A desconstrução do mito da maternidade através de Sarah Linden

A desconstrução do mito da maternidade através de Sarah Linden

No universo da narrativa seriada The Killing, uma personagem que representa simbolicamente um rompimento dos padrões sociais esperado para a mulher “ideal”, segundo o patriarcado, é Sarah Linden. Interpretada pela atriz Mireille Enos, Sarah é uma investigadora da polícia de Seattle, nos EUA. Em seu último dia de trabalho, o chefe de Sarah pede para que ela dê uma olhadinha no misterioso assassinato da adolescente e estudante Rosie Larsen.

Sarah Linden

Uma garota de 17 anos, oriunda de uma família aparentemente estruturada, aluna dedicada e cheia de potencial, é encontrada morta e amarrada no banco de trás de um carro, de propriedade da equipe de um dos candidatos a prefeito da cidade. Mãe e responsável exclusiva da guarda de um garoto de 14 anos, Sarah estava na iminência de pedir demissão e mudar-se com o filho para a cidade de Sonoma, onde iria começar uma nova vida e casar-se com o psiquiatra Rick Felder (Callum Keith Rennie).

Ocorre que mesmo estando de casamento marcado e após reiteradas súplicas do noivo para que ela deixe a cidade, Sarah acaba envolvendo-se intensamente com o caso de homicídio, na ânsia por desvendar a autoria do crime. Isto é, na contramão de muitas personagens femininas da ficção que têm na vida privada o seu eixo central, a detetive prioriza o exercício do seu trabalho em detrimento de sua relação amorosa.

Mesmo depois do término do noivado em razão da sua dedicação exclusiva à profissão, do desgaste físico e emocional, das noites em claro e das recomendações do chefe e do colega de trabalho Stephen Holder (Joel Kinnaman) para que a investigadora descanse e afaste-se do caso, Sarah não arreda o pé até descobrir a autoria do crime e não deixar o caso impune, conforme pediam os pais de Rosie Larsen.

Sarah Linden é uma mulher que exorbita a delimitação tradicional de espaços entre homens e mulheres, ela desterritorializa lugares e papéis ocupados majoritariamente por homens. O departamento policial de homicídios é um lugar dominado pelo sexo masculino, mas não inatingível para mulheres que como Sarah desconstroem estereótipos de mulher frágil, voltada para a esfera privada dos relacionamentos amorosos e da domesticidade. Ela é uma mulher forte, sisuda, com roupas despojadas e cabelos sempre presos, mãe (em construção) e uma profissional exemplar.

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O mito da maternidade e a desconstrução do ser mãe por Sarah Linden

Vivemos em uma sociedade baseada na mentalidade patriarcal em que se apregoa a maternidade como condição indissociável para a condição feminina. Embora seja uma opção da mulher escolher ou não o exercício da maternidade, a mulher é conduzida desde cedo a acreditar que ser mãe é um destino. Na própria delimitação de brincadeiras típicas para meninas e típicas para meninos, o cuidado com um bebê e maternagem são estimulados por meio de atividades lúdicas e brinquedos aparentemente despretensiosos, mas que são sistemas de significados e produção de sentidos, construídos por adultos.

As meninas não brincam de casinha e de bonecas porque está no DNA de pessoas do sexo feminino, há uma construção sociocultural que destina às meninas, brincadeiras que incentivem o movimento de interiorização delas. Assim, somos educadas e crescemos com a pressão pela exigência da maternidade como algo indissociável à natureza feminina. Na vida adulta, ser mãe é colocado como um papel social atribuído à mulher e quase como uma condição para a felicidade e realização pessoal dela.

Em The Killing, Sarah é mãe de Jack Linden (Liam James), um adolescente que fora criado e educado exclusivamente pela mãe, vez que seu pai dele afastou-se por dez anos. A detetive, por sua vez, carrega uma bagagem de sofrimento psíquico em razão da sua profissão que requer uma jornada de trabalho exaustiva e muita estabilidade emocional para lidar com cadáveres, homicídios, crueldade, enfim, o que há de mais sórdido e perverso da natureza humana; o que a deixou internada em um hospital psiquiátrico por um tempo, após a investigação do assassinato e decapitação de uma vítima que deixou o filho pequeno, o qual havia presenciado o assassinato da própria mãe.

