Tomb Raider – A Origem: reimaginando Lara Croft

Tomb Raider – A Origem: reimaginando Lara Croft

Em 2013, o famoso jogo Tomb Raider foi reformulado, trazendo uma versão atualizada da “arqueóloga” inglesa Lara Croft: menos sexualizada, com roupa apropriada para os ambientes que percorre, e com mais desenvolvimento de sua história e personalidade. Com a boa recepção que essa versão recebeu (intitulada Tomb Raider Definitive Edition), não demoraria muito até os estúdios de Hollywood botarem no forno um reboot da franquia para a tela grande.

O filme segue um enredo que mistura elementos diretos da versão de 2013 do jogo com outros detalhes conhecidos da biografia da heroína, como a perda de seu pai, também arqueólogo.

No Tomb Raider Definitive Edition, Lara é estudante de graduação em arqueologia e parte com outros pesquisadores numa expedição para o Pacífico. Após uma tempestade, eles acabam naufragando perto da ilha Yamatai na costa japonesa, e Lara tem de comer o pão que o diabo amassou para sobreviver todos os tipos de perigos na ilha. É a história de origem que mostra como Lara se tornou a aventureira que é. Mas o jogo reformulou também o gameplay, com menos acrobacias e mais situações ferozes de violência.

Essa versão foi inclusive criticada por seu uso excessivo de violência gráfica contra Lara, que ocorria toda vez que a jogadora falhasse em fazê-la atacar o inimigo ou atravessar os perigosos ambientes corretamente. Felizmente este aspecto sádico do jogo ficou de fora do filme. Lara apanha e também ataca, mas não de forma tão gráfica e excessiva como no jogo.

Tomb Raider

No filme, Lara vive (inacreditavelmente) como entregadora de lanches e não tem dinheiro para pagar o treino de boxe que frequenta. Seu rico pai desapareceu sete anos atrás numa expedição a trabalho, e embora sua cuidadora oficial insista para que ela assine os papeis para herdar a fortuna da família, Lara nega, se recusando a admitir que seu pai esteja morto. Ela acaba encontrando pistas da expedição do pai e partindo rumo à ilha Yamatai, mas dessa vez com um capitão de barco que contrata em Hong Kong.

O filme traz diversas cenas iguais às do jogo, como a do naufrágio e a de Lara retirando um pedaço de madeira de seu corpo. No geral, o visual do filme é praticamente idêntico, incluindo a protagonista. A premiada atriz Alicia Vikander assume o papel de Lara com uma semelhança incrível com o novo design da personagem. Ela não tem mais os seios gigantes como nas primeiras versões, e felizmente abandonaram o enchimento que Angelina Jolie teve que usar nos dois primeiros filmes da franquia.

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Lara é finalmente levada a sério enquanto personagem, e não está no filme a serviço de um olhar masculino. Além de seu figurino ser adequado para o tipo de atividade que ela pratica, nem o enredo nem os movimentos de câmera a sexualizam. Entretanto, o filme ainda permanece sendo a festa da salsicha, onde praticamente todos os outros personagens são homens. As duas mulheres que aparecem fazem apenas minúsculas pontas, e o filme só passa no teste de Bechdel por uma breve conversa sobre armas.

Tom Raider

É uma pena que justamente os dois primeiros atos não funcionem tão bem, com a diversão engatando apenas no terceiro. Durante uma hora e meia de filme falta empolgação à aventura de Lara. As cenas de ação não são muito inspiradas, principalmente para quem as vê se repetir da mesma forma como no jogo. O vilão é genérico, com motivação nem sequer explicada. A relação de Lara com o pai é formulaica, se escorando apenas em flashbacks bregas, e portanto a conexão emocional entre eles fica comprometida, algo que deveria ser essencial para o enredo funcionar.

Finalmente no terceiro ato temos algumas tumbas, enigmas para desvendar (ou assistir serem rapidamente desvendados) e armadilhas ao estilo Indiana Jones, que é o motivo pelo qual Tomb Raider é divertido. Isso, porém, não faz com que o tédio da maior parte do filme seja esquecido, infelizmente.

Aliás, uma das falhas da película é não despertar de forma alguma a sensação de resolver os quebra-cabeças e enigmas que o videogame proporcionava – e que eram bem difíceis, por sinal. O filme mastiga todos os pontos de virada e revela tudo ao espectador, em vez de brincar com pistas e recompensas e fazer a plateia se sentir minimamente inteligente. 

Surpreendentemente, o filme também não é muito bom nos aspectos técnicos. A computação gráfica não é lá muito boa, a trilha sonora é muito ruim, e os efeitos sonoros são insuportáveis, usados como forma barata para criar tensão e uma pretensa agonia nas cenas de ação. Tudo o que eles conseguem fazer é distrair e irritar.

Tom Raider

Alicia Vikander, apesar do visual perfeito e da atriz claramente ter se preparado fisicamente para o papel, não consegue imprimir carisma semelhante ao de Angelina Jolie, que tinha feito dos primeiros filmes passatempos aceitáveis para quando estamos afim de ver um filme trash e divertido. Vikander faz o possível com sua personagem e já está mais que provado que ela é uma boa atriz. Mas talvez por uma falta de cuidado na direção de atores, essa nova Lara Croft não tem o mesmo efeito cativante que a persona de Jolie trouxe para os primeiros filmes. Essa ausência de carisma prejudica enormemente o nosso investimento na história do filme.

