Sense8 tem muitos méritos, mas talvez o maior deles seja justamente mostrar na tela o que a empatia pode causar. A série conta a história de oito jovens chamados sensates, que são capazes de conectarem-se estando em diferentes partes do globo. Por compartilharem habilidades e sensações, os sensates são perseguidos por uma estranha companhia internacional. Mas o que provoca a união entre essas oito pessoas tão diferentes é justamente o fato de que cada um pode sentir o que o outro pode, independente do gênero, da cor da pele, do lugar de nascimento e do poder aquisitivo.
Pense, de que outra forma um policial durão e cumpridor da lei como o americano Will Gorski (Brian J. Smith) poderia ser amigo de um fora da lei como o alemão Wolfgang Bogdanow (Max Riemelt)? Ou o que poderia unir a hacker norte-americana Nomi Marks (Jamie Clayton) e a economista sul-corenana Sun Bak (Doona Bae)? Ou o motorista de van queniano Capheus “Van Damme” Onyongo (Aml Ameen/Toby Onwumere) e o ator mexicano Lito Rodriguez (Miguel Ángel Silvestre)? E o que dizer da amizade entre a cientista farmacêutica indiana Kala Dandekar (Tina Desai) e a DJ islandesa Riley Blue (Tuppence Middleton)?
E o melhor, não há julgamento entre eles. Como cada um pode entender exatamente o que a outra pessoa sente, cada um se coloca no papel do outro. Por isso mesmo que as diferenças são esquecidas e os preconceitos deixados de lado. Não seria esse o grande segredo para viver em um mundo melhor? É justamente a falta de empatia que causa tanta dor e sofrimento. Tratar o outro diferente, como algo longe de uma mesma, é um dos fatores que promove a segregação, que alimenta os preconceitos e justifica atos de violência e crueldade. Colocar protagonistas que, em geral, são marginalizados nos meios audiovisuais, permite alcançar uma audiência que antes não conseguia se identificar com personagens. E a empatia é um dos principais aspectos para essa identificação.
O desenrolar da trama de Sense8 leva a(o) espectadora(o) a perceber que as emoções, as sensações e os pensamentos dos oito protagonistas estão conectados. Eles são sensates (ou Homo Sensorium), indivíduos que mantém uma conexão telepática e empática com os Sense8 de seu grupo. Também são capazes de conectar membros de outros grupos, porém, através do contato visual. Por ter a mente compartilhada por desconhecidos, a história desenvolve-se com o início dos problemas dos integrantes do novo grupo de Sense8, que após envolverem-se em uma conspiração com uma grande corporação, precisam lutar para sobreviver.
Não é à toda que um tipo de produção como Sense8 fez e faz tanto sucesso entre os fãs, a ponto de provocar que os produtores voltassem atrás na decisão de cancelar a série após a segunda temporada. Apesar da ótima legião de fãs formada, um último episódio de duas horas marcou o final definitivo de Sense8, devido os altos custos de produção. Por outro lado, os amantes do cinema sabem que as irmãs Lilly e Lana Wachowski promoveram uma revolução ao lançarem a trilogia Matrix. Os efeitos especiais ousados presentes na franquia tornaram-se um marco na produção cinematográfica, e o nome das Wachowski passou a ser uma referência.
Em Sense8, o talento das irmãs Wachowski permitiu que uma nova revolução acontecesse. Um revolução humanista, ligada a relevância dos temas sociais abordados no seriado. Desenvolvida em parceria com o roteirista J. Michael Straczynski, as irmãs Wachowski, que também são transgêneras, puderam transferir para a tela o que sentem na vida real. Por meio da diversidade na composição da equipe por trás das câmeras, vemos a diferença no produto final.
Essas mudanças surgiram há cerca de uma década, onde começaram a aparecer mulheres, minorias étnicas, personagens com diversidade funcional ou pertencentes ao coletivo LGTBQ, representados com grande profundidade e que fogem dos estereótipos. Esse é o caso também de American Horror Story (Fx, 2011), Game of Thrones (HBO, 2011), Orphan Black (Netflix, 2013), Orange is The New Black (Netflix, 2013) ou Transparent (Amazon, 2014).
A delicada abordagem sobre sexualidade em Sense8
Duas temporadas foram suficientes para que Sense8 se destacasse dentro da produção cinematográfica americana, trazendo histórias de relevância social, sobretudo no que diz respeito a sexualidade.
A sexualidade foi apresentada de forma bela e natural, permitindo que os pontos de vistas de grupos, até então marginalizados, tivessem visibilidade e ganhassem a simpatia do público. Em Sense8 encontramos várias situações que favorecem a empatia. A narrativa bem construída permite vivenciar as dores, os medos e anseios dos personagens.
A construção dos personagens pertencentes ao núcleo LGBTQ+, por exemplo, fez a diferença. Os sujeitos incorporaram os conflitos e desejos de uma comunidade que, infelizmente, costuma estar presente na sétima arte apenas como alívio cômico ou para angariar espectadores. As irmãs Wachowski produziram belas sequências sobre autorrepressão, rejeição familiar e social, assunção e fortalecimento da autoestima. Nomi, Amanita Caplan (Freema Agyeman), Hernando Fuentes (Alfonso Herrera) e, com o avançar dos episódios, Lito, representantes dessa comunidade, não estão interessados na normalidade imposta pela sociedade. Tais personagens estabelecem regras próprias e emocionam o público.
Logo, o argumento principal de Sense8 serve de desculpa para a introdução de temas como o amor e a identidade sexual, mostrando as diferentes violências estruturais ligadas a cada contexto. Ou seja, é uma produção que mostra perfis pouco usuais e capazes de ampliar a visão de mundo de quem assiste. A série também revela-se como um produto interessante para analisar a representação dos corpos dos personagens, ou seja, como se constrói a identidade dos sensates, especialmente os/as que pertencem à comunidade LGBTQ+.
Nomi e Amanita
O caso de Nomi e Amanita é emblemático. O núcleo narrativo que as envolve é belo, permeado de situações que expõem preconceitos e quebra alguns paradigmas.
Nomi é uma mulher transexual e Amanita é uma mulher cisgênero. Ao se conhecerem, se apaixonam. A princípio, a configuração do casal causou estranheza no público: “Se Nomi nasceu homem, mas sentia-se atraída por mulheres, para quê fazer a cirurgia de redesignação sexual?”. O enredo foi conduzido de forma natural e sensível, mostrando que a identidade de gênero de um indivíduo não está diretamente ligada à sua orientação sexual. Homens e mulheres cisgêneros podem sentir atração por pessoas do mesmo sexo. Tal fato também vale para os(as) transexuais.
Os problemas familiares vividos por Nomi também são destaque. Ela não é aceita por seus pais e é vista como doente, uma desequilibrada que quer chamar atenção. Os diálogos travados com outros personagens e os monólogos de Nomi são representativos para as transexuais, que precisam enfrentar em seu cotidiano a violência psicológica e física, inclusive daqueles que deveriam protegê-las, a própria família. Vale lembrar que o seriado é dirigido por mulheres transexuais. As irmãs Wachowski e a atriz Jamie Clayton também é transexual. Fato incomum na indústria do entretenimento.
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No começo da série, Nomi é mostrada ao público como uma mulher que se constrói através de características que poderíamos considerar como um privilégio: é anglo-saxônica, branca, norte-americana, fala inglês, tem uma alta posição social, cultural e econômica, independência e normatividade física e psicológica; é atrativa, jovem e tem uma ocupação de reconhecimento como blogueira. Todas essas características estão entrelaçadas de alguma maneira, ou seja, o fato de de ser branca, falar inglês e ser norte-americana facilita a entrada na condição de pertencer a uma classe econômica média ou alta. Logo, ela tem acesso à formação e educação, fundamentais para conseguir um trabalho qualificado.
Mas logo aparecem os aspectos que fazem com que Nomi sinta-se excluída: é uma mulher trans e lésbica e pertence a uma família tradicional e conservadora. Então, ela precisa lidar com uma identidade oprimida e suportar as tensões causadas por sua aparência, identidade e gênero. A personagem de Nomi critica o binarismo heterossexual que se vincula com o natural, a inclusão e o visível, enquanto o homossexual/trans se vincula com o antinatural, a exclusão e o invisível.
Logo, as telespectadoras podem presenciar, através de flashbacks, episódios de violência e exclusão vividos por Nomi, como o bullying que seus companheiros de colégio faziam, por meio de agressões físicas e psicológicas; passando pela família que nega sua transição e continua chamando-a de Michael; os médicos que relacionam sua identidade com doença; além do desprezo dentro do próprio coletivo LGTBQ+.
Lito e Hernando
A história de Lito e Hernando também contribui no que diz respeito a discussão sobre sexualidade. Os dois são discriminados por serem gays e somos levadas a sofrer junto com eles.
Lito é um famoso ator de cinema e, inicialmente, mantém um relacionamento secreto com Hernando. Após ter fotos íntimas divulgadas, o casal é rechaçado. Lito perde contratos, amigos, fãs e propriedades. Por acreditar que sua carreira estava arruinada, Lito entra em desespero. Hernando se mantém ao lado do namorado e, com a ajuda de Daniela Velázquez (Eréndira Ibarra), uma amiga do casal, faz o possível para recuperar a autoestima do namorado. Aos poucos, Lito se fortalece como homem gay e, após sua autoaceitação, novos contratos de trabalho surgem e a harmonia e a paz se restabelece entre o casal.
À primeira vista, a história de Lito e Hernando pode parecer simples. Mas se levarmos em consideração a vulnerabilidade da população LBGTQ+, o eixo narrativo que envolve os dois é de grande importância. Saber que indivíduos sofrem, padecem represálias e são vítimas de violência apenas por amar, é algo capaz de sensibilizar pessoas, mais do que qualquer pesquisa ou estatística. Ou seja, em um princípio, Lito também poderia ser considerado um privilegiado por sua profissão. O fato dele ser um ator reconhecido em filmes de ação, faz com que seja considerado um galã viril, especialmente por sua aparência que está dentro dos padrões de beleza, que logo é considerada como atrativa. Privilégio também por ser jovem e por ter sua masculinidade exacerbada, assim como sua condição de latino-hispano e mexicano. Por outro lado, como a produção de Sense8 é norte-americana, o fato de Lito ser mexicano faz com ele seja representado como diferente e oprimido.
Para Lito, o cinema funciona com algo libertador – um sonho realizado que traz benefícios econômicos para ele –, e como algo que aprisiona, – o fato de ter medo de assumir sua identidade homossexual e o romance que mantém com Hernando. Lito sofre com a violência simbólica por ter que escolher entre carreira e o amor, e os papéis de gênero se misturam com os binômios heterossexualidade-esfera pública e homossexualidade-esfera privada. Ou seja, para o público, Lito se mostra heterossexual, mas sua verdadeira identidade está presente no amor homossexual que se limita à esfera privada, até que ele decide assumir sua condição de gay, algo que o liberta e o ajuda a entender sua própria personalidade.
A Pansexualidade em Sense8
Outro fato interessante em Sense8 e que de certa forma é capaz de expandir horizontes, está relacionado a pansexualidade dos sensates. Por estarem ligados telepaticamente, as personalidades se misturam e as barreiras se desfazem. Os Sense8 compartilham tudo, incluindo os momentos de prazer.
Mesmo que em suas vidas particulares os personagens se definam como héteros ou homossexuais, no grupo eles são pansexuais, se atraem por pessoas independente de seu sexo biológico ou identidade de gênero. Justamente por isso, Sense8 mostrou-se como uma obra inovadora. A união de consciências permitiu que os indivíduos se livrassem dos preconceitos, rótulos e julgamentos. Os padrões deixaram de existir, dando lugar a uma vivência sexual ampla e livre.
Sense8 apresenta possibilidades originais e que funcionaram dentro e fora da tela. A profundidade de cada um dos oitos protagonistas é mostrada de uma forma que promove uma ligação de intimidade entre o grupo, e uma audiência que, durante muitas décadas, se sentiu excluída e sem representatividade.
Para finalizar, deixaremos uma das falas mais bonitas de Nomi Marks, que acaba por resumir a mensagem deixada por Sense8:
“A verdadeira violência, a violência que eu percebi que era indesculpável, é a aquela que fazemos com nós mesmos, quando temos medo de ser quem realmente somos.”
Texto escrito por Priscila Cruz e Adriana Ibiti.