cuidado com uma coisa: nem tudo que está no Facebook é verdade, para começar. Não é porque falou que fulano de tal fez tal coisa, que ele fez. Mas, comprovadamente, situações que ocorreram mais de uma vez, se a pessoa tem um histórico comprovado de violência, por exemplo. Porque existem várias situações, não são só artistas que estão sujeitos a esse tipo de atitude. Contratantes também assediam, fotógrafos, repórteres, vários profissionais. Então, se a pessoa tem comprovadamente um histórico, para mim, não cabe separar. Porque as pessoas têm que se responsabilizar pelas suas atitudes de violência. Aliás, não se responsabilizar, porque obviamente elas não se responsabilizam, mas elas tem que ser socialmente responsabilizadas. Porque senão, não vai parar. Enquanto a gente continuar justificando essas atitudes de violência como coisas naturais, elas vão continuar acontecendo. Então, para mim não ‘vira’ esse negócio de separar.

Meire: Como que a gente pode levar isso numa nice, levar numa boa? Você falou da obra… quando um artista coloca na letra dele algo desse teor, ele tem que entender que ele está incitando outras pessoas. Por exemplo, um artista é referência, tanto no rap ou fora dele: existe uma legião de pessoas seguindo junto. Fãs, que estão até imitando a postura, o jeito como ele fala. Por isso, não tem como separar.

Lívia Cruz: Ele está naturalizando esse comportamento! Quando um cara, um hater, vem me atacar ou me xingar, esses moleques usam as mesmas frases que o cara da música usou. Então, eles estão incitando essa molecada a continuar com essa.

Meire: E aí todo esse trampo que a gente está fazendo, de base, cai por terra. Porque a gente vem e fala ‘não’ ao machismo, ‘não’ à homofobia, ‘não’ a uma série de coisas. Pedimos respeito e eles vêm dizer “ah, é normal falar do corpo, é normal falar da roupa”. Não é normal. Então, como é que a gente vai separar?

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DN: E por fim, já que a gente falou tanto sobre empoderamento feminino no hip hop, quero saber de vocês: como o rap empoderou vocês?

Meire: Ai… eu nem sei se eu tenho palavras! Ontem, quando a gente estava vindo, eu tava pensando justamente sobre isso, até cheguei a comentar. De repente, se não fosse o rap, provavelmente eu não estaria aqui.

Lívia Cruz: Miga, você não me lembrou! A gente ia falar o quê? Que a gente poderia estar matando, roubando, filmando, tirando print, mostrando na internet, fazendo essas coisas feias.

Meire: E a gente está aqui, né? A gente estava falando da questão do empoderamento, principalmente para as minas pretas, como é o meu caso. Eu, uma menina crescida na periferia, uma pretinha de periferia, canela russa, cercada por diversas situações, morando em favela, poderia estar roubando, matando e outras cositas mais se não fosse o rap. Então, vai além do empoderamento, é a questão de vida mesmo. Questão de transformação, questão de dar vida. Eu existo, eu sou uma pessoa até o hip hop. A partir do hip hop, eu sou uma outra pessoa. Eu renasci dentro do hip hop. É como eu te disse, quando a gente fica forte e gosta de algo, a gente quer passar adiante.

Lívia Cruz: Eu concordo com tudo isso que a Meire falou, mas tem um pouco mais. Acho que a questão de empoderar através do rap, do hip hop, não é só um bagulho das mulheres, né? O hip hop, eu acho que por essência, independente de vertente ou corrente de pensamentos, é um movimento de identidade, de afirmação de identidade. Isso é a primeira coisa. Segundo, ter lugar no mundo é ter voz. Se expressar. O grafite é a forma plástica disso, o breakdance, o dj, tudo é identidade. É como me perguntaram uma vez,  “ah, o que o feminismo tem a ver com isso?’’ Feminismo é sobre isso, é sobre ter dignidade. É você se sentir digna, respeitada. Então, feminismo tem tudo a ver com hip hop. Vocês tudo deviam ser feministas. 

Lívia Cruz
Foto: Maria Eduarda Nectoux/Madu Fotografia

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Estudante de jornalismo que ama milkshake, comidas veganas e poesia na mesma intensidade que não suporta desfazer malas ou arrumar o quarto. Vivendo sempre em um ritmo frenético, só a música consegue se fazer presente em todos os momentos. Ouve de tudo toda a hora e já fez playlist até para tomar banho.
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