É interessante também notar como, ao contrário dos jogos, essa nova versão cinematográfica de Tomb Raider não explora a figura de Lara Croft como uma verdadeira “assaltante de tumbas”, como o título em inglês sugere. Apesar de adentrar e navegar uma cultura antiga que não é a sua, Lara não coleta nem busca objetos locais. Ao contrário de seu pai, que possui uma coleção deles em sua mansão. Mas podemos argumentar que Lara está apenas começando sua jornada, sendo essa sua primeira aventura, e em breve se tornará uma “arqueóloga” tal qual o pai, passando a colecionar artefatos como no jogo.

Como diz Claudia Breger em seu artigo sobre Tomb Raider e imperialismo, os filmes antigos com Angelina Jolie já indicavam essa disposição a se adequar a uma sensibilidade pós-colonialista à qual o mundo estava se condicionando à época. Hoje mais do que nunca, as relações de colonialismo e imperialismo cultural estão em total evidência, sobretudo no modo em que a mídia ajuda a perpetuar ou modificar tais narrativas.

Atuando como uma faca de dois gumes, os filmes conseguem manter a essência da atividade de Lara Croft: invadir e saquear tumbas de culturas “exóticas”, mas subvertendo-a levemente com um final redentor, em que a saqueadora acaba aprendendo lições e se tornando a guardiã dos artefatos e tumbas, impedindo que outros as roubem e ponham em mau uso.

A figura do vilão é essencial nesse jogo para diferenciar o “bom” colonizador do “mau” colonizador. Sendo sempre um homem branco da mesma procedência ocidental de Lara, o vilão funciona como um contraponto às verdadeiras “boas intenções” dela. Lara inclusive costuma ter aliados nativos que a ajudam em suas missões. Nos filmes de Jolie, ela aparece falando a língua nativa deles e vestindo roupas típicas, num esforço para mostrar como a personagem respeita e compartilha dos valores dessas pessoas.

Apesar de tudo isso, Lara Croft ainda faz parte da aristocracia britânica e representa bem diretamente a face do imperialismo europeu que justamente subjugou essas nações, e cujos efeitos são extremamente palpáveis ainda hoje. Tal qual filmes como Dança Com Lobos ou Avatar, um forasteiro branco chega à uma cultura “exótica”, mas por “respeitar” grandemente seus nativos, acaba não apenas se tornando um deles, como também vira seu líder.

Lara Croft, além de se misturar com as pessoas nativas, salva não só elas como o mundo todo do grande perigo que o vilão deseja despertar. Perigo esse geralmente contido em algum artefato antigo justamente criado pela cultura em que ela está excursionando. Essa é uma forma de apenas dar uma nova roupagem às mesmas narrativas imperialistas do passado, onde o colonizador traz civilização ao povo “selvagem”, salvando-os de si mesmos.

Tom Raider

Neste filme, como é a primeira aventura de Lara, ela ainda não tem toda a desenvoltura e conhecimento que adquirirá no futuro, então é compreensível, embora arrogante, que chegue em um porto de Hong Kong exigindo que as pessoas falem inglês e coisas do tipo. O capitão Lu Ren, que ela contrata para levá-la até a ilha Yamatai, também faz o papel do “nativo” aliado, que acaba implausivelmente se importando com ela mesmo sem desenvolvimento suficiente na relação entre os dois. Ele simplesmente decide se importar, de repente, ao invés de buscar salvar logo a própria vida.

Lara, ao invés de planejar a exploração das tumbas, é colocada por acaso no meio da aventura, onde não tem escolha a não ser matar para sobreviver e resolver enigmas sob a ameaça do vilão. É triste, de uma certa forma, como (Pequeno SPOILER a seguir, apenas neste parágrafo!) o filme termina enaltecendo essa aventura de Lara como formadora de seu caráter. Enquanto a sequência do jogo em que foi baseado mostra Lara em uma sessão de terapia lidando com todos os traumas que a “aventura” lhe causou, o filme termina em um tom otimista, com ela repentinamente superando a morte do pai, herdando sua fortuna sem hesitações, e adquirindo as famosas pistolas que a heroína usava nos primeiros jogos. Em vez de refletir sobre as consequências reais dos eventos ocorridos, como os novos jogos ao menos tentam fazer, a moral da história acaba sendo a de que Lara encontrou sua vocação como invasora de culturas alheias e assassina fria e calculista, mas com uma roupagem alegre e energizante. (Fim do SPOILER!)

Talvez não haja maneira de ajustar totalmente a história de Lara Croft para uma versão “não-problemática”, pois a própria ocupação da personagem é onde residem os problemas primordiais. A função de explorador de tesouros, ou mesmo de arqueólogo no sentido tradicional fazem cada vez menos parte do imaginário atual, num momento em que cada vez mais nações exigem de volta objetos roubados que estão em exposição nos museus europeus e norte-americanos.

O verdadeiro legado de Lara Croft será sempre seu importante impacto como uma das primeiras protagonistas femininas nos videogames, que abriu caminho para várias outras, embora ainda não tantas quanto gostaríamos. Com certeza haverá mais sequências deste novo reboot cinematográfico, e que com ele possamos, além de celebrar as mudanças positivas na representação física da personagem, também refletir cada vez mais sobre os significados de sua narrativa.

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Cineasta, musicista e apaixonada por astronomia. Formada em Audiovisual, faz de tudo um pouco no cinema, mas sua paixão é direção de atores.
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