Nathalia Viccari, ex-baterista do Rakta, fala sobre participação feminina no punk sul-americano

Nathalia Viccari, ex-baterista do Rakta, fala sobre participação feminina no punk sul-americano

A entrevista que segue foi realizada por Paula Holanda para “Chachacha!”, um zine sobre contracultura latino-americana e também seu trabalho de conclusão de curso em jornalismo pela Faculdade de Comunicação da UFBA. A publicação, orientada por Carla Risso, será oficialmente lançada no dia 01/08 em seu perfil do issuu.

punk

Arte: Lucas Cabu

Nathalia Viccari, brasileira que mudou-se de São Paulo para Buenos Aires, em 2014, e baterista da formação original da bem-aventurada banda de pós-punk Rakta (a qual deixou ao final de 2017), percebeu em seu deslocamento uma grande diferença entre o comportamento de brasileiros e argentinos em relação ao consumo de música: “brasileiros olham para cima, enquanto argentinos olham para o lado”. Ela possuía um vasto conhecimento sobre punk europeu e norte-americano, enquanto seus amigos argentinos eram donos de repertórios que continham, por exemplo, bandas chilenas, peruanas e uruguaias. Paralelamente, seu incômodo com representações majoritariamente masculinas do início do punk brasileiro converteu-se em curiosidade em relação às bandas pioneiras com mulheres em suas formações. A interseção entre essas reflexões deu origem à coletânea Sudamerica Existe.

Lançado em outubro de 2017 e resultante de quase um ano de investigação, o primeiro volume de Sudamerica Existe é possivelmente a primeira coletânea dedicada à participação feminina no punk sul-americano. Ele contém 10 faixas que transitam entre o punk de raiz e o pós-punk — uma de cada país da América do Sul, com exceção da Guiana e do Suriname —, foi lançado em formato físico, em fita k7, e disponibilizada para streaming gratuito e download por valores a partir de US$1 no Bandcamp.

Essas faixas foram gravadas em um intervalo de tempo entre 1984 e 1998, encontradas em fitas abandonadas e empoeiradas em porões de amigos, compilações obscuras com gravações de má-qualidade e blogs ocultos nas profundezas de sites de busca. Em entrevista, Nathalia fala sobre os processos de idealização e descoberta que compreendem Sudamerica Existe.

Lista de faixas da coletânea:

  1. Soberania Personal — Lider (Argentina)
  2. 3D — Desorientada (Brasil)
  3. Fértil Miseria — Los Generales (Colômbia)
  4. Kaos — Titeres Rebeldes (Paraguai)
  5. Descontrolados — Repressión Policial (Equador)
  6. Psh Psh — Guerra Mental (Venezuela)
  7. Maria T.TA Y El Empujón Brutal — La Pituchafa (Peru)
  8. Poluición Sonora — Su Consciencia (Uruguai)
  9. Emociones Clandestinas — Animate (Chile)
  10. Autorey — Miseria (Bolívia)

Ouça o primeiro volume de Sudamerica Existe em: sudamercaexiste.bandcamp.com

punk

Foto: Nathalia por Mateus Mondini

É verdade que Sudamerica Existe é a primeira coletânea dedicada a mulheres no punk sul-americano? Você fica surpresa por nunca terem tido essa ideia antes?

Não acho que tenha sido a primeira. Na verdade, quero acreditar que não foi a primeira, porque se foi, só aconteceu agora, no final do ano passado. Então, eu quero estar errada, mas até agora não encontrei nenhuma outra coletânea com essa temática. Existem muitas pesquisas e coletâneas sobre o começo do riot grrrl ou do queercore, mas não com o recorte da América do Sul.

Por um lado, fico triste em pensar na possibilidade de Sudamerica Existe ser a primeira coletânea dedicada a mulheres no punk sul-americano, mas por outro, se for, espero que seja a primeira de muitas. Depois que lancei Sudamerica Existe, algumas mulheres vieram falar comigo que resolveram fazer pesquisas semelhantes por conta da coletânea, a exemplo de uma mulher chilena que me disse que se reuniu com algumas amigas para listar bandas femininas ou feministas do Chile.

Para você, por que é importante organizar um produto dedicado aos projetos com participação feminina?

Acho que a nova onda feminista empoderou muitas mulheres. Eu, quando tinha 15 anos, sempre reproduzia machismo e não pensava no feminismo como penso agora. E acredito que muitas amigas também, muitas amigas achavam normais naquela época coisas que a gente sabe que não são normais hoje em dia. Eu cresci com poucas amigas mulheres — a rivalidade feminina ainda era bastante normalizada enquanto eu era adolescente. Então, eu reproduzia a ideia idiota de que mulheres não se davam bem com outras mulheres e que ter amigos homens era muito mais legal. Ainda bem que, atualmente, as coisas não são mais assim.