Durante o período de desestabilidade emocional de Sarah, Jack ficou sob observação de uma assistente social, Regi Darnell (Annie Corley) que tomou conta do garoto também durante o envolvimento de Sarah na resolução do caso de Rosie Larden, na primeira e segunda temporada da série. Ou seja, Sarah não é o modelo de mãe devotada e tradicional que tanto se apregoa na nossa sociedade, apesar de amar intensamente o filho.

Sarah Linden
Na imagem: Jack Linden (Liam James) e Sarah Linden (Mireille Enos)

A personagem protagonista da série mostra-nos uma versão mais humana, com toda sua falibilidade, e menos romantizada da maternidade. Sarah não é mãe em tempo integral, ela precisa conciliar a sua atividade profissional, já que é a provedora da família, com a responsabilidade exclusiva dos encargos e da difícil tarefa de ser mãe. Em muitos episódios, Jack e Sarah mudam constantemente de domicílio, morando num dia na casa de Regi, no apartamento de Holder ou em hotéis, em função do trabalho perigoso e difícil da investigadora.

Sarah precisa constantemente desdobrar-se para desvendar crimes misteriosos, desgastantes e ao mesmo tempo tentar ser uma boa mãe para Jack. O garoto passa a maior parte do tempo sozinho e alimentando-se mal, contudo Sarah reconhece suas falhas e sente-se culpada por isso, buscando tornar-se mais presente na vida do filho, mas sem abdicar de sua profissão e do seu ideal de promover justiça no âmbito do seu trabalho, sem precisar viver pelo e para este.

Analisando a história da maternidade e ao contrário do que pensa o senso comum, segundo ensinamentos de Elisabeth Badinter, em “O mito da maternidade”, somente em meados do final do século XVIII, com a disseminação das ideias de igualdade e felicidade (herança do iluminismo), os filhos abandonam a imagem de estorvo na vida dos pais, que para não abdicarem das ambições pessoais, preferiam entregar a responsabilidade de criar, cuidar e educar os filhos a terceiros, sem nenhum vínculo sanguíneo.

No fim do século XVIII, além de se atribuir maior importância à relação afetiva entre pais e filhos, a imagem autoritária do pai e seu poder supremo são abalados, uma vez que a mãe conquista mais autonomia no núcleo familiar, sendo depois da figura do pai a segunda maior autoridade perante os filhos e nas decisões de âmbito doméstico. O comportamento do marido perante a mulher também se modificou tanto nas classes aristocráticas como também na burguesa e nas menos favorecidas. Há duas razões principais para essa mudança brusca de pensamento.

Primeiro, emerge a tendência de casamento por amor, que equipara a condição da mulher à de companheira, merecedora de respeito do cônjuge. Em segundo lugar, os homens seguidores dos ideais revolucionários, sobretudo defendidos por Rousseau, pregam que as mulheres desempenhem um papel mais atuante na família e junto aos filhos. As mães agora desfrutavam de igual poder em relação aos pais na criação dos filhos, devendo enxergar a maternidade como vocação e tornarem-se dedicadas aos cuidados maternos.

A valorização da criança a partir dos ideais de igualdade e fraternidade contribuiu para que a figura da mãe dedicada ao filho passasse a ser exaltada e imitada por mulheres de diferentes classes sociais. A maternidade começa a ser encarada como um dever inerente à natureza feminina e a “verdadeira” mãe deve sacrificar-se e abdicar de si mesma em nome do amor e devoção ao filho. Os seguidores da nova ideologia exaltam as doçuras do ato de ser mãe e pregam que as mulheres agora devem ter satisfação em cuidar e amamentar seus filhos, relegando os serviços da ama de leite.

Sobre a série The Killing

The Killing é uma refilmagem da série original dinamarquesa, Forbrydelsen. A versão americana foi desenvolvida por Veena Sud, que já tinha experiência com seriados policiais, foi uma das produtoras de Cold Case (“Arquivo Morto”, no Brasil), e veiculada pela emissora AMC e pela Netflix.

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Jornalista, pós-graduada em Comunicação, Semiótica e Linguagens Visuais, estudante de Direito, militante femimista, autora do livro A Árvore dos Frutos Proibidos, desenhista, cinéfila e eterna aprendiz na busca do aprender a ser.
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