Dumplin’: quando uma narrativa delicada torna-se instrumento de poder

Dumplin’: quando uma narrativa delicada torna-se instrumento de poder

Concursos de miss. Adolescentes. Padrões sociais. Amizade feminina. Relacionamento conflituoso entre mãe e filha. Positividade. Autoestima. Falta de autoestima. Cumplicidade. Gordofobia. Questionamentos ao patriarcado e à rivalidade feminina. Música. Drag queens. Mensagens que alimentam o espírito… E, claro, Dolly Parton. Estes são os principais temas do filme Dumplin’, que pode ser facilmente encontrado no acervo de obras originais da Netflix.

Para muitos, apenas mais um filme num catálogo extenso, cujo nome passa rápido sob seus olhos e é ignorado em benefício de outro. Para outros, aproximadamente duas horas divertidas, leves, repleta de sorrisos e torcidas por personagens cativantes. Mas para alguns grupos excluídos dos padrões sociais, Dumplin’ traz consigo uma hora e 50 minutos de entrelinhas contadas com tanto carinho que são capazes de comover o coração, irradiar empatia e, talvez arrisca-se aqui dizer, arrancar algumas lágrimas ou sorrisos que fazem o rosto doer da melhor forma possível.

O filme é baseado na obra homônima de Julie Murphy e tem como cenário a história da protagonista Willowdean Dickson. Uma adolescente pulso firme, interpretada por Danielle Macdonald, que tem uma trajetória de amizade verdadeira e sólida com sua melhor amiga Ellen, a quem conhece desde pequenininha. Desde o princípio, o filme aborda um tema muito importante em sua construção: a amizade entre mulheres. O elo e cumplicidade entre as adolescentes é muito bem vindo quando nos vemos preenchidos pelo excesso de obras que alimentam a rivalidade feminina. O antigo laço entre elas tem fundação no amor pela cantora e ícone Dolly Parton, cujas composições e voz surgem a todo momento durante o filme, seja como trilha sonora, seja no cantarolar das garotas ou numa reprodução de frases da musicista que marcaram algum dos personagens.

A importância da afeição na narrativa feminina de Dumplin’

Dumplin'
Cena de “Dumplin'” (Imagem: Netflix/divulgação)

Willowdean e Ellen são opostos – mas opostos apenas físicos. Ellen é a típica garota padrão de beleza: altiva, magra, de sorriso enorme e olhos brilhantes. Enquanto isso, nossa protagonista é uma jovem gorda igualmente bonita, cujo sorriso nos lembra um raio de sol, e muito bem resolvida. Foi criada de perto pela companhia de sua tia Lucy, a quem sempre levou no coração como uma figura materna mais forte do que a própria mãe, Rosie Dickson. Foi Lucy quem introduziu Willowdean ao mundo da música, o amor por Dolly Parton e quem dedicou anos de sua vida à construção da autoconfiança de sua sobrinha, ensinando-a sempre com muito amor de que ela pode ser quem quiser, como quiser e ultrapassar o limite de seus sonhos.

Na contramão de Lucy, temos Rosie. Ela é uma mulher vaidosa e obcecada com a própria aparência, a qual tenta ao máximo manter semelhante daquela de quando ganhou um concurso de miss em sua cidade. Interpretada por Jennifer Aniston, há na relação de Rosie e Willowdean um verdadeiro abismo emocional. Rosie é ausente, distante e pouco presente na evolução emocional de sua própria filha. Anne Fletcher dirige as atrizes de forma sutil e eficaz, deixando sempre numa palavra não dita, no olhar de julgamento ou no vazio do diálogo que a aparência de Willowdean é parte do problema. Rosie dedica às suas participantes de concurso mais tempo e dedicação do que a quem deveria entregar suporte emocional dentro de casa.

E aqui temos o momento chave do filme: cansada dos estereótipos e descaso da própria mãe, Dumplin’ (como é chamada por Rosie) decide entrar no concurso promovido pela mesma como forma de combater o sistema dos padrões. Seu espírito inicial é impulsivo  e de protesto, acompanhado apenas por sua melhor amiga. No entanto, ambas são seguidas por Hannah (Bex Taylor-Klaus), que vai ao concurso como ela mesma diz, contra as normas do patriarcado. Junto com ela, vem Millie (Maddie Baillio), uma garota também gorda, porém de personalidade oposta à de Willowdean. No que uma é firme sobre sua identidade e não cede a ninguém, a outra é doce e tende a ignorar as ofensas sofridas, comportamento comum de quem sofre humilhações constantes por conta de sua aparência. Millie é a única que está ali por razão diferente da rebeldia. E é também a porta de entrada do filme para uma mensagem diferenciada.

A sensibilidade nos clichês cria um delicado retrato da vida real

Bo e Willowdean
Personagens Bo e Willowdean em cena de “Dumplin'” (Imagem: Netflix/divulgação)

O que tinha tudo para ser um longa-metragem sobre jovens buscando soluções imediatas, o que poderia ser mais um filme no longo acervo dos que se regozijam na rivalidade entre garotas, aquilo que podia terminar em momentos de humilhação gratuita e propagação de ódio ou acrescentar elementos de vilania às demais meninas que participam do concurso, acaba… Diferente. Um excelente tipo de diferente. Dumplin’ é maior que clichês prontos e tem um motivo especial por trás de cada cena. O grupo que inicia sua jornada contra o concurso acaba por fazer dele um instrumento de transformação, união e jornada emocional.