Quando comecei a idealizar a coletânea, imaginei que mulheres mais velhas sofriam e reproduziam tanto machismo quanto eu, ou até mais do que eu. E acredito que, na década de 1980, ser uma mulher punk e tocar no meio de vários homens era uma atitude muito mais forte e política do que no final da década de 1990 ou pós-anos 2000, em que você tem um boom de bandas femininas e feministas.

Então, foquei a pesquisa na década de 1980, porque fiquei curiosa para saber — se eu, aos 15 anos, já sofria e reproduzia tanto machismo — como as mulheres da época agiam e pensavam, e por que ninguém fala delas. O início da história do punk brasileiro que nos contam, por exemplo, é extremamente focado em bandas completamente masculinas. Então, resolvi pesquisar por bandas da década de 1980, ou por bandas pioneiras — em alguns países, as primeiras bandas punk com mulheres na formação só foram surgir no começo da década de 1990.

E em relação ao recorte sul-americano? O que te levou a limitar a curadoria à América do Sul?

Quando me mudei para a Argentina, eu percebi que o Brasil é ilhado em relação ao resto da América do Sul, tanto que existem pessoas que excluem os brasileiros quando falam de latino-americanos. Alguns brasileiros acham que não são latino-americanos, também, por não falarem espanhol.

Na Argentina, eu percebi que os argentinos têm muito contato com chilenos, paraguaios, uruguaios, enquanto eu, no Brasil, tinha mais contato com norte-americanos ou europeus. Brasileiros não olham para o lado, eles olham para cima. Na Argentina, eu aprendi a olhar para o lado.

Eu quis dedicar a coletânea às bandas sul-americanas para mostrar que somos vizinhos e temos todos muito em comum, por mais que o nosso idioma seja um muro invisível. Para tirar o foco das produções europeias e norte-americanas e mostrar que existem coisas acontecendo mais perto do que nós imaginamos.

punk
Página da revista peruana Caretas com fotografia de Patricia Roncal, que se apresentava sob o nome artístico de María T.TA com a banda El Empujón Brutal (Peru)

Na descrição da coletânea que consta no encarte da fita, você comentou sobre essa questão de que, na Argentina, as pessoas se envolvem mais com os cenários musicais dos países vizinhos do que nós no Brasil. Por que você acha que isso acontece? O nosso idioma é realmente a única barreira?

O Brasil é um país enorme — muito maior em comparação à Argentina ou ao Chile. E algumas capitais brasileiras também são ilhadas. Por exemplo, se você está em São Paulo, é comum que você não saiba o que está acontecendo no Rio de Janeiro, e se você está no Rio de Janeiro, é comum que você não saiba o que está acontecendo em Belo Horizonte.

Então, é como se o próprio Brasil já se comportasse como um grande continente. Tem tanta coisa acontecendo em território nacional que não conhecemos que fica difícil dedicar nossa atenção ao que acontece fora dele, então, acabamos muito voltados para nós mesmos.

O Brasil é muito extenso e rico culturalmente, e dificilmente você, em São Paulo, saberia do que está acontecendo na Bahia ou no Rio Grande do Sul, se não fosse pela internet. Conhecemos produtos europeus ou norte-americanos, porque isso faz parte de uma dominação maior do que nossa vontade própria ou de nossas pesquisas individuais.

Então, você sente que o cenário independente argentino é mais unificado do que o cenário independente brasileiro?

Sim. Aqui, na Argentina, sinto que é mais fácil conhecer tanto o que está acontecendo dentro quanto o que está acontecendo fora. Meus amigos argentinos sabem muito sobre tudo — aqui, as pessoas conseguem citar para você uma banda chilena ou boliviana com muita facilidade. Elas falam “eu conheci essa banda do Paraguai”, como os brasileiros falam “eu conheci essa banda de Pernambuco”. Mas também tem a questão de que a Argentina é dimensionalmente muito menor do que o Brasil.

O Brasil é maior e tem mais habitantes, então, consequentemente tem mais pessoas fazendo coisas, apesar de a Argentina ser uma nação muito artística e criativa. Uma coisa interessante que eu percebi é que o punk está muito inserido na cultura argentina — você ouve punk nas rádios e nas trilhas sonoras de novelas. Um argentino médio conhece o Fun People, mas um brasileiro médio não conhece o Cólera.

Em Sudamerica Existe, você teve o cuidado de fazer outros recortes além do recorte de gênero, como o de raça ou sexualidade?

Não, justamente porque o punk sul-americano é muito masculino, branco e heterossexual. Na verdade, movimentos como o afropunk ou o queercore só começam a ganhar força na América do Sul na década de 1990 ou no começo dos anos 2000. Foi difícil encontrar bandas completamente femininas, o que configurava a proposta inicial da coletânea. Então, acabei ampliando a seleção para bandas que tinham alguma mulher como integrante, mas sem nenhum outro recorte, porque isso limitaria ainda mais a seleção de bandas. Mas, penso em fazer outras coletâneas com outros recortes que não o de gênero, como os próprios recortes de raça e sexualidade.

punk

Fotografia: Fértil Miséria (Colômbia) por Jenny Giraldo

Leia também:
>> [ENTREVISTA] Aline Vieira: feminismo, música experimental e “faça-você-mesmo”
>> [ENTREVISTA] Marcela Reis e CabraMacabrA: “a gente tá perdendo o medo de meter a cara e tomar nosso espaço”
>> [ENTREVISTA] Pollyanna is Dead: “Mulher não é boneca, nem capacho de machista. Eu, ela, todas unidas.”

Como você realizou o mapeamento e a curadoria das bandas? Quais foram os critérios de seleção utilizados?

Eu comecei pela parte mais fácil, que foi Argentina e Brasil, depois procurei por amigos que tinham ligações com outros países e perguntei sobre as bandas de lá. Também escrevi para muitos blogs e para muitas pessoas que eu sequer conhecia. Alguns países foram muito fáceis, outros foram muito difíceis. Eu quase desisti da coletânea enquanto buscava por bandas bolivianas. Um amigo me disse que existiram muitas bandas punk na Bolívia, mas ninguém tinha recurso para realizar gravações — se não me engano, o primeiro registro punk boliviano foi no final da década de 1990!

Anos depois, os integrantes dessas bandas punk se dividiram entre bandas de pós-punk e metal. E o Chile foi quase tão difícil quanto a Bolívia, que também foi um país complicado. Eu ficava bem desanimada quando via que as bandas pioneiras de alguns países eram da década de 1990, pois, a princípio, queria fazer uma coletânea voltada para a década de 1980. Também foi muito difícil encontrar um bom registro do Uruguai.

A faixa uruguaia que incluí na coletânea, “Su Consciencia”, da banda Poluición Sonora, foi retirada de uma coletânea da década de 1980 e a qualidade da gravação está muito ruim. Um dos critérios que utilizei foi a popularidade — eu queria incluir bandas mais escondidas, que não estivessem em muita evidência. Por exemplo, o Brasil tem Mercenárias, mas eu as descartei, pois quase todo mundo conhece Mercenárias. Então, decidi incluir 3D, que é uma banda do Rio Grande do Sul, fora do eixo Rio-São Paulo.

Percebi que você só escolheu bandas que compunham em suas línguas nativas — ao longo da história da música independente brasileira, por exemplo, existiram uma série de bandas que compunham em inglês. A questão do idioma foi um dos critérios de seleção ou as composições em línguas nativas eram características do início do punk sul-americano?

Acho que as pessoas não compunham em inglês naquela época. Nas décadas de 1980 e 1990, por exemplo, quase não existiam bandas punk brasileiras que compunham em inglês. Aliás, quase ninguém sabia falar inglês. Acho que saber falar inglês é algo da nossa geração, não sei se naquela época as pessoas tinham inglês como disciplina escolar, por exemplo. Acho que, na década de 1980, os punks brasileiros ouviam bandas gringas muito mais pela sonoridade e pela estética visual dos discos do que pelas mensagens.

Ao ouvir a coletânea, percebi que algumas bandas carregavam a estética do início do punk, enquanto outras já apontavam para o pós-punk. O engraçado é que essas bandas foram praticamente coexistentes. Você acha que essa diferença se dá pelo acesso à informação de cada país — bandas de países mais modernos tendem a compreender estéticas mais modernas?

Acho que sim, principalmente se levarmos em conta as ditaduras de cada país. Alguns países foram privilegiados por uma chegada prévia da informação. O punk entrou mais tardiamente em outros, porque as ditaduras deles acabaram depois. Por exemplo, a ditadura da Bolívia terminou em 1982, enquanto a ditadura no Chile só foi terminar em 1990. E pelo que eu entendi, pesquisando sobre a banda chilena que incluí na coletânea — Emociones Clandestinas —, por exemplo, é que ela foi montada por um grupo de músicos profissionais que queriam fazer música agressiva e subversiva ao final da ditadura. Não surgiu naturalmente, eles queriam trazer o punk para o Chile.

