“The Deuce” e o papel da mulher no surgimento da indústria pornográfica

“The Deuce” e o papel da mulher no surgimento da indústria pornográfica

The Deuce é uma série da HBO que estreou em 2017, sem muito alarde, e passou quase despercebida pelo grande público. Criada por David Simon e George Pelecanos e produzida e protagonizada por Maggie Gyllenhaal, a série se passa em uma Nova York suja, no começo da década de 1970, onde as ruas durante a noite são dominadas por prostitutas, cafetões e a máfia.

Nesse cenário, conhecemos o cotidiano das prostitutas do bairro The Deuce nos seus mais variados corpos, etnias e histórias. James Franco também integra o elenco, interpretando os gêmeos Vince e Frankie, e dirige alguns episódios da série, mas a sua interpretação é quase esquecível e, às vezes, você não consegue saber qual dos gêmeos está na tela. Além disso, o ator está envolvido em denúncias de assédio sexual e mesmo assim foi mantido no elenco da produção, apesar dos protestos (talvez esse seja o único ponto negativo da série).

The Deuce

O grande destaque de The Deuce são as prostitutas, em especial Candy, interpretada por Maggie Gyllenhaal. A única das moças a não aceitar trabalhar com um cafetão, ela colhe as amarguras da vida nas ruas ao mesmo tempo em que mantém um filho, alienado de sua profissão. Ela faz de tudo para manter a sua independência, mesmo que isso a torne alvo da violência do lugar.

A primeira temporada mostra a sua trajetória nas ruas até o começo do seu envolvimento com a indústria pornográfica, que estava começando a nascer no começo daquela década. Como não poderia deixar de ser, a série tem muitas cenas de nudez e violência, mas nada é feito gratuitamente e elas fazem parte do cenário pesado em que os personagens vivem; é algo que faz parte da vida deles.

A trama, que parece despretensiosa em um primeiro momento, acaba entrelaçando os personagens, que inicialmente aparentam não ter relação entre si. O cotidiano do bairro é mostrado sem julgamentos de valor; é a vida como ela é, seja pela violência, nudez, corrupção da polícia ou a máfia e os cafetões com sérios problemas de moral. The Deuce não estabelece vilões e mocinhos: são todos humanos, passíveis de falhas, mas dotados de sentimentos.

The Deuce

Candy é a personagem feminina que recebe mais destaque e carrega a trama com a sua trajetória de ex-prostituta a diretora de filmes. Em sua trajetória ao longo da série vemos como ela lida com os abusos sofridos na rua e como ela não aceita receber ordens de outros homens e até como ela impõe respeito entre os cafetões.

Em um episódio da primeira temporada acompanhamos um dia na vida de Candy, indo dos abusos até as dificuldades que ela enfrenta nas ruas. Além de sua relação com a família, a sua mãe cria o seu filho, que não tem pai. O próprio pai dela também expressa rejeição pela vida que a filha leva. Ao longo da série vemos como ela sai de um papel subalterno e vai pavimentando o seu caminho na indústria pornográfica, enfrentando o machismo e preconceito de uma profissão que objetifica as mulheres.

Maggie Gyllenhaal também se preocupa em mostrar como funciona a sexualidade da personagem e como ela se permite ter encontros fora da profissão. Ela entende bem como funciona o seu corpo e o seu prazer. É interessante notar como Candy, mesmo estando em cenário que a torna vulnerável, consegue tomar as rédeas de sua vida e de seus desejos, e como isso influencia na produção dos filmes pornográficos da época. Isso fica mais explícito na segunda temporada, quando ela luta para impor a sua visão feminina na narrativa de um filme em que ela está trabalhando, além de mostrar de forma clara o machismo descarado da indústria.

Além de Candy, as outras mulheres da trama também são fundamentais no enredo de The Deuce. Carismáticas, sensíveis, fortes e vulneráveis ao mesmo tempo, cada personagem nos mostra um lado prostituição que não estamos acostumadas a ver, ou não queremos ver. Os destaques são Darlene (Dominique Fishback), Lori (Emily Meade) e Ashley (Jamie Neuman), cada uma com os seus motivos para abandonar a vida no interior e aceitar viver em Nova York, seja pelo sonho de ser atriz ou para fugir de um lar violento. Elas são personagens tão ricas quanto Candy.

Darlene (Dominique Fishback) é a garota do interior que vai para a cidade grande em busca de uma vida melhor. Ao longo da série a personagem mostra uma evolução nítida, de garota que se sujeita aos mais estranhos desejos dos clientes a alguém que começa a se interessar por leitura e a entender quem ela é na sociedade, como quando ela percebe que as garotas negras recebem menos que as garotas brancas para a mesma função. E mesmo com os abusos que sofre, fica claro que foi ela quem escolheu a vida nas ruas por achar que não encontraria algo melhor. Na segunda temporada essa evolução fica ainda mais clara e a personagem ganha mais força, sem contar todo o carisma da atriz Dominique Fishback.

The Deuce

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Já Lori (Emily Meade) chega a Nova York com o sonho de se tornar atriz e acaba entrando em uma relação extremamente abusiva com o seu cafetão C.C. (Gary Carr). Que passa a controlar a moça e se mostra violento e possessivo. C.C. também é o cafetão de Ashley e demostra o mesmo comportamento violento com ela, outra garota que saiu de uma cidade pequena e foi tentar a vida na cidade grande. Ashley acaba se tornando mais um ponto feminista da série, principalmente na segunda temporada, mas não podemos dar muito detalhes para não estragar a trama.

Margarita Levieva interpreta Abby, uma personagem fundamental na trama, que acaba se envolvendo com Vince (James Franco). Abby é uma universitária que acaba indo parar no The Deuce por acaso e trabalhando no bar que reúne os personagens à noite. Ela tem a mente aberta e está em contato com a ebulição das subculturas da cidade – como a cena musical punk da época -, além de ser o elemento feminista da série. Sempre com um livro na mão, ela não tolera os cafetões e bate de frente com quem ela acha que deve para defender os seus ideais. As mulheres e suas vivências nesse meio são o grande destaque de The Deuce.

Os cafetões de The Deuce são um elemento controverso na série, pois representam a exploração, o abuso e a violência que as mulheres se deparam, além, é claro, dos clientes. Em sua maioria negros e cheios de estereótipos, eles são de alguma forma humanizados, mas não são destituídos de sua falta de caráter e desprezo pelas mulheres que eles exploram. A exploração violenta e abusiva dessas mulheres é mostrada de forma clara e a vida na prostituição nunca é romantizada. Enquanto vendem segurança para as moças, batem e as espancam quando elas não dão lucro o suficiente.

The Deuce

Outro destaque é o policial Chris Alston (Lawrence Gilliard Jr.) e seu olhar pelo bairro. Ele talvez seja o único de sua corporação que não é corrupto e que realmente parece se preocupar com os moradores do bairro The Deuce. Aliás a corrupção que impera no bairro afeta a vida de todos de diversas formas e muda até a paisagem do lugar. Também conhecemos a cena LGBT da cidade e toda uma cultura marginalizada que nasceu no local.

Na segunda temporada, ocorre um salto de cinco anos e agora estamos em 1977. A indústria pornográfica já é uma realidade e Candy desenvolve o seu trabalho como diretora de filmes adultos, lutando para conseguir espaço em um universo extremamente machista. Os cafetões e prostitutas estão centralizados em bordéis administrados pela máfia italiana e as atrizes do pornô são tratadas como estrelas de cinema. Também vemos o surgimento do feminismo no final da década e o começo da busca dos direitos das trabalhadoras do sexo. 

A partir de uma narrativa despretensiosa, vários temas importantes são abordados na série, como o racismo, o machismo, a violência contra a mulher e o surgimento do feminismo da época. 

The Deuce foi eleita uma das melhores séries de 2017 pela crítica americana e a sua segunda temporada também tem sido muito elogiada, apesar da produção passar longe das premiações do gênero e não ser tão popular. A primeira temporada tem oito episódios e a sua segunda temporada chegou ao fim recentemente, com dez episódios ao todo. A série tem ainda uma terceira e última temporada confirmada para 2019, que se passará na década de 1980. 

https://youtu.be/WEPZoIhfYpQ

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Formada em artes visuais e apaixonada por arte, música, livros e HQs. Atualmente pesquisa sobre mulheres negras no rock. Seu site é o Sopa Alternativa.
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