Em momento algum qualquer integrante do concurso é diminuída na ótica do filme por tentar encaixar-se nos padrões. O filme não tenta machucar a imagem de ninguém. Mesmo quando existe um conflito entre as amigas, ele não passa por uma resolução de conflito através de cenários complicados demais, humilhantes demais ou que chegue a ferir a identidade delas. Willowdean e Ellen passam por uma catarse emocional de compreensão mútua e afetividade.

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Mas Dumplin’ é uma saga sobre Willowdean Dickson e seus percalços, seus desafetos e seus amores. Pois sim, há a presença de um rapaz na trama. E neste ponto de conflito muitos podem enxergá-lo de modo padronizado, mas existe nele uma sensibilidade e verdadeira atenção aos sentimentos de quem cresceu, cresce e vive fora do que a sociedade considera o corpo ideal. Willowdean é segura, risonha e flerta com Bo (Luke Benward), mas não consegue, lá no fundo, acreditar na seriedade disso ou mesmo que ele está interessado nela. Numa das cenas entre eles, há um questionamento que, para muitos, é simples. Clichê. Mas para quem passou por situações parecidas, a carga emocional acaba sendo verdadeira.

Obesidade, autoestima e reflexões sobre a sociedade vigilante em Dumplin’

Ellen e Willowdean
Personagens Ellen e Willowdean em cena de “Dumplin'” (Imagem: Netflix/divulgação)

Afinal de contas, quando se é uma garota gorda crescendo numa sociedade repleta de preconceitos, piadas e humilhações constantes normatizadas, você está presa dentro do próprio corpo e, aos poucos, com a leva dos anos, o que devia ser pele torna-se cárcere, nele residindo uma criatura, um eco; eco daquilo que já foi uma pessoa repleta de ambições, sorrisos, vontades e sonhos. Mas sonhos não existem no cárcere da pele, ambições são limitadas para quem carrega consigo o inaceitável, a fuga do padrão. Ninguém consegue esconder o sobrepeso. Não há fuga da autoimagem. Não existe escapatória deste confinamento além da resistência criada em nossas mentes, na pele que se torna couraça ao ter em seus ouvidos o que parece uma estação de rádio que emana suas ondas pelo sangue direto à cabeça.

“Bom dia, caro humano, você não merece nada de bom”. Você não merece viver porque o seu corpo, o seu rosto, os seus hábitos, a sua existência parecem ofender aqueles cuja beleza é mais fácil de ser encontrada nos olhos programados da sociedade.

Infinitas íris e retinas cuja função é garantir o vigilantismo que sustenta seu modelo social cruel tão adorado. E de repente o obeso não consegue mais respirar, viver ou simplesmente levantar da cama sem basear todo seu dia solenemente em função do cárcere do corpo: quem verei? Essa pessoa pode me machucar? Essa pessoa me ama como sou? Não? Preciso levantar da cama, viver— o trabalho, a vida e as pessoas não esperam, assim como os distintos cidadãos, ávidos para fazer alguém se sentir mal por sua aparência. Preciso ter o horário de almoço escondido dos ilegais de trabalho. Preciso me reencontrar. Preciso, desesperadamente, com todas as minhas forças, ao menos tropeçar no amor. Na empatia. Empatia daqueles interessados no que somos. Não em como me apresento para a sociedade. E você está tão cansada e ferida, o mundo já te derrubou tanto, que mesmo quando a bondade chega em nossas vidas, demora-se um tempo para acreditar. Aceitar. Aquilo é real ou essa pessoa quer me atingir?

Descubra quem você é e o seja de propósito

Dumplin'
Cena de “Dumplin'” (GIF: Netflix/reprodução)

É isso que se passa na cabeça de muitas, mas muitas adolescentes e mulheres que levam consigo uma carga enorme de julgamentos trancafiados em seu coração. E mesmo Willowdean, que aprendeu a se amar e aceitar por meio da positividade de sua falecida tia Lucy, às vezes não consegue suportar o peso da dor que carrega. Às vezes é difícil demais não se questionar, não ter um momento de fragilidade sincera. Mas para agradável surpresa, não há uma glorificação de seu sofrimento. Não há rancor e nem maldade. Willowdean busca, com ajuda de suas novas amigas, algo que todos buscam um dia: reconhecimento verdadeiro, passando por um arco de transformação cujo auxílio vem num clube de drag queens que performam Dolly Parton. Aqui elas aprendem sobre seus talentos, sobre brilhar na própria pele e que não existe nada, absolutamente nada, errado em querer exibir a pessoa maravilhosa que você é, por dentro e por fora, sendo esse aprendizado uma ponte que a conecta com sua mãe, a qual também não acaba antagonizada, mas sim compreendida.

O ato final é um sopro quentinho em nossos corações. Dumplin’, para alguns, vai continuar sendo apenas um filme clichê de adolescentes, mas em alguns corações, vai trazer um sorriso e leveza que poucas obras conseguem trazer. É como um abraço de Willowdean, Millie, Ellen, Hannah, Rosie, Lucy – ou, se você quiser, da sensacional Dolly Parton.

Confira o trailer de Dumplin’, produção original Netflix:


Edição realizada por Gabriela Prado e revisão por Isabelle Simões.

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Escrevo onde meu coração me leva. Apaixonada pelo poder das palavras, tentando conquistar meu espaço nesse mundo, uma frase de cada vez.
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