Essa banda lançou uma fita demo com uma mulher no vocal e logo depois um disco sem essa mulher, sob uma estética bastante genérica — hoje em dia, ela é uma das bandas mais famosas do Chile, como se fosse uma espécie de Capital Inicial. Muitas pessoas não entenderam por que a incluí na coletânea, mas foi justamente por conta dessa fita demo e por ela ser uma banda pioneira no punk chileno, e também pela polêmica [risos].

punk

Capa de compacto sem título da banda 3D (Brasil). Arte por Sylvio Salgado.

Que coisa! E foi fácil para você contatar as bandas selecionadas?

Não, não mesmo. Até agora, tem bandas que não consegui contatar de maneira nenhuma, não encontrei integrante nenhum! A Bolívia permanece um mistério até nesse sentido, ainda não consegui contatar ninguém da Auterev. Também não consegui contatar a banda colombiana, Fértil Miseria, mas aparentemente eles permanecem em atividade. Sudamerica Existe é um projeto em aberto. Lancei essa coletânea, sobretudo, para receber informação como retorno.

Quero que me mandem informações sobre as bandas incluídas na coletânea ou que corrijam informações que possam estar erradas. Ou, até mesmo, que os próprios integrantes dessas bandas entrem em contato comigo. Quero receber fitas e fotografias… é muito difícil realizar uma pesquisa exclusivamente pela internet. O ideal seria que eu viajasse para cada país em busca de material. Espero um dia poder continuar esse projeto com mais calma e, quem sabe, lançar um livro ou um disco com um encarte interessante e informativo.

Então, você não pediu permissão para utilizar essas músicas?

Não. Por isso que, a princípio, não pretendo lançar a coletânea em CD ou LP, mas a lancei em fita k7, como uma mixtape — você pode copiá-la e repassá-la para seus amigos. Eu não a criei sob fins lucrativos. Também a disponibilizei digitalmente, no Bandcamp, pois acredito que as informações circulam com mais alcance e velocidade na internet e quero que essa coletânea chegue até as bandas envolvidas. A seleção das músicas foi fruto de puro garimpo, através de downloads, em blogs pouco conhecidos, ou de fitas esquecidas nas casas de amigos.

Em 2016, uma adolescente foi estuprada e morta em Buenos Aires, o que mobilizou uma greve geral de mulheres na Argentina, conduzida por cerca de 50 organizações. Eu fiquei positivamente surpresa em relação à greve, pois movimentos planejados como este parecem ser pouco recorrentes no Brasil. Como estão as questões relativas às mulheres na Argentina? Você poderia fazer um breve comparativo acerca do feminismo e da violência contra a mulher na Argentina, em relação ao que você observava no Brasil?

No Brasil, eu via uma ou outra marcha ou passeata. As manifestações feministas na Argentina são recorrentes e mobilizam todas as gerações — as avós, as mães e as filhas. Na Argentina, tem as Mães da Praça de Maio, uma manifestação em que mulheres idosas se reúnem para exigir notícias de filhos desaparecidos durante a ditadura militar argentina. Algo que me surpreendeu sobre a Argentina, até mais do que a militância feminista, foi o fato de que os argentinos separam um dia do ano em memória à ditadura e suas vítimas, que é 24 de março — é a data que marca o Golpe de Estado, em 1976. É um feriado criado com o intuito de evitar que a ditadura argentina um dia se repita.

Você passa o dia inteiro assistindo reportagens e documentários sobre a ditadura na televisão. Para mim, isso influencia muito na consciência política argentina. É uma consciência política muito diferente da nossa. No Brasil, a gente mal conhece a nossa própria ditadura! Lembro que estudei em escola estadual e nunca me falaram sobre feminismo, sobre ditadura. Eu passei os três anos do ensino médio estudando sobre colonização — não que isso também não seja importante. Mas é por isso que somos tão cegos para uma série de violências e opressões. Tem brasileiro que pede pela volta da ditadura, é absurdo. Na Argentina, tem protesto todo dia e paralização toda semana. As manifestações políticas fazem parte do dia-a-dia do argentino.

punk

Fotografia das Mães da Praça de Maio, retirada do site oficial da Asociación Madres de Plaza de Mayo. madres.org/

Nathalia está em busca de informações sobre as bandas incluídas no primeiro volume de Sudamerica Existe. Para ajudá-la na pesquisa, você pode contatar o projeto por:

Escrito por:

11 Textos

Estudante de Comunicação Social com ênfase em Jornalismo. Apaixonada por música, documentários, artes visuais, quadrinhos e publicações independentes. Fascinada por contracultura e gente maluca.
Veja todos os textos
Follow